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A ressaca da festa

Um em cada quatro brasileiros bebe a ponto de correr riscos de sofrer problemas físicos, psíquicos e sociais

MIGUEL BOYAYANSemanas atrás um telefonema deixou o psiquiatra Ronaldo Laranjeira sem reação. Do outro lado da linha, um primo com quem não falava fazia tempo contou a peregrinação pela qual o pai, dependente de álcool havia anos, passara pouco antes. Ao sentir-se mal em uma sexta-feira à noite, teve de experimentar o tratamento a que estão sujeitos os 10% da população que já não conseguem se libertar da bebida e não passam mais de um dia sem um gole de cerveja ou um trago de aguardente. Foi levado a um hospital municipal de São Paulo, onde o médico que o atendeu aparentemente não compreendeu a situação nem gostou do que viu e o dispensou. Mas não sem antes dar uma bronca nos familiares e perguntar por que haviam levado um bêbado ao hospital. No dia seguinte o tio de Laranjeira morreu.

A notícia chegou em um momento em que Laranjeira acaba de dar um passo importante para compreender como se desenvolvem na população brasileira as raízes da dependência do álcool. Após 30 anos de pesquisas sobre os problemas ligados ao consumo de álcool e outras drogas na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), Laranjeira se preparava para publicar o primeiro levantamento nacional a mostrar quanto, como e o que se bebe no país, apresentado em agosto no Palácio do Planalto. De novembro de 2005 a abril de 2006, pesquisadores treinados por ele e sua equipe entrevistaram 3.007 pessoas com mais de 13 anos de idade em áreas urbanas e rurais de 147 municípios das cinco regiões brasileiras.

O resultado é o mais abrangente retrato do consumo de álcool no Brasil, que, ao lado de outras pesquisas, poderá orientar a implantação das medidas previstas na Política Nacional sobre Bebidas Alcoólicas. Sancionada em maio pelo presidente Lula, essa lei tem por meta reduzir o consumo de álcool e os danos a ele associados, como os acidentes de trânsito, o desenvolvimento de câncer, além de prejuízos emocionais.

O que esse estudo mostra? Muita coisa sobre a qual se tinha apenas uma idéia aproximada, em geral obtida a partir de estudos feitos com uma população mais restrita ou de pesquisas realizadas no exterior. Já de início o trabalho coordenado por Laranjeira e financiado pela Secretaria Nacional Antidrogas (Senad), subordinada à Presidência da República, revela um padrão de consumo de álcool mais complexo que o imaginado e desfaz o mito de que quase todo brasileiro bebe, mas bebe pouco – apenas uma ou outra caneca de chope ou taça de vinho de vez em quando.

Agora se sabe que cerca de metade da população adulta, mais especificamente 48% das pessoas com mais de 18 anos, é abstêmia: não consome bebidas alcoólicas ou o faz, em média, menos de uma vez por ano, dado que o grupo da Unifesp ainda não consegue explicar completamente. Segundo Laranjeira, esse número é mais elevado do que se esperava e pode, ao menos em parte, ser justificado por razões religiosas, uma vez que uma em cada quatro pessoas entrevistadas declarou ser evangélica ou protestante, religiões que costumam desaprovar o consumo de álcool ou estimular a abstinência.

EDUARDO CESARO que mais preocupa os pesquisadores, no entanto, é o que acontece com os outros 52% dos brasileiros. Desses, aproximadamente metade aprecia uma cerveja gelada ou uma taça de vinho com pouca freqüência, entre uma e três vezes por mês. O problema está na outra metade, correspondente a 25% da população adulta ou cerca de 30 milhões de brasileiros, que consome bebidas alcoólicas mais de uma vez na semana. Um em cada seis desses consumidores, classificados como freqüentes, ingere níveis de álcool considerados nocivos para a saúde porque aumentam o risco de se envolver em brigas, de sofrer quedas ou fazer sexo sem proteção. Na maioria das vezes em que se sentam em um bar, essas pessoas tomam ao menos cinco doses de bebida – uma dose contém cerca de 12 gramas de álcool puro e equivale a uma lata de cerveja, a 45 mililitros de uísque ou cachaça, a uma taça de vinho ou a uma garrafa pequena de bebida do tipo ice.

É um padrão de consumo distinto do europeu. Nos países mediterrâneos da Europa em geral toma-se vinho com freqüência e em pequenas quantidades, durante as refeições, enquanto nos países nórdicos e do Leste Europeu o mais comum é consumir doses e mais doses de uísque ou vodca. O perfil de consumo do brasileiro é mais diverso. Muitos bebem pouco e poucos bebem pra valer, o que nos coloca entre os consumidores de médio porte nas Américas, segundo dados de um levantamento inédito da Organização Pan-americana da Saúde. “Não bebemos mais do que canadenses, norte-americanos e os povos de outros países da Europa, mas consumimos álcool de modo mais nocivo”, explica a psiquiatra Florence Kerr-Corrêa, da Universidade Estadual Paulista (Unesp), em Botucatu, que estuda a diferença no padrão de consumo entre o sexo masculino e feminino.

Outra característica do consumo brasileiro é ingerir níveis elevados de álcool por mais tempo na vida. Como em vários outros países, quem mais bebe são os jovens. Mas no Brasil se continua a beber muito até por volta dos 45 ou 50 anos, enquanto nos Estados Unidos a ingestão de bebidas alcoólicas diminui a partir da terceira década de vida. “Esses dados sugerem que provavelmente haverá mais problemas com consumo abusivo e dependência de álcool por parte de pessoas em idade produtiva, numa fase da vida em que geralmente já constituíram família”, explica o epidemiologista e psiquiatra brasileiro Raul Caetano, professor da Universidade do Texas e autor do questionário e da estratégia usados no estudo.

Aqui bebe-se mais nas regiões Nordeste e Centro-Oeste, onde 38% das pessoas não param antes do quinto copo. No Sul e no Sudeste o consumo é mais moderado, mas freqüente: metade da população não passa da segunda dose. Quase sempre são os homens quem mais bebe, enquanto as mulheres, mais sensíveis aos efeitos do álcool, geralmente ficam no primeiro ou segundo copo. Em todas as regiões a bebida mais consumida é a cerveja, embora haja variações no Norte e no Nordeste, onde a cachaça aparece em segundo lugar, à frente do vinho. Outra diferença é que as pessoas de classes sociais mais elevadas (A e B) consomem álcool de modo distinto das da classe E. “As primeiras bebem durante as refeições, em bares comendo algum petisco ou sozinhas em casa”, explica Laranjeira. “Já entre os mais pobres quem bebe são os homens que se reúnem em um boteco e tomam cachaça em pé, sem comer nada”.

Feitas as contas, conclui-se que esses bebedores, ditos freqüentes e também pesados, são nada menos do que 10% dos brasileiros adultos ou 12 milhões de pessoas. É uma população equivalente à de uma metrópole como São Paulo que uma vez na semana lota dezenas de milhares de restaurantes, bares, botecos e padarias do país e toma pelo menos cinco copos de cerveja ou várias doses de pinga. Pode-se até imaginar que cinco doses, coisa que muita gente é capaz de beber quando sai para bater papo com os amigos, não são quase nada. Será?

EDUARDO CESARMinutos após o primeiro gole do chope – ou, como é mais comum entre os gaúchos, a primeira taça de vinho – o álcool chega ao estômago, onde metade é digerida. O que não é quebrado quimicamente ali atravessa as paredes do estômago e do intestino delgado, chegando rapidamente à corrente sangüínea. Formada por 2 átomos de carbono, 6 de hidrogênio e 1 de oxigênio, a molécula do etanol – o álcool da vodca, do conhaque e de todas as bebidas – se dilui facilmente no sangue. Uma pequena parte é filtrada pelos rins e se acumula na bexiga, razão do desejo freqüente, e em geral urgente, de urinar. O restante acumula-se em tecidos e órgãos ricos em água, como os músculos e o cérebro, até ser transportado para o fígado, onde passa por duas etapas de transformação em que origina um composto menos tóxico para as células: o ácido acético. Uma parte do álcool, porém, sofre apenas uma transformação parcial, gerando um composto altamente tóxico: o aldeído, responsável por danos às células e também pela dor de cabeça característica da ressaca do dia seguinte.

Esse processo de degradação é um tanto lento. Calcula-se que o organismo leve cerca de uma hora para degradar o álcool de uma única dose de bebida. Em um adulto de 70 quilos, os 12 gramas de álcool puro encontrados em uma lata de cerveja ou em um copo de uísque em poucos minutos atingem uma concentração de 0,2 grama por litro de sangue. Pouco mais do que isso já é suficiente para relaxar o corpo e deixar a pessoa mais desinibida, falando de modo desenfreado – é o estágio de euforia, desejado por todo mundo que decide tomar um trago para esquecer o dia ruim ou sentir-se mais seguro para conversar com a garota da mesa ao lado.

A excitação e a autoconfiança, no entanto, duram pouco. Se em menos de uma hora mais duas latas de cerveja forem entornadas, facilmente se ultrapassa a concentração de 0,6 grama por litro de sangue, o limite máximo em que é permitido dirigir, de acordo com o Código Brasileiro de Trânsito. Nessas horas é melhor deixar o carro no estacionamento e pegar carona com alguém sóbrio ou voltar para casa de táxi. É quando começa a se manifestar outro tipo de efeito provocado pelo álcool, que interfere na atividade dos mensageiros químicos dopamina, ácido gama-aminobutírico e noradrenalina, reduzindo o funcionamento de diferentes regiões cerebrais. Após a quinta dose, o raciocínio torna-se lento, escolhem-se as palavras com menos pudor, a visão fica menos acurada e diminui a capacidade de reação. Ingerido em quantidades ainda mais elevadas em poucas horas – é o porre que os adolescentes costumam tomar nas baladas -, o álcool pode levar ao coma e até à morte por impedir o funcionamento dos centros cerebrais que coordenam a respiração.

Repetido raramente, o consumo exagerado não costuma causar em quem bebe prejuízos maiores do que uma intoxicação aguda que dura um dia e faz a cabeça girar, o estômago embrulhar e deixa uma sensação amarga na boca. Se esse comportamento se torna hábito, no entanto, podem surgir danos irreversíveis em órgãos como o coração, o cérebro e o fígado, além do aumento do risco de desenvolver depressão e algumas formas de câncer. Nesse nível de consumo, os danos superam em muito os benefícios que quantidades de álcool consideradas seguras pela Organização Mundial da Saúde – duas doses diárias para homens e uma para mulheres – podem proporcionar ao sistema cardiovascular. “Mesmo no nível seguro, o álcool só proporciona benefício cardiovascular para homens com mais de 40 anos. Em termos de saúde, os mais jovens nada ganham com a bebida”, diz Caetano.

Outra conseqüência do consumo freqüente em altas ou baixas doses de cerveja, uísque e até mesmo vinho é o aumento do risco de dependência, que traz problemas para quem bebe e também para sua família e seus amigos. Esse transtorno psiquiátrico, responsável por 90% das internações ligadas ao uso de drogas no país, afeta aproximadamente um em cada dez brasileiros, proporção cinco vezes superior à média mundial. E há sinais de que está aumentando nas cidades de médio e grande porte: subiu de 11,2% em 2001 para 12,3% em 2005 entre as pessoas com idade entre 12 e 65 anos que vivem em municípios com mais de 200 mil habitantes, segundo estudos feitos pela equipe do Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas (Cebrid), da Unifesp.

MIGUEL BOYAYANMais facilmente reconhecíveis, a dependência e as enfermidades que atingem os diferentes órgãos do corpo estão longe de ser os únicos problemas decorrentes do consumo de álcool. Há um outro tipo de dano tão importante quanto os anteriores que até poucos anos atrás permanecia invisível. É o chamado prejuízo social, pago por toda a comunidade por meio da redução da produtividade no trabalho, de ferimentos em brigas, de doenças que debilitam do ponto de vista físico e psicológico e de tratamentos em hospitais públicos. Dados da Organização Mundial da Saúde indicam que direta ou indiretamente o álcool é responsável por 3% das mortes e 4% de todas as doenças. Esse índice é mais elevado nos países em desenvolvimento como o Brasil, onde o álcool está associado a aproximadamente 10% das mortes e também das doenças, segundo estimativa de Laranjeira e José Ninio Meloni publicada em 2004 na Revista Brasileira de Psiquiatria.

Embora não se conheçam os números com precisão, acredita-se que a causa de boa parte dessas mortes seja os acidentes de trânsito provocados por motoristas que insistem em voltar para casa dirigindo, mesmo após vários copos de chope. Todos os anos cerca de 20 mil pessoas morrem em acidentes de carro no Brasil, segundo dados do Departamento Nacional de Trânsito. Esse número representa quase metade das mortes por acidentes automobilísticos nos Estados Unidos, onde a frota de veículos é seis vezes maior que a nacional – lá circulam cerca de 240 milhões de automóveis, enquanto aqui são cerca de 38 milhões.

No levantamento nacional, Laranjeira constatou que 10% das pessoas que bebem já dirigiram ao menos uma vez depois de consumir álcool no ano anterior à entrevista. “É uma proporção altíssima”, comenta Laranjeira. “Nos Estados Unidos as autoridades ficam alarmadas quando esse número atinge 3% ou 4% dos motoristas”, afirma. Cerca de três vezes mais comum entre os brasileiros do que entre os norte-americanos, esse hábito pode ser ainda mais comum nas cidades grandes.

Em outro estudo recente, Laranjeira e o médico Sérgio Duailibi decidiram ir para as ruas de cinco cidades brasileiras (São Paulo, Diadema, Santos, Belo Horizonte e Vitória) verificar se os motoristas dirigiam depois de ingerir bebida alcoólica. Entre as 10 da noite e 3 da manhã de várias sextas e sábados, eles pararam 5.600 motoristas e pediram que soprassem em um bafômetro, aparelho que estima o teor de álcool do sangue a partir de sua concentração no ar expirado. Em média, um em cada três condutores havia consumido álcool antes de pegar o volante – índice que variou de 21% em Diadema, Região Metropolitana de São Paulo, a 41% em Vitória, no Espírito Santo. Em todas as cidades um quinto dos motoristas não deveria estar ao volante, porque os níveis de álcool no sangue haviam ultrapassado o limite legal.

O Código de Trânsito Brasileiro permite a condução de veículos com uma concentração máxima de 0,6 grama de álcool por litro de sangue. Mas talvez nem esse valor possa ser considerado seguro. Em julho a revista Quatro Rodas apresentou os resultados de um teste informal, mas bastante ilustrativo, do que pode acontecer no trânsito. Sob a supervisão de médicos, nove jovens tomaram doses sucessivas de bebida alcoólica antes de dirigir por um curto trajeto em que cones de plástico simulavam curvas e obstáculos. Mesmo antes de atingir o limite legal, a maior parte dos motoristas atropelou cones e passou a correr mais. Houve ainda quem freasse diante de um sinal verde ou se atrapalhasse ao guardar o carro na garagem.

Se doses baixas já foram suficientes para pôr em risco a segurança de quem dirige – e de quem está por perto -, não é difícil imaginar o que de fato se passa nas ruas de nossas cidades, onde o consumo é elevado, principalmente entre os jovens. Quase metade dos entrevistados no levantamento nacional consumiu álcool de modo considerado compulsivo – mais de cinco doses para homens e quatro para mulheres em um período de poucas horas – ao menos uma vez no último ano. Metade deles bebe assim ao menos uma vez por mês.

Essa forma de consumo, chamada pelos médicos de binge, é mais comum entre os homens mais jovens, em especial até os 42 anos. Mas não só. Mulheres com idade entre 18 e 44 anos, solteiras ou divorciadas e que cursaram o colegial ou ainda estão na universidade, também costumam exagerar nas doses tanto quanto os homens, segundo estudo conduzido pelos psiquiatras Laura Andrade, Camila Magalhães Silveira e Arthur Guerra Andrade, da Universidade de São Paulo (USP).

Eles avaliaram o padrão de consumo de álcool de 1.464 pessoas com mais de 18 anos em dois bairros de classe média e alta da cidade de São Paulo – o elegante Jardim América e a boêmia Vila Madalena, onde, em muitas ruas, os bares se espremem uns ao lado dos outros. Observaram que uma em cada dez participantes do estudo havia ingerido bebidas alcoólicas de modo exagerado ao menos uma vez no último ano. A maioria consumia nesse padrão mais de uma vez por semana, como descreve a equipe da USP em artigo do Journal of Studies on Alcohol and Drugs.

EDUARDO CESAR“Quanto mais cedo as pessoas começam a beber, maior o risco de desenvolverem esse padrão de consumo”, diz Camila. E, quanto mais bebem, mais problemas enfrentam. Laura perguntou com que freqüência os participantes da pesquisa apresentavam um ou mais problemas de ordem física, emocional ou social – num total de 24 tipos diferentes. E comparou o resultado com o número de vezes em que bebiam na semana e a quantidade de álcool que tomavam cada vez que se sentavam para beber. À medida que crescia o consumo de álcool, aumentava a proporção de problemas – principalmente entre os homens, que se envolviam mais em brigas e se tornavam motivo de reclamação de amigos ou parceiras. Mas as mulheres que ingeriam níveis elevados de álcool também enfrentavam a mesma proporção de problemas que os homens. Além disso, elas apresentam o que os médicos denominam efeito telescópico. “Aquelas que começam a beber cedo passam a fazer uso freqüente de álcool mais rapidamente e também se tornam dependentes mais cedo”, explica Laura.

Florence Kerr-Corrêa atribui o consumo elevado de álcool pelas mulheres à mudança de seu papel na sociedade. Ela comparou como as pessoas bebiam em Botucatu e em Rubião Júnior, cidade menor e de nível socioeconômico e cultural mais baixo. Constatou que o consumo de álcool – em pequenas doses ou exagerado – era mais comum entre as moradoras de Botucatu, com acesso a educação e trabalho remunerado.

Um dos resultados do levantamento nacional que mais chama a atenção da equipe de Laranjeira é o consumo de álcool por adolescentes. Dos 3.007 entrevistados, 661 tinham entre 14 e 17 anos de idade e não deveriam conseguir comprar álcool, de acordo com a legislação brasileira. Mesmo assim, 24% afirmaram consumir bebida alcoólica mais de uma vez por mês. Quase metade dos adolescentes que bebem geralmente passa das três doses, e uma proporção semelhante consome álcool de modo compulsivo ao menos uma vez por mês. Mais importante: os dados desse estudo sugerem que as pessoas estão começando a tomar cerveja, vinho ou outras bebidas cada vez mais cedo, comenta Ilana Pinsky, psicóloga da Unifesp e co-autora do estudo nacional. As pessoas que na época das entrevistas eram menores de idade haviam bebido pela primeira vez pouco antes dos 14 anos – e seis meses mais tarde já consumiam álcool regularmente -, enquanto quem tinha entre 18 e 25 anos só experimentou os primeiros goles aos 15 anos e passou a beber dois anos mais tarde, depois dos 17. “O adolescente em geral bebe para relaxar, se divertir e se enturmar”, explica Ilana, “o problema é que eles são mais suscetíveis aos efeitos do álcool”.

“A adolescência é um período em que naturalmente as pessoas testam novas experiências”, reconhece Laranjeira. “Mas a experimentação química sempre traz riscos”. Estudos feitos no Brasil e no exterior mostram que quanto mais cedo se começa a beber maior o risco de se tornar dependente. Também aumenta a probabilidade de ocorrerem acidentes, brigas e quedas e de fazer sexo sem proteção. As complicações não param aí. Do ponto de vista fisiológico, a adolescência é uma fase da vida em que o cérebro ainda se encontra em desenvolvimento, que pode ser comprometido pelo álcool. “Não há nível de consumo de álcool considerado seguro para adolescentes. Quanto mais se consegue retardar o início do uso, menores são os problemas”, afirma Camila, que integra com Arthur Guerra Andrade o Centro de Informações sobre Saúde e Álcool (Cisa), organização não-governamental que tem entre seus patrocinadores a Companhia de Bebidas das Américas (AmBev), a maior produtora de cerveja do país.

Diante desse cenário surge a dúvida: o que fazer para reduzir no país o consumo de álcool e os prejuízos a ele associados? A resposta para esse problema, que só nos últimos anos atraiu a atenção das autoridades brasileiras e no mundo todo é mais grave que o uso de drogas ilícitas, é múltipla e nem sempre consensual. Entre os especialistas brasileiros há quem afirme que a saída está na educação, uma vez que o consumo de álcool é um hábito que acompanha a humanidade há milênios – possivelmente desde que alguém experimentou frutos ou cereais fermentados bem antes do surgimento da agricultura.

EDUARDO CESAR“O álcool dá prazer e é agradável para a maior parte das pessoas. É preciso ensinar que esse é um hábito que pode ser mantido de forma adequada, em locais adequados”, explica o psicofarmacologista Elisaldo Carlini, coordenador do Cebrid, que até março era membro da Junta Internacional de Controle de Narcóticos, órgão da Organização das Nações Unidas que monitora a produção e o comércio de entorpecentes no mundo. “Faltam no país projetos intensivos, contínuos e inteligentes que ensinem sobre os perigos do uso de drogas”, afirma.

Só educação, porém, não resolve. A restrição dos horários de exibição na tevê das propagandas de bebidas pela qual vem batalhando recentemente o ministro da Saúde, José Gomes Temporão, pode produzir resultado, principalmente entre os mais jovens.Também é preciso aplicar de fato as leis existentes no país, como a que proíbe a venda de bebidas alcoólicas para menores de 18 anos e a que prevê a suspensão do direito de dirigir de quem é flagrado conduzindo um veículo embriagado. “No Brasil somos lenientes no que diz respeito à quebra de regulamentos. Aceitamos mais certas formas de transgressão do que a sociedade norte-americana”, diz Caetano. “Há no país a sensação de impunidade, que é real. A lei não é aplicada e as pessoas sabem disso”.

Laranjeira defende o aumento dos impostos e do preço das bebidas. Na opinião de Caetano, também são necessárias medidas federais, estaduais e até municipais, como o controle do horário de abertura dos bares. Além, claro, de acesso dos dependentes de álcool a tratamento adequado. Segundo Pedro Gabriel Delgado, coordenador de Saúde Mental do Ministério da Saúde, até 2002 o sistema público de saúde não oferecia alternativas de atenção especializada e os problemas associados ao álcool eram tratados por instituições filantrópicas ou grupos como os Alcoólicos Anônimos. Haviam escassas consultas ambulatoriais e internações de baixa eficácia em hospitais psiquiátricos. Hoje há no país 160 centros comunitários e serviços de atenção à saúde para tratar dependentes de álcool. Ainda é pouco. “A solução desse problema passa pela regulamentação do mercado”, afirma Laranjeira, acusado de defender propostas radicais contra o consumo excessivo de álcool. “Sem isso, a indústria continua lucrando e a sociedade pagando a conta”.

Os Projetos
1. Levantamento nacional sobre os padrões de consumo de álcool na população brasileira; Coordenador: Ronaldo Laranjeira – Unifesp (08/57714-7); Investimento: R$ 1.000.000,00 (Senad).
2. Estudo epidemiológico dos transtornos psiquiátricos na Região Metropolitana de São Paulo (03/00204-3); Coordenadora: Laura Helena Guerra; Investimento: R$ 1.040.825,00 (FAPESP).
3. Gênero, cultura e problemas relacionados ao álcool: um estudo no estado de São Paulo e multinacional (04/11729-2); Coordenadora: Florence Kerr-Corrêa – Unesp; Investimento: R$ 187.393,75 (FAPESP)

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