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Novos Materiais

Leve e resistente

Curauá substitui fibra de vidro em peças de carro e entra na composição de vigas à prova de terremotos

EDUARDO CESAR Fibra seca de curauá usada no compósito com plásticoEDUARDO CESAR

A fibra de curauá, uma bromélia de grande porte da região amazônica, pelas suas propriedades mecânicas de alta resistência, baixa densidade – capaz de conferir leveza ao produto final – e potencial para reciclagem, está cotada para substituir a fibra de vidro empregada como reforço ao plástico na fabricação de peças com características reduzidas e detalhadas, produzidas pelo processo de moldagem por injeção, como botões do painel de carros, maçanetas e dobradiças de quebra-sol. Peças de grandes dimensões, como a parte interna das portas e a tampa do compartimento de bagagem de alguns modelos de carros, já são fabricadas por um outro processo com a fibra vegetal como parte de sua composição, mas a demanda tem crescido rapidamente, muito além do que é produzido atualmente no país, reflexo do interesse despertado pela possibilidade de vários usos, com resultados comprovados, da matéria-prima extraída das folhas do curauá (Ananas erectifolius), que pertence à mesma família do abacaxi. Entre os usos estão caixas-d’água, piscinas, tecidos antialérgicos e até a utilização da fibra vegetal como material substituto para as vigas de ferro usadas no lugar de concreto em países como o Japão, que enfrentam problemas de tremores de terra de alta intensidade, pela sua alta resistência mecânica e leveza.

A sobra da moagem da folha resulta em um produto chamado mucilagem, que pode ser usado tanto para ração animal, porque contém 7% de proteína, como na fabricação de papel pela indústria de celulose e adubo orgânico. “Existe hoje uma demanda da indústria automobilística e têxtil em torno de mil toneladas de fibra por mês,”  diz o pesquisador Osmar Alves Lameira, da Embrapa Amazônia Oriental, unidade da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária em Belém, no Pará, que estuda o curauá. A produção atual brasileira, concentrada em Santarém, no Pará, é de 20 toneladas. Mas é uma cultura que está começando a se expandir, em razão do interesse despertado pelas pesquisas feitas com o material. “Agricultores de regiões localizadas na rodovia Belém-Brasília e em municípios como Santo Antônio do Tauá e Vigia, próximos à baía do Marajó, estão começando a se organizar e plantar o curauá,”  diz Lameira. “A idéia é formar grupos para plantar em escala maior.”

Os estudos que resultaram no compósito feito de plástico e fibra de curauá, cotado para substituir a fibra de vidro em peças fabricadas pelo processo de moldagem por injeção não só na indústria automobilística como também na eletroeletrônica, como revestimento externo de gravadores, capas de celulares e de ferramentas elétricas, foram coordenados pelo professor Marco-Aurélio De Paoli, diretor do Laboratório de Polímeros Condutores e Reciclagem, do Instituto de Química da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), em parceria com a empresa multinacional GE Plastics South América, hoje Sabic Innovative Plastics, instalada no Distrito Industrial de Campinas, no interior paulista. “A fibra de vidro é uma matéria-prima que requer um alto consumo de energia para ser produzida e, além disso, os produtos feitos com esse material não podem ser reciclados por nenhum processo conhecido atualmente,” diz De Paoli. Ao término de sua vida útil, o destino final do plástico reforçado com a fibra de vidro é o aterro sanitário.

EMBRAPA AMAZÔNIA ORIENTAL Plantio de curauá com espécie usada em reflorestamento e fruto da planta (no detalhe)EMBRAPA AMAZÔNIA ORIENTAL

Reciclagem térmica
A fibra do curauá é produzida com baixo consumo energético, necessário apenas no processo de extração e moagem da planta. Outra vantagem é que ela tem uma densidade menor que a de vidro, o que significa produtos mais leves. No caso do mercado automobilístico, essa é uma característica interessante, porque representa menor consumo de combustível. A reciclagem também conta pontos a favor da fibra vegetal. Os produtos feitos com esse material podem ser reciclados pelo processo térmico. “Sem contar que, durante a queima da fibra, é produzido menos monóxido de carbono do que a planta consumiu durante o seu crescimento,”  diz De Paoli.

O compósito, que tem um pedido de patente nacional e outro internacional, é fruto do desdobramento de uma pesquisa iniciada em 2000 pelo grupo de pesquisa liderado por De Paoli, que tinha como objetivo investigar se a fibra vegetal seria uma boa alternativa para substituir a de vidro no reforço de termoplásticos –  os plásticos moldados a quente, como polietileno, polipropileno, policarbonato e náilon, entre outros. O interesse pela fibra surgiu durante um congresso em 2000, quando De Paoli conheceu os resultados de estudos conduzidos pelo professor Alcides Lopes Leão, da Universidade Estadual Paulista (Unesp) de Botucatu com o curauá (ver Pesquisa FAPESP nº 104). A diferença entre as duas linhas de pesquisa é que o professor da Unesp desenvolve compósitos da fibra com materiais que têm como base o polipropileno por um processo conhecido como termoformagem, que utiliza o calor para fazer a mistura e prensá-la, enquanto o da Unicamp usa o sistema de extrusão e moldagem das peças por injeção, o que resulta em um produto final com aplicação bastante distinta.

“O primeiro trabalho desenvolvido pelo nosso grupo misturava por extrusão a fibra vegetal com o polipropileno reciclado, plástico usado para produzir embalagens, caneta e cestos de lixo,”  relata De Paoli. E resultou em um registro de patente depositado pela Unicamp em março de 2002. Alguns meses depois, o pesquisador foi procurado por Paulo Santos, gerente de tecnologia aplicada da América do Sul da empresa GE Plastics, comprada em maio deste ano pela Sabic, da Arábia Saudita, que se interessou pelos resultados obtidos. A empresa não trabalha com o polipropileno, mas com os chamados plásticos de engenharia, utilizados em peças de automóveis, eletroeletrônicos e peças estruturais devido a características específicas como apresentar grande resistência a impactos e não se deformar quando expostos a altas temperaturas.

“Ficamos interessados na pesquisa porque a indústria automotiva, principalmente a japonesa e a européia, está em busca de peças que possam ser recicladas,”  diz Santos. Entre os plásticos de engenharia foi escolhido o náilon 6, que já é fabricado com reforço de fibra de vidro há muito tempo. O agente de reforço é um aditivo usado para modificar as propriedades mecânicas do termoplástico, que são de resistência a impacto ou a fricção. A escolha do náilon 6 foi estratégica para o sucesso da pesquisa. “Como ele tem um ponto de fusão baixo, menor do que o da degradação da fibra vegetal, achamos que não haveria problemas de compatibilidade na temperatura de fusão dos materiais,”  diz Santos. Um fator limitante na mistura de plásticos com a fibra vegetal é que ela começa a se decompor termicamente por volta de 220ºC e muitos termoplásticos são processados a temperatura mais elevada.

INSTITUTO DE QUIMICA/UNICAMP Adesão da fibra no material vista com microscópio eletrônico de varreduraINSTITUTO DE QUIMICA/UNICAMP

Boa interação
O convênio firmado com a Unicamp, no início de 2003, previa o fornecimento do produto pela empresa e a contratação de um aluno de química como estagiário, no caso a contratada foi Karen Fermoselli, o financiamento de material de consumo e a manutenção dos equipamentos. A universidade, em contrapartida, entrou com o laboratório e o conhecimento científico. A fibra de curauá foi cedida pela empresa Pematec, que cultiva a planta no Pará. A obtenção de um compósito formado pelo náilon 6 e a fibra vegetal com as mesmas propriedades encontradas na mistura que leva a fibra de vidro só foi possível depois que o material foi processado em uma extrusora dupla rosca da empresa, que trabalha em escala piloto. “Para obter o compósito é preciso promover uma boa interação entre o termoplástico e a fibra,”  diz De Paoli. Para isso, pode-se recorrer a várias estratégias. A fibra de vidro, por exemplo, recebe um tratamento químico prévio. Com o náilon é necessário tomar algumas precauções porque, na presença de umidade, ele sofre uma reação de hidrólise que pode alterar a composição química do material. No caso da fibra vegetal, os pesquisadores testaram vários tratamentos, muitos deles relatados na literatura científica.

“No final chegamos à conclusão de que não tratando e nem secando conseguíamos uma melhor adesão entre a fibra e o náilon,”  diz De Paoli. Com isso, obteve-se uma substancial economia de energia. O uso da extrusora dupla rosca permitiu desfibrar a fibra, que originalmente é um feixe de microfibrilas, ou seja, são fibras pequenas e delgadas, visíveis apenas com o microscópio eletrônico. “Isso significa que estamos reforçando o plástico com microfibrilas e, com isso, a resistência é maior,”  relata De Paoli. Tudo isso é feito em uma única etapa, dentro da extrusora.

A empresa ainda não definiu a data de lançamento do produto, pois não terminou de adaptar as suas máquinas extrusoras e os equipamentos que vão misturar a fibra ao plástico. A maior dificuldade enfrentada hoje no processo refere-se à alimentação da fibra na extrusora. A baixa densidade do material, que é uma vantagem para dar leveza ao produto final, gera um volume grande para o manuseio e complica a alimentação na rosca. “Estamos trabalhando com várias alternativas para equacionar isso,”  diz Santos. Uma possibilidade em estudos é preparar previamente a fibra, transformando-a em um aglomerado antes de ser colocada no alimentador. Outra é trabalhar com um dosador específico para cargas mais leves. Para isso, a Sabic está projetando, em parceria com uma pequena empresa do interior paulista, um dosador, já que os existentes hoje destinam-se a materiais mais pesados, como fibra de vidro, talco, carbonato de cálcio ou fibra de carbono.

Transposto esse obstáculo, outra questão que precisa ser equacionada é o fornecimento da fibra a preços competitivos. “Inicialmente tínhamos a expectativa de que a fibra de curauá fosse mais barata que a de vidro,”  diz Santos. Isso ainda não ocorre por conta da baixa oferta da matéria-prima para atender à demanda. Estudos realizados no Pará mostraram que o plantio do curauá consorciado com espécies utilizadas em reflorestamento, como paricá, mogno e freijó, pode ser uma boa saída para expandir a plantação. Duas teses de doutorado orientadas por Lameira, da Embrapa Amazônia Oriental, mostraram a viabilidade econômica desse tipo de plantio e a qualidade da fibra obtida com o consorciamento. “Quando o curauá é cultivado com outras espécies vegetais, o rendimento da fibra aumenta porque é beneficiado com o sombreamento,”  explica o pesquisador. Existe uma simbiose entre elas, porque uma planta aproveita o que a outra produz. “A grande vantagem desse plantio é que, além de o produtor ganhar com o cultivo do curauá, a espécie florestal terá custo zero,”  diz Lameira. A pesquisa mostrou ainda que a planta crescida na sombra de árvores produz maior quantidade de fibras por quilo de folha do que a planta crescida a céu aberto.

O trabalho experimental foi feito em uma área pertencente à Tramontina, fabricante de ferramentas, utensílios domésticos, materiais elétricos e outros produtos, que cultiva em mil hectares o paricá, uma espécie florestal que produz a madeira clara usada em cabos de facas, tábuas para cortar carne, cabos de martelos e enxadas produzidos pela empresa. Os resultados dos estudos animaram os produtores em volta da área, que começaram a aumentar a área plantada. “Essa movimentação chegou ao Banco da Amazônia, o agente financeiro, que está analisando projetos para plantação em grande escala,”  diz Lameira.

Fila de espera
O reflexo da expansão do plantio é a falta de mudas de curauá. “Em outubro, um empresário procurou por mudas para plantio de 400 hectares, mas ficou na fila de espera,”  relata Lameira. São 25 mil mudas para cada hectare. A tecnologia de produção está plenamente dominada. Prova disso é que, em 2003, a Embrapa Amazônia Oriental ganhou o Prêmio Finep na etapa regional e menção honrosa na nacional, concedidos pela Financiadora de Estudos e Projetos do Ministério da Ciência e Tecnologia (Finep/MCT), pelo desenvolvimento de um processo de produção por meio de micropropagação para mudas de curauá.

A técnica permite obter rapidamente grande quantidade de mudas clonadas de alta qualidade. Desde então, algumas biofábricas se instalaram na região para produzir curauá e outras espécies. “Todas as plantas que estão na área da Tramontina nasceram em laboratório,”  diz Lameira. O material é selecionado para ter altura média de 1,60 metro. No plantio consorciado, com o auxílio da sombra, pode atingir 1,70 metro ou mais. O curauá não exige solos muito férteis e pode ser plantado em qualquer época. Na região da Amazônia onde a floresta foi removida ele pode se desenvolver muito bem, desde que receba adubação orgânica no início.

Uma das vantagens agronômicas do curauá é que a mesma planta pode ficar de cinco a oito anos no campo dependendo da forma como foi cultivada consorciada com a espécie florestal. Um ano após o plantio, atinge a fase adulta, em que as folhas já podem ser colhidas para uso, procedimento que pode se repetir até quatro vezes por ano. “Hoje temos cerca de 800 hectares plantados com curauá em todo o estado do Pará,”  diz Lameira. Para atender à demanda, são necessários, no mínimo, 5 mil hectares plantados com curauá.

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