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Evolução

Pelo mundo afora

Comparando genes de diferentes povos, biólogos tentam explicar como e quando os seres humanos surgiram e se espalharam pelo planeta

MIGUEL BOYAYANNão faz tanto tempo assim o mundo era um verdadeiro deserto humano. Cerca de 200 mil anos atrás, quase nada ante os 4,5 bilhões de anos da Terra, os continentes já ocupavam a posição em que se encontram atualmente e a maior parte das espécies de plantas e animais existentes hoje vivia em florestas e savanas praticamente intocadas. Os primeiros seres humanos a apresentar traços semelhantes aos nossos – pernas mais longas que o tronco, face achatada e crânio maior e mais arredondado – habitavam uma pequena área do noroeste da África, formando grupos que não deveriam somar mais do que algumas dezenas ou centenas de indivíduos. A esse cenário, delineado no último século por arqueólogos e paleoantropólogos, somam-se as tentativas recentes de geneticistas e biólogos evolutivos de reconstruir o passado da humanidade e, assim, tentar esclarecer como um pequeno grupo de macacos quase sem pêlos conseguiu se multiplicar e se espalhar pelo mundo com tamanho sucesso a ponto de hoje ser capaz de influenciar o destino do próprio planeta.

Esse esforço para explicar algumas das dúvidas mais primitivas do ser humano – de onde veio nossa espécie e como se tornou o que é? – sempre gera um debate fervoroso como o que ocorreu no início de novembro no Primeiro Simpósio de Evolução Biológica, realizado em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul. Nesse encontro, que reuniu alguns dos mais destacados especialistas em genética e biologia evolutiva do mundo, ficou evidente que ainda está longe o dia em que se ouvirá uma resposta única e conclusiva para perguntas aparentemente simples como essas. E não faltam argumentos para justificar os resultados, muitas vezes distintos e quase opostos, a que têm chegado os pesquisadores que optam por diferentes estratégias para escarafunchar o passado da humanidade que permanece registrado nos genes das populações atuais.

Um rápido resumo do que paleontólogos e antropólogos descobriram no último século ajuda a compreender a polêmica atual. As evidências mais contundentes de que o Homo sapiens surgiu na África são fragmentos de ossos encontrados em Herto e em Omo Kibish, na Etiópia. O primeiro é um crânio com idade estimada em 160 mil anos e o segundo, um crânio de 195 mil anos. Também são os fósseis encontrados em outras partes do mundo que indicam que os seres humanos modernos permaneceram por ali por quase 100 mil anos, antes de arriscar os primeiros passos fora da África. E numa primeira tentativa não foram muito longe. Chegaram apenas ao atual Oriente Médio, como sugerem restos de esqueletos com idade entre 120 mil e 90 mil anos encontrados em Israel. Mais tarde, entre 70 mil e 50 mil anos atrás, outra leva originária de africanos teria se espalhado por todo o sul do continente asiático, alcançando a Austrália. Somente o terceiro grupo a deixar o continente africano teria alcançado também o centro e o norte da Ásia e finalmente chegado à Europa, onde viviam os atarracados Homo neandertalensis, espécie de hominídeo adaptada ao clima frio e considerada a mais próxima do Homo sapiens. Por alguma razão ainda não compreendida, os neandertais desapareceram gradualmente pouco depois da chegada do Homo sapiens à Europa, que coincide com o seu domínio de técnicas mais refinadas de produzir roupas, utensílios e ferramentas.

O que acontece daí em diante todos sabem: o homem moderno ocupou os demais continentes e povoou até mesmo as mais inóspitas regiões do planeta, deixando marcas por onde passou. O mais complicado é resgatar a história do que ocorreu antes, em um período sobre o qual os registros fósseis e arqueológicos são insuficientes para explicar em detalhes como a espécie humana emergiu e sobreviveu à extinção dos hominídeos. Nas duas últimas décadas, a análise de características genéticas compartilhadas ou não por populações de diferentes regiões do planeta vem oferecendo pistas que podem ajudar a desfazer essas dúvidas sobre o homem moderno – teria surgido entre 200 mil e 150 mil anos atrás só na África ou existiria também na Ásia? Teria eliminado outras espécies de hominídeos, como os neandertais, ou convivido e procriado com elas?

A visão mais polêmica sobre como a espécie humana evoluiu até adquirir as características atuais e colonizar o planeta foi apresentada em Porto Alegre pelo biólogo e estatístico norte-americano Alan Templeton, da Universidade de Washington em Saint Louis, Missouri. Inicialmente especialista em genética de doenças coronarianas, Templeton passou a estudar evolução humana cerca de 20 anos atrás, quando foi convidado por um amigo, Robert Sussman, editor da revista American Anthropologist, a escrever um artigo de revisão sobre o assunto. Analisando tudo o que havia sido publicado sobre o tema, Templeton encontrou graves falhas metodológicas nos artigos que ajudam a fundamentar o que hoje é a mais aceita teoria de como a espécie humana se tornou o que é – a chamada hipótese da substituição ou teoria de saída da África.

De acordo com essa teoria, os seres humanos teriam deixado o continente africano entre 60 mil e 50 mil anos atrás e se espalhado pela Ásia e pela Europa, eliminando as outras espécies de hominídeos que encontrava pelo caminho como o Homo neandertalensis, seu contemporâneo. Também conhecida como out-of-Africa, essa teoria ganhou força com a publicação na Nature em 1987 de um artigo escrito pelos biólogos Rebecca Cann, Mark Stoneking e Allan Wilson. Usando ferramentas da genética molecular, eles analisaram um tipo específico de material genético – o DNA mitocondrial, transmitido aos descendentes apenas pela mãe – de 147 pessoas de diferentes regiões geográficas do mundo. Concluíram que a mulher que teria dado origem à parte dos seres humanos atuais seria uma africana que teria vivido 150 mil anos atrás, que se tornou conhecida no mundo todo como a Eva mitocondrial.

A principal crítica de Templeton a esse trabalho é que, ao identificar a origem do homem moderno na África, os autores assumiram que esse resultado justificava a hipótese de substituição. Assim, excluíram outras possibilidades – como a do surgimento simultâneo do Homo sapiens também na Ásia, conhecido como modelo multirregional – sem seguir os preceitos mais básicos do método científico e realizar testes estatísticos que permitissem eliminar as hipóteses alternativas. Segundo Templeton, agindo desse modo Rebecca, Stoneking e Wilson apenas demonstraram que a teoria out-of-Africa era compatível com os dados, mas não comprovaram que os outros modelos não eram.

EDUARDO CESAR Ontem e hoje: Homo erectus, ancestral do homem moderno (centro) e do neandertal (direita) que podem ter se relacionadoEDUARDO CESAR

Incomodado com essa escolha arbitrária, Templeton, que havia desenvolvido uma forma de análise genética que reúne grupos por proximidade genética e geográfica, imaginou uma forma de tentar eliminar os modelos que não fossem compatíveis com os dados genéticos. O raciocínio é simples: se após deixar a África entre 100 mil e 50 mil anos atrás o Homo sapiens tivesse eliminado as outras espécies sem deixar descendentes com elas, o material genético dos seres humanos atuais teria origem exclusivamente africana. “Se isso fosse verdade, a contribuição genética de populações humanas de outros continentes teria sido eliminada”, explica o biólogo Reinado Alves de Brito, da Universidade Federal de São Carlos, ex-aluno de doutorado de Templeton.

Não foi o que se encontrou. Analisando 25 trechos do material genético de populações atuais de diferentes partes do mundo, Templeton constatou que alguns desses trechos apresentavam contribuição de ancestrais que viveram na Ásia em um período anterior a 130 mil anos atrás, antes de o Homo sapiens deixar a África pela primeira vez, como descreve em uma série de artigos publicados nos últimos anos na Evolution. O que teria então se passado?

Para Templeton, os dados mostram que a colonização dos outros continentes começou muito antes, cerca de 1,9 milhão de anos atrás com um ancestral da nossa espécie – o Homo erectus, que o biólogo norte-americano Jared Diamond classificou como sendo mais que um macaco, mas menos que um humano – deixando a África rumo à Ásia. A essa primeira saída teriam se seguido duas outras: uma há 650 mil anos e a mais recente há 130 mil anos. Cada vez que esses ancestrais humanos com características um pouco menos arcaicas deixavam a África e topavam com um grupo que havia saído antes, eles cruzavam e deixavam descentes. “Quando se encontravam, eles faziam amor e não guerra”, diz Templeton, para quem o gênero Homo é uma linhagem contínua que se diferenciou aos poucos.

Muitos não concordam. “Do ponto de vista teórico, é possível que esse cruzamento tenha de fato ocorrido. Mas, avaliando a distribuição dos fósseis e dos registros arqueológicos, não parece tão verossímil”, comenta o paleoantropólogo Danilo Bernardo, do Laboratório de Estudos Evolutivos Humanos da Universidade de São Paulo (USP).

Um dos pesquisadores que discordam frontalmente de Templeton é o biólogo suíço Laurent Excoffier, da Universidade de Berna, autor de um programa de computador de análise de genética de populações usado no mundo todo. Em Porto Alegre, Excoffier apresentou os resultados de seu trabalho mais recente, feito em parceria com Nelson Fagundes e Sandro Bonatto, da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, e publicado em outubro nos Proceedings of the National Academy of Sciences. Nesse estudo, feito em colaboração com o geneticista Francisco Salzano, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, eles seqüenciaram 50 trechos do material genético extraído de 30 indivíduos da África, da Ásia e da América do Sul.

Usando um método que eles próprios desenvolveram, calcularam como cada um desses trechos se modificou ao longo de milhares de anos e tentaram ver qual entre oito modelos de evolução humana explicaria melhor as diferenças genéticas entre as populações atuais. Concluíram que o mais provável era justamente o modelo out-of-Africa, rejeitado por Templeton. De acordo com os cálculos do grupo, o Homo sapiens teria surgido há 140 mil anos e um grupo de 600 indivíduos teria deixado a África há 50 mil anos. “Esses resultados estão de acordo com o que a maior parte dos pesquisadores acredita ter ocorrido”, diz Bonatto.

Como explicar resultados tão discrepantes? Na opinião do pesquisador gaúcho, Templeton teria partido de um pressuposto errado. Mesmo que o Homo sapiens tenha eliminado completamente as outras espécies de hominídeos que encontrou sem deixar descendentes em comum, uma parte do seu material genético deve ser muito antiga, herdada da espécie ancestral africana. Já Templeton critica a amostra de apenas 25 pessoas analisada por Excoffier e o grupo gaúcho. Ao menos em um ponto Templeton e Excoffier concordam. Com mais informação genética de mais pessoas ao redor do globo, como a que vem sendo coletada no projeto Genográfico humano, seus resultados devem se tornar mais precisos e, talvez, revelar quem está certo.

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