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José Goldemberg

José Goldemberg: De crítico a arauto

Voz de oposição às usinas nucleares e um dos pioneiros na defesa do etanol, o ex-reitor da USP faz um balanço de 60 anos de vida acadêmica

MIGUEL BOYAYANPrimeiro foi a revista Time que em dezembro de 2007 citou o físico e ex-reitor da Universidade de São Paulo (USP) José Goldemberg numa lista de heróis mundiais do meio ambiente, em reconhecimento a um artigo que ele escreveu em 1978 na revista Science antecipando as vantagens ambientais do etanol. Depois foi a vez da Asahi Glass Foundation, do Japão, que em junho laureou Goldemberg com seu prêmio Planeta Azul, com direito a 50 milhões de ienes (o equivalente a R$ 800 mil), por “ter dado grandes contribuições na formulação e implementação de diversas políticas associadas a melhoras no uso e na conservação de energia”, com destaque para um conceito formulado por ele segundo o qual, para se desenvolver, os países pobres não precisam repetir paradigmas tecnológicos trilhados no passado pelos ricos. No mesmo mês, o Instituto de Estudos Avançados da USP promoveu um colóquio para discutir o futuro da USP e do país e homenagear os 60 anos de carreira universitária de Goldemberg, abordando seus temas de interesse: ciência, energia, universidade, tecnologia, meio ambiente. A safra de homenagens deixou o físico satisfeito, mas algo constrangido. “Essa coisa é sempre embaraçosa. Por que escolhem você se outros também deram contribuições?”

Aos 80 anos, casado pela segunda vez, pai de quatro filhos e avô de cinco netos, o gaúcho José Goldemberg segue como uma das principais referências em planejamento energético do país. Conquistou esse status na década de 1970, depois de mais de 20 anos de trabalho como professor de física nuclear, para se tornar uma voz crítica à construção de usinas atômicas planejadas pelos governos militares. Foi presidente da Sociedade Brasileira de Física e da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), posições que o credenciaram a ocupar cargos importantes após a redemocratização: presidente da Companhia Energética de São Paulo, de 1983 a 1986, reitor da Universidade de São Paulo, de 1986 a 1989, secretário do Meio Ambiente e de Ciência e Tecnologia e ministro da Educação no governo Collor, de 1990 a 1992, isso sem que tais cargos tenham causado hiatos em sua produção acadêmica. De 2003 a 2007 ocupou a Secretaria Estadual do Meio Ambiente. Atualmente permanece na ativa na USP, como pesquisador do Centro Nacional de Referência em Biomassa do Instituto de Eletrotécnica e Energia (IEE/USP), e coordena a Comissão de Bioenergia do governo paulista. Na entrevista a seguir, Goldemberg relembra sua trajetória acadêmica, fala do futuro do etanol e da energia nuclear e discute as perspectivas da universidade brasileira.

Os organizadores do prêmio Planeta Azul destacaram a sua contribuição na pesquisa sobre racionalização do uso de energia, com ênfase no conceito de leapfrogging, ou “salto tecnológico” em energia que o senhor formulou. Qual a importância desse conceito? 
Até a crise do petróleo, na década de 1970, os economistas achavam que a renda per capita era ligada de maneira indissociável ao consumo de energia. Essa relação linear foi desacreditada naquela própria década. Eu estava trabalhando em Princeton e nós começamos a perceber que a razão pela qual a energia crescia junto com a renda per capita era simples: não se otimizava o sistema. As lâmpadas eram ineficientes, assim como as geladeiras e os automóveis. Quando se percebeu que as reservas de energia não eram infinitas e representavam um peso crescente na economia e nos gastos pessoais, as pessoas começaram a otimizar e daí se desacoplaram  energia e crescimento da renda. Foi feito um esforço muito grande nesse sentido nos países ricos. Acontece que sou de um país em desenvolvimento. Num país como o nosso, fazer a pregação de que é preciso usar menos energia simplesmente não pega. Parece até um método de manter as pessoas na pobreza. Aí percebi um dos motivos pelos quais essa alegação era feita. Era que, a cada vez que se instalava alguma coisa no Brasil, usava-se uma tecnologia antiga. O Banco Mundial usava isso como estratégia. Imaginava-se que os países  em desenvolvimento deveriam introduzir tecnologias consagradas. Caso contrário não haveria gente para fazer a manutenção. Vi que repetir esse caminho não era necessário, que se poderia pular na frente, daí o nome leapfrogging.

Que exemplos o senhor daria de “salto tecnológico”?
O melhor é o telefone celular. Como a telefonia fixa é muito cara – é necessário instalar cabos – freqüentemente ela não é fornecida de forma adequada nos países em desenvolvimento. Hoje, com uma antena, atende-se uma região rural que demoraria anos para receber cabos. Veja o caso da siderurgia. Ela foi introduzida no Brasil por Volta Redonda, que se tornou um lugar terrivelmente poluído. Depois o parque siderúrgico nacional foi se desenvolvendo e as siderúrgicas se tornaram limpas porque o Brasil já não comprou mais dos Estados Unidos, comprou do Japão. Todo conceito, quando você desenvolve, chama atenção. Agora parece uma coisa trivial. Mas progresso é assim mesmo. Só é trivial depois. O álcool também foi uma maneira de saltar na frente.  O Brasil desenvolveu um combustível renovável para substituir a gasolina. Não estamos repetindo a trajetória do passado.

Em 1978 o senhor escreveu um artigo que foi lembrado agora pela revista Time como premonitório, por mostrar as potencialidades ambientais do etanol. Que perspectiva vê para o etanol brasileiro?
A Time me colocou como um dos heróis do meio ambiente – como quem vê o que vai acontecer para a frente. Quero me justificar. Havia outras pessoas envolvidas nesse programa do álcool e eles escolheram a mim. Essa coisa é sempre embaraçosa, mas é a percepção dos outros. Minha visão é a seguinte: em 1978, o etanol foi promovido pelo governo porque o preço do açúcar no mercado internacional estava baixo. Além disso, o Brasil tinha uma conta de importação de  petróleo enorme. Os usineiros e algumas pessoas do governo acharam que  desviar um pouco do açúcar para produzir etanol seria bom, porque ia resolver o problema dos usineiros e reduzir a importação do petróleo. Refletindo sobre o assunto, eu me perguntei: “Tem vantagem para o usineiro e para a Petrobras, mas e do ponto de vista ambiental?”. Quis fazer um exercício numérico, coisa que físico sabe fazer. Quanta energia fóssil se está usando para produzir o etanol? O trabalho de 1978 é isso: um cálculo. Verificamos uma coisa interessante. Para produzir um litro de etanol, gasta-se aproximadamente um décimo de litro de combustível fóssil. É pouco e há uma razão clara para isso. A energia necessária para produzir etanol vem do bagaço. Numa destilaria de álcool, não é preciso importar combustível – o combustível é o bagaço. Portanto, o etanol é, no fundo, energia solar: o sol bate, a gramínea cresce, você a liquefaz com um procedimento químico e gera etanol. Do ponto de vista ambiental é uma beleza, pois não tem as impurezas da gasolina e pouco contribui para o efeito estufa.

No artigo o senhor fez comparações com outras culturas, não é? 
Sim, e a comparação deixou tudo evidente. Como o milho não tem bagaço, é preciso trazer energia de fora da destilaria. O etanol de milho é produzido nos Estados Unidos com carvão. Claro que existe uma vantagem, pois não se pode colocar carvão dentro do motor de seu automóvel. Mas, do ponto de vista ambiental, é como trocar seis por meia dúzia.

Quais são as perspectivas do etanol no médio e no longo prazos? 
No momento o etanol ocupa uma fração pequena de terra. A agricultura no Brasil ocupa uma área de 60 milhões de hectares. Em cana-de-açúcar, utilizam-se cerca de 6 milhões, ou seja, 10%. Metade disso é usado para etanol. Não é essa a impressão que se tem porque está muito concentrado em São Paulo, mas, olhando para o Brasil, não é muita coisa. O nosso etanol substitui 50% da gasolina usada no país, o que corresponde a 1,5% da gasolina que se usa no mundo todo. O que vai acontecer daqui a dez anos está mais ou menos traçado porque o sistema está em expansão. O etanol do Brasil, que representa 1,5% do consumo de gasolina no mundo, provavelmente vai subir para 7% ou 8%. Haverá cana-de-açúcar suficiente para isso usando provavelmente 10 milhões de hectares. Já há uma expansão, mas é sobre pastagens que criam bois de uma maneira extremamente ineficiente. A idéia de que o álcool vai provocar o desmatamento da Amazônia ou avançar em outras culturas não é, na prática, o que está ocorrendo. Se pensarmos em substituir 100% da gasolina no mundo, aí realmente é o caso de se preocupar. Nos próximos dez anos, acho que o Brasil ainda tem uma posição confortável. Nos Estados Unidos a situação é bem mais difícil.

MIGUEL BOYAYANPor conta da tecnologia que eles adotam e dos subsídios… 
E também porque eles não têm para onde expandir. A agricultura norte-americana ocupa cerca de 100 milhões de hectares – um pouco menos do dobro do Brasil. Eu perguntei para um amigo americano: “Por que vocês não expandem?”. Ele respondeu: “Expandir para onde?”. Nós não nos damos conta de que os Estados Unidos têm desertos imensos – a Califórnia praticamente toda, Nevada, é tudo deserto. Há cadeias de montanhas enormes. O Brasil tem uma capacidade de expandir considerável.

Mas temos desafios tecnológicos a vencer em relação ao etanol. Como o senhor vê as perspectivas do etanol de segunda geração, extraído da celulose? 
Creio que num horizonte além de dez anos teremos a tecnologia de segunda geração. Os Estados Unidos estão numa situação difícil porque estão contando com a chegada da segunda geração dentro de três a quatro anos. Acho que isso não vai ocorrer.

Nos últimos anos, o Brasil não tem investido tanto quanto outros países no etanol de celulose…
É natural. Afinal, o etanol de primeira geração do Brasil tem êxito, ao contrário de outros países. A produtividade cresceu quase 4% por ano durante três décadas, considerando os ganhos industriais e agrícolas. E sem usar manipulação genética, que é o que se busca agora. Tudo o que temos é primeira geração. Segunda geração é a celulose. A celulose é formada por uma longa cadeia de sacarose e o problema é quebrar a celulose em sacarose para depois fermentá-la. O Brasil está entrando nisso agora. Há muitos trabalhos em busca do etanol de segunda geração, mas ainda fragmentados. Falta uma articulação e falta, sobretudo, chegar a plantas piloto. Uma coisa é fazer uma experiência na bancada. Outra é produzir em grande escala. A FAPESP lançou um programa de bioenergia, o Bioen, para acelerar o desenvolvimento. Também está em preparação um programa que o governo do estado deverá lançar – que é grande – e pelo menos dobraria os recursos que a FAPESP investe nessa área, também para acelerar o desenvolvimento de tecnologias de segunda geração. Sou o coordenador da Comissão Estadual de Bioenergia, que foi constituída pelo governador com essa finalidade. Nosso relatório está na fase final de preparação e o governo deve tomar medidas nesse sentido brevemente. A idéia é estimular de uma maneira muito significativa as pesquisas de segunda geração.

Queria falar um pouco do início da sua carreira. Não entendi a efeméride dos 60 anos de USP, pois o senhor ingressou no curso de física da universidade em 1946, há 62 anos. 
A resposta da charada é a seguinte: só em 1948 eu me tornei bolsista e passei a trabalhar para a USP.

Como é que era a universidade naquela época?
Vim para São Paulo em 1946. Fiz curso secundário em Porto Alegre numa escola muito boa, o Colégio Estadual Julio de Castilhos, que foi o berço do positivismo no Brasil. Quando estava no colégio, já era evidente que queria estudar física. E o lugar onde tinha física no Brasil era a USP. Isso em 1946. A universidade havia sido criada em 1934 – tinha 12 anos de vida. Nessa época, ainda estavam por aqui alguns daqueles professores estrangeiros que tinham vindo para o Brasil para escapar do nazismo e do fascismo. No Departamento de Física da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (FFCL) tinha um professor italiano, Gleb Wataghin, que acabou dando o nome para o Instituto de Física da Unicamp. Eu acho que aí houve uma injustiça histórica, porque o nome dele devia ter sido dado ao Instituto de Física da USP. Wataghin tinha sido estudante de Enrico Fermi, que teve um papel muito importante em desenvolver a energia nuclear. Era um indivíduo com uma visão muito boa de física e vim atraído por isso. Tinha outros professores que eram da segunda geração, como o Mário Schenberg e o Marcello Damy de Souza Santos. Havia um sentimento de ciência viva na ocasião. Alguns desses professores já tinham estado no exterior, já tinham publicado, já faziam ciência de Primeiro Mundo. Comecei a trabalhar com física nuclear experimental. A FFCL ainda estava em fase de ascensão, lutando contra as faculdades tradicionais. Havia um sentimento de estar no meio de uma batalha: a Faculdade de Direito era conservadora, a Politécnica não queria saber de ciência etc.

Ao mesmo tempo, essas unidades, que já existiam antes da fundação da USP, atraíam mais alunos do que os cursos oferecidos pela FFCL, não é isso? 
É, era uma época heróica. O sucesso da evolução da universidade levou a uma melhoria das faculdades todas. A reforma universitária de 1968 colaborou para que isso ocorresse. Mas logo depois, em 1952, eu fui para o exterior e comecei a desenvolver uma carreira parte no estrangeiro, parte aqui. Naquela época, se você escolhia uma carreira na área de ciências, isso era considerado até mesmo pela sua família como um voto de pobreza.

E era mesmo? Ainda hoje a carreira acadêmica traz recompensas que não seriam exatamente materiais… 
Isso é mais recente. A USP, é claro, foi pioneira em algo fundamental. Criou o regime de dedicação exclusiva. Ouça um ex-reitor falando: se tivesse que apontar uma coisa que tornou viável a USP, diria que foi o regime de dedicação exclusiva. Sem isso, não seria possível desenvolver atividades científicas, porque o indivíduo, para se manter, precisava dar aulas numa porção de lugares. Depois das várias reformas que a universidade teve e de alguns reitores muito agressivos – no bom sentido – como o Antônio de Ulhôa Cintra e o Miguel Reale, a USP cresceu e conquistou mais recursos. E, finalmente, na época em que fui reitor conseguimos autonomia financeira, que fez uma diferença brutal. Isso não significa que a universidade tenha que se desligar do resto da sociedade e do governo, mas é essencial que ela saiba com que recursos vai contar.

Por que o senhor mudou o eixo de sua carreira nos anos 1970, trocando a física de bancada pelo interesse em energia? 
Em meados de 1960 passei dois anos na Universidade de Stanford, que tinha o melhor acelerador nuclear para elétrons na época, e realizei trabalhos que tiveram uma repercussão significativa. Recebi vários convites para trabalhar no exterior, com posições muito boas: fui convidado para ser professor titular na Universidade de Toronto. Recebi também convite da Universidade de Paris e fui para Paris. É possível que, se não tivessem ocorrido eventos significativos na minha vida pessoal, teria me tornado professor titular da Universidade de Paris ou da de Toronto. Mas a minha primeira esposa faleceu. Voltei para o Brasil com meus filhos pequenos e achei que precisava construir minha vida no Brasil. Isso foi há mais de 40 anos. Era professor assistente e fiz concurso para titular de física na Escola Politécnica. Quando começou a repressão política do regime militar, já tinha responsabilidades administrativas. Me tornei diretor do Instituto de Física, que foi criado em 1970. Ele englobou todas as atividades de física da USP, incluindo a Escola Politécnica.

Foi aí que teve início a sua militância? 
Não era uma militância partidária. Mas não podia ficar cego diante do que estava acontecendo no país e passei a me envolver em questões da sociedade. Me tornei presidente da Sociedade Brasileira de Física, depois presidente da SBPC e me envolvi muito no debate nuclear. Por causa da minha formação, sabia o que estava se discutindo. Depois o Franco Montoro foi eleito governador de São Paulo e me nomeou presidente da Cesp. E, em seguida, me tornei reitor. Uma coisa positiva é que consegui manter minha atividade científica. Minha lista de publicações não sofreu hiatos. Só deixei, a certa altura, de publicar em revistas de física para fazê-lo em publicações mais abrangentes.

Neste mesmo espaço, na edição de julho de Pesquisa FAPESP, o ex-ministro do Planejamento João Paulo dos Reis Velloso abordou uma série de mudanças positivas no ambiente acadêmico brasileiro implementadas na época da ditadura, como o sistema de pós-graduação. O senhor, que foi uma voz de oposição naquela época, concorda com essa análise?  
Apesar da repressão, o movimento dos militares tinha fortes componentes modernizadores. Talvez por isso a relação dos militares com a ciência e a tecnologia foi sempre dúbia e complexa. Eles queriam um país grande, militarmente forte, e tinham o bom senso de identificar que, para chegar lá, precisariam dos cientistas. Eles iniciaram o programa nuclear – de uma forma equivocada, mas começaram –, o programa espacial, e acabaram aceitando essas idéias para a pós-graduação, que foram medidas efetivas de modernização. Mas o governo militar também estava preocupadíssimo com a ameaça do comunismo e com os fantasmas da Guerra Fria. Perseguiu professores como o Mário Schenberg, aposentaram o Fernando Henrique. Mas o foco eram as ciências sociais. Vários de nós contudo não precisaram sair do país, eu inclusive. Fiz oposição clara ao programa nuclear. As pessoas perguntam: “O governo aposentava todo mundo, por que não se livraram de você?”. Eles devem ter achado que, eliminando esse tipo de pessoa, estariam perdendo um tipo de competência de que precisariam. Mas o sistema criado por eles acabou ficando muito distante da atividade industrial. Lembra um pouco, sob esse ponto de vista, a extinta União Soviética, que manteve os cientistas relativamente bem cuidados mas afastados da indústria. Embora tenha se tornado uma grande potência militar, era uma potência de terceira qualidade no que se refere a bens de consumo. Aqui no Brasil não chegamos a isso, mas o sistema científico ainda está longe de atividades em escala industrial. Creio que esse problema está ligado a essa herança.

MIGUEL BOYAYANNos anos 1970 o senhor se manifestou fortemente contra a construção de usinas nucleares, que hoje começam a ser reabilitadas em vários países. A opção da energia nuclear seria oportuna para o Brasil hoje?  
Na década de 1970 eu me opus ao desenvolvimento nuclear em grande escala com a total tranqüilidade de que estava certo. Em 1992 realizou-se o Rio-92, a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente. Essa conferência durou 15 dias e eu estava lá – era secretário de Ciência e Tecnologia do governo federal e acumulava o Meio Ambiente. Estava no Rio passeando na praia, no calçadão, e encontrei o general Costa Cavalcanti, que tinha sido ministro das Minas e Energia e do Interior nos governos militares. Ele me disse: “Olha aqui, professor, vocês tiveram um papel muito importante no desenvolvimento energético no Brasil, maior do que vocês pensam. Em 1975 eu era o presidente da Itaipu Binacional e estava começando a construção de Itaipu. A grande discussão que havia dentro do governo era se nós devíamos completar Itaipu ou dedicar os recursos só para a área nuclear. A oposição dos cientistas reforçou a nossa posição dentro do governo”. Foi um testemunho não solicitado e mostrou que nós tínhamos razão. A tentativa de introduzir a energia nuclear no Brasil naquela época era intempestiva. Havia essas enormes possibilidades, como Itaipu, que é a maior hidrelétrica do mundo. Agora, passados 30 anos, a energia nuclear está sendo reavaliada. Mas ela ainda é extremamente cara por causa da complexidade e das preocupações com a segurança. Sem dúvida, ela tem vantagens. Não emite gases de efeito estufa, praticamente. As objeções de caráter ambiental diminuíram porque desde 1986 não há nenhum acidente grande. Mas creio que ainda não é tempestivo para o Brasil. Se o governo colocar uma grande quantidade de dinheiro em energia nuclear, que é cara, deixará de fazer outras coisas.

E hidrelétricas na Amazônia? O senhor as considera tempestivas? 
Sim. Acho que a utilização desse potencial hidrelétrico da Amazônia – não todo, mas parte dele – é inevitável. Mas temos alguns problemas: elas ficam muito longe dos grandes centros consumidores e, portanto, há que se fazer linhas de transmissão e a energia não será barata. Mas não tem jeito. Também há o problema ambiental. É preciso fazer direito. Problemas ambientais existem sempre, porque não se pode construir coisas sem mudar o ambiente. É preciso achar maneiras de minimizar o impacto ou, se isso não for possível, de oferecer compensações.

Quando o senhor foi reitor da USP realizou-se uma reforma nos estatutos que, na época, ajudou a oxigenar a universidade. Agora se discute uma nova reforma. Que o senhor acha desse debate? 
Naquela época, como agora, havia uma pressão grande para uma participação maior de poder. Era uma discussão sobre gestão de poder e isso está naturalmente muito ligado ao que tinha ocorrido em 1968, quando surgiram as idéias de gestão paritária. Gestão paritária não dá certo. Pode sa­tisfazer grupos políticos ou corporativos, mas não resolve os problemas da universidade. O que uma universidade precisa é de uma gestão que funcione. Na reforma de 1988 nós ampliamos muito a participação nos colegiados. Foi ampliada a participação dos alunos e dos docentes de nível inicial. Mas a gestão continuou de uma maneira clara nas mãos do pessoal mais experiente e permanente. Isso continua válido. Ter uma grande participação de estudantes, que vão embora depois de cinco anos, é problemático. E os funcionários acabaram se caracterizando como muito ligados a partidos políticos, uma coisa muito ruim. Eu não acompanhei em detalhes a nova estatuinte, mas achei que as teses levantadas tinham um sabor de déjà vu. Não vi nenhuma idéia muito criativa que ajude a rejuvenescer a USP. Acho que há problemas mais importantes e não vai ser mudando a estrutura de poder que se vai resolver.

Se o senhor tivesse que citar um problema a ser enfrentado, qual seria?  
A burocracia e a falta de liderança. A universidade acabou ficando lenta, parecendo uma dama de idade avançada. As pessoas se queixam da lentidão dos processos e da burocracia envolvida que tem aumentado ao longo dos anos. Isso tem um pouco a ver com os problemas do país. Como a corrupção virou um problema endêmico no país, cada vez inventam mais controles – e quanto mais controles surgem, maior é a lentidão.

Na época em que o senhor foi reitor houve aquela celeuma famosa a respeito da divulgação de uma relação de professores que não tinham produção acadêmica, que ficou conhecida como “lista dos improdutivos”. Como avalia aquele episódio hoje? 
Vejo como extremamente positivo, porque introduziu na universidade a idéia de que é preciso ter aferição. Se há uma característica que norteou o meu trabalho a vida toda é o conceito de mérito e qualidade. Um professor precisa produzir e ser avaliado por juízes independentes. Nos países desenvolvidos é assim. Na época havia setores da universidade que publicavam pouco e se recusavam a ser avaliados. Reivindicavam que a avaliação fosse interna, dentro dos próprios departamentos. Isso criava compadrio. Esse cenário mudou completamente, não só dentro da USP mas no Brasil todo. Hoje, se você é professor da USP, a Comissão de Pós-Graduação, a Capes, o CNPq, a FAPESP estão exigindo o tempo todo que você prepare relatórios anuais com suas publicações. A nota que a Capes dá depende do nível de publicações – têm publicações que valem, outras que não valem –, que ficou sofisticadíssimo. Sob esse ponto de vista, a batalha pela aferição e pela avaliação da qualidade foi vitoriosa.

Que balanço o senhor faz da Conferência Rio-92? 
Foi importante e abriu caminho para uma nova visão dos problemas ambientais, que passaram a ser responsabilidade dos governos. O fato de que os governos tinham que tomar medidas ficou claramente configurado naquela ocasião. Tanto que da Conferência de 92 surgiu o Protocolo de Kyoto em 1997. Com a postura difícil dos Estados Unidos, a implementação dos acordos sofreu um atraso enorme. Há uma luta em andamento. Eu tenho acompanhado esta luta e estou convencido de que o Itamaraty não é suficientemente pró-ativo nessas questões.

Que postura o senhor esperava da diplomacia brasileira?  
Os Estados Unidos se recusaram a assinar o Protocolo de Kyoto pelo seguinte: eles não querem tomar as medidas para reduzir as emissões se os outros não tomarem, inclusive os países em desenvolvimento. Por quê? Porque se eles as tomarem sozinhos, vai se criar imediatamente um problema de competitividade comercial. Alguns produtos vão ficar mais caros nos Estados Unidos do que nos outros países. Em contrapartida, os países em desenvolvimento argumentam: “Isso não é justo porque nós chegamos tarde ao desenvolvimento e agora temos direito a mais emissões”. Acontece que não há mais espaço para isso. A China está emitindo tanto quanto os Estados Unidos. Não importa se o consumo per capita é diferente. Se você se colocar no lugar da atmosfera, o que vem da China até superou o que vem dos Estados Unidos. O Brasil fica defendendo uma tese obsoleta, de que historicamente nós não somos responsáveis pelo problema e, portanto, temos o direito a nos desenvolver dessa maneira. Lembro o meu conceito de leapfrogging: não é verdadeira a idéia de que o Brasil não pode crescer se adotar metas e reduzir as emissões. Basta adotar tecnologias modernas. Temos uma matriz energética limpa e o governo poderia tomar uma posição mais pró-ativa. O Brasil está tirando as castanhas do fogo para a China, não para si mesmo – exceto pelo que ocorre na Amazônia. E o que está ocorrendo na Amazônia é uma situação vergonhosa que tem que acabar.

Em sua passagem pelo Ministério da Educação (MEC), o senhor teve as universidades federais sob o seu comando. Hoje elas estão se esforçando para aumentar o número de vagas. Há um programa forte no sentido de dar acesso a mais gente. Elas têm condição de crescer com característica de universidades de pesquisa? 
Como ministro da Educação, tentei aplicar o modelo da USP para o Brasil. Também tentei dar às universidades federais um pouco mais de autonomia financeira. Não funcionou. Sob esse ponto de vista, minha gestão não teve resultado. Eu achava que, sem autonomia financeira, o reitor é um funcionário de terceira categoria do MEC. Os reitores estavam o tempo todo no meu gabinete dizendo que a verba tinha acabado. Era verdade, porque havia inflação. Como era muito difícil arrumar dinheiro dentro do governo, eles iam ao Senado e conseguiam que se aprovasse uma emenda aqui, outra lá. Ou seja, viraram despachantes de luxo para conseguir mais verbas. Isso os impedia de fazer planejamento. Eu descobri, no processo, que essas universidades na verdade não queriam autonomia. Era só conhecer um senador influente para arrumar uma verba especial. Eu me lembro de um caso concreto em que eu tinha dado dinheiro para certa universidade, fora do orçamento, para construir uma biblioteca. Uns meses depois fui lá e quis olhar a biblioteca. Ela não tinha sido construída. O dinheiro foi usado para fazer um restaurante para os estudantes. Na visão do reitor, o bandejão era mais importante porque os estudantes estavam pressionando. Eu disse: “Pois é; mas isso aqui não é o Ministério de Assistência Social”. Aprendi que o modelo da USP não pode ser aplicado para todas as universidades federais.

Por quê? 
O modelo da USP é um modelo de elite. E não é que eu a reconheça como elitista. É que querem entrar na USP 100 mil alunos por ano e só há 7 mil vagas. Então tem que haver uma seleção. Os outros vão para faculdades particulares. A impressão que tenho, e compartilho com colegas que se dedicavam mais a isso, como a Eunice Durham, é que o sistema universitário brasileiro precisa ser repensado. Além da USP, temos poucas universidades de nível internacional, como a Unicamp. Depois, as universidades particulares têm dois terços dos alunos. As universidades federais ficaram num limbo entre essas duas categorias. Não conseguem se transformar em universidades de pesquisa nem se dedicam ao ensino de massa. Alguns dos meus colegas acham que se deviam criar colleges aqui no Brasil, a idéia de que as universidades de todos os estados sejam iguais à USP, pelo menos como meta, não é realista.

MIGUEL BOYAYANO senhor participou do governo Collor, que foi bastante criticado pela comunidade científica por iniciativas como a tentativa de extinguir a Capes. Como o senhor avalia o período?
No que se refere ao meio ambiente, o governo Collor teve um papel bom. Apoiou a Conferência Rio-92. Na ocasião eu acabei sendo secretário de Meio Ambiente, com status equivalente ao de ministro. Foi um período ótimo. Criamos reservas indígenas contíguas quando muitos desejavam retalhá-las. Na área de ciência e tecnologia, acho que também foi bom. Acabamos com esse negócio de produzir armas nucleares escondido e acabamos com a reserva de mercado da informática, o que ajudou a modernizar o país. Essa questão da Capes era da esfera do Ministério da Educação e foi definida antes de o governo começar. Um pessoal que veio de fora achava que tinha uma duplicação entre a Capes e o CNPq, pois os dois davam bolsas para o exterior. Era uma idéia de administrador de empresa. Tenho duas pessoas fazendo a mesma coisa – manda uma embora. Depois tudo foi esclarecido e o governo voltou atrás. Eu não conhecia o Collor antes de o governo começar. Recebi um telefonema no dia 14 de março, véspera da posse. Houve episódios menos conhecidos. Em dado momento, o governo estava pensando em emendar a Constituição num esforço para modernizar o país. Surgiram várias propostas e uma delas propunha a eliminação do ensino gratuito das universidades. Eu me opus violentamente dentro do governo e a idéia foi abandonada.

Foi a que altura do governo? 
Na metade de 1991. Porque 1992 já foi tomado pela crise que levou ao impeachment. Mas me lembro que argumentei e a idéia foi abandonada. Os economistas acham isso: “Ah, ensino gratuito é elitista”. Achar que os problemas da universidade serão resolvidos com os alunos pagando é uma idéia completamente irrealista. São coisas que apareceram na ocasião, mas a presença de pessoas como eu e a professora Eunice Durham foi importante. E é claro que nós não tivemos absolutamente nada que ver com a corrupção do Collor. Ela envolvia outras áreas. E não era nem por virtude. Na nossa área de atuação não havia dinheiro suficiente para atrair o interesse daquele pessoal.

O fato de o governo Collor ter terminado como terminou prejudicou-o de alguma forma?
Não creio. Fui o único ministro que pediu demissão no meio da crise. Em setembro ficou evidente que aquela Operação Uruguai era uma coisa armada e eu pedi demissão. Na época nenhum outro ministro fez isso. O único impacto que houve na minha ida ao governo federal é ter me incompatibilizado com alguns colegas da universidade e com a SBPC. Na ocasião, o conselho da SBPC emitiu um manifesto se associando às propostas de impeachment do presidente. Eu era o ministro e fui à reunião da sociedade explicar que eu estava lá como um cientista que tinha se tornado ministro por escolha do presidente e achava que a SBPC não tinha nada que se manifestar em assuntos políticos. Ela se manifestou pedindo o impeachment e pouco depois eu me demiti. Na minha opinião, a SBPC não foi criada para isso, mas para defender os cientistas e a ciência. E não tem nada que ter muita aproximação com o governo – o que ocorreu recentemente, algo que não vejo com nenhum prazer. Isso me magoou um pouco. Mas não creio que tenha me prejudicado, pois trabalhei com vários governos. O governo Fernando Henrique Cardoso porém sistematicamente me evitou. Em 2003 o governador Geraldo Alckmin me convidou para ser secretário estadual do Meio Ambiente.

Neste hiato o senhor se dedicou à carreira acadêmica? 
Foi um período bom. Primeiro fui para a Suíça e depois para os Estados Unidos. Não fiquei o tempo todo. Sempre fiquei indo e vindo, mas na Suíça eu fiquei um ano.

Os colóquios do IEA que homenagearam o senhor trataram de diversos assuntos como ciência, energia, universidade, tecnologia, meio ambiente e o futuro. O senhor acha que esses temas resumem as suas preocupações, seus interesses, ou faltou algum? 
Não. A organização fez um esforço para promover uma discussão em cada uma das áreas em que eu atuei. Naturalmente, as perguntas sobre o futuro ficaram sem resposta. Algo que emanou do simpósio porém foi uma discussão sobre o que precisa ser feito nos próximos dez anos para puxar a universidade do 150º lugar do ranking internacional para o 50º. Acho que é uma boa meta.

É factível? 
Acho que sim. Mas isso também vai depender de ousadia. O fato é que a universidade ainda está muito distante do setor produtivo, ao contrário do que acontece com as grandes universidades de pesquisa do exterior. O sistema universitário brasileiro está crescendo, mas não está conseguindo atender aos interesses da sociedade.

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