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Literatura

É batata mesmo?

Estudo analisa linguagem das peças de Nelson Rodrigues

LEWY MORAES/FOLHA IMAGEMNão foram poucas as vezes em que o dramaturgo e cronista Nelson Rodrigues (1912-1980) afirmou que seu teatro e ele mesmo não seriam como se tornaram se não tivesse sofrido “na carne e na alma, se não tivesse chorado até a última lágrima de paixão” o assassinato de seu irmão Roberto Rodrigues – morto em 1929 na redação do jornal da família. Dizia isso para justificar a intensa dramaticidade de suas tragédias, que transportou para o universo popular do Rio de Janeiro e, desse modo, revolucionou o teatro brasileiro. Essa abordagem, no entanto, não teria a abrangência que conseguiu se ele não tivesse se inspirado na oralidade das ruas para construir seus diálogos cheios de gírias e alguns palavrões – uma forma de expressar que feriu tanto os puristas quanto os moralistas e lhe rendeu insultos públicos de pornógrafo.

Mais de cinco décadas depois, porém, uma discussão parece pertinente: as peças de Nelson correm o risco de se desgastar em sua maior virtude, a inovação da linguagem, uma vez que, no decorrer de gerações, expressões e gírias tendem a ser abandonadas e esquecidas? Com absoluta convicção, a pesquisadora Wilma Terezinha Liberato Gerab acredita que não. Autora do doutorado O discurso como ele é… nas tragédias cariocas de Nelson Rodrigues, orientado por Marli Quadros Leite e defendido na USP, ela avalia que a palavra desgaste não é a adequada para discutir o assunto. “O que ocorre é a evolução natural da língua.” Segundo ela, a linguagem coloquial que Nelson utilizava para suas personagens mostrava que o dramaturgo não possuía uma visão purista da linguagem. “Os diálogos das tragédias cariocas mostram personagens que se relacionam com a linguagem efetivamente praticada e não a idealizada.”

A inovação, ou a modernidade, da linguagem do autor, afirma Wilma, tem base em algo mais que o simples aproveitamento de características estilístico-gramaticais da linguagem comum ou popular. O discurso das personagens dessas tragédias cariocas, prossegue ela, foi considerado inovador para a época porque não se baseou apenas na utilização de um vocabulário típico da linguagem praticada correntemente, mas também no aproveitamento de estratégias discursivas, conversacionais e dos recursos gramaticais dos diálogos reais. “Em outros termos, podemos afirmar que o autor construiu seus diálogos baseando-se na imitação/representação do discurso que ocasiona os enunciados na realidade discursiva, tendo como base a conversação natural.”

Um exemplo do uso de uma estratégia discursiva, em uma situação real que também foi muito utilizada nos diálogos rodrigueanos, cita a pesquisadora em entrevista à Pesquisa Fapesp, aconteceu na eleição para prefeito da cidade de São Paulo de 2008. “Presenciamos na campanha televisiva da então candidata Marta Suplicy o uso da metalinguagem, que consiste em enunciar algo, sem, no entanto, afirmá-lo explicitamente.” O locutor da campanha pergunta ao telespectador: “Vocês sabem se Kassab é casado ou solteiro?”. Há nesse enunciado, diz ela, a insinuação de homossexualidade do candidato. “Isso representa uma estratégia discursiva amplamente utilizada pelas personagens rodrigueanas, que falam sem se comprometer com o que foi dito, conferindo aos diálogos desse dramaturgo verossimilhança com os produzidos em interações naturais.”

Em sua tese, esse aspecto aparece precisamente no diálogo no gênero discursivo do teatro, especificamente nas tragédias cariocas de Nelson, cuja linguagem é analisada na tentativa de compreender como se processa a produção de sentido nos textos. A autora enfatiza como o autor resolve o problema de transformar a conversação natural em conversação literária, levando em conta tanto o perfil sociolingüístico das personagens quanto, principalmente, os problemas interacionais. Para isso, Wilma analisou as peças A falecidaPerdoa-me por me traíresOs sete gatinhos, Boca de OuroO beijo no asfalto, Otto Lara Resende ou Bonitinha, mas ordinária, Toda nudez será castigada e A serpente. “Minha pesquisa enfatizou os diálogos de Nelson Rodrigues, que soam como se fossem, de fato, criados no momento da interação. Esses diálogos são recriações de conversações naturais, produzidos em interações espontâneas.”

Nas tragédias cariocas, concluiu, há diálogos repletos de incompletude sintática acompanhada de completude semântica discursiva. Na sua opinião, isso é próprio de conversações espontâneas. “As personagens conversam entre si com diálogos concisos, carregados de elipses, subentendidos, metamensagens e pressupostos, o que recria a agilidade dos diálogos naturais.” Wilma ressalta que esse discurso ágil e conciso não era comum no teatro brasileiro antes de Nelson, já que as personagens tendiam a travar diálogos mais artificiais, porque os autores, muitas vezes, idealizavam falas rebuscadas, que, tendencialmente, se aproximariam mais da modalidade escrita e menos da modalidade da fala.

A linguagem rodrigueana, portanto, era diferente da que se praticava. “É senso comum que isso se deve à utilização de vocabulário típico da linguagem praticada correntemente e, também, à estrutura gramatical corrente, caracterizada pelo emprego de estruturas que podem apresentar desvios gramaticais. Wilma lembra que o dramaturgo começou a escrever teatro em um Brasil acostumado a assistir a peças que, de maneira geral, eram feitas com a finalidade de divertir a platéia. Assim, se não eram comédias, eram dramas de autores estrangeiros, traduzidos para o português com uma linguagem empolada, desconectada da realidade lingüística. “Sua linguagem (de Nelson) se tornou inovadora porque ele construiu não somente sobre a representação da língua correntemente praticada, em termos de léxico e sintaxe, mas também sobre a imitação do discurso que ocasiona os enunciados praticados.”

Significa, afirma Wilma, que o maior trabalho do autor recaiu na representação de estratégias discursivas e que o léxico e a sintaxe resultam desse trabalho. “Tal uso criativo da linguagem faz com que Nelson Rodrigues seja considerado inovador, porque, em sua época, o teatro, assim como a literatura em geral, era considerado como parâmetro da ‘boa’ linguagem. Não havia, portanto, por parte dos leitores, da crítica e da platéia, em geral, expectativa de encontrar nos livros e no teatro o uso lingüístico dos falantes da época, mas, sim, a expectativa de encontrar uma linguagem conforme a tradição gramatical. Wilma estuda o efeito de sentido de naturalidade que a linguagem teatral de Nelson Rodrigues cria, com diálogos ágeis e dinâmicos, que representam o discurso vivo.

O estilo de linguagem nas peças de Nelson não foi algo que ele estabeleceu de imediato. A autora observa que as peças que antecederam as tragédias cariocas – A mulher sem pecado, Vestido de noiva, Valsa nº 6, Viúva, porém honesta, Anti-Nelson Rodrigues, Álbum de família, Anjo negro, Dorotéia e Senhora dos afogados – retratavam personagens imersas em situações complexas e distantes da realidade, portanto elas conversavam entre si utilizando um discurso que tendia a ser mais elaborado. “A fase seguinte, das tragédias cariocas, iniciada pela peça A falecida, inseriu as personagens, pessoas comuns, em uma realidade próxima ao cotidiano carioca. O dramaturgo não se limitou a copiar a vida real, mas recriou a ‘vida como ela é…’, daí suas personagens utilizarem discursos mais rápidos e ágeis.”

O fato de Nelson Rodrigues ter começado a trabalhar muito cedo no jornal paterno A Manhã o influenciou em seu trabalho de dramaturgo. O corriqueiro da vida era transformado por ele em histórias criativas. “Naquela época, o jornalismo tendia para a subjetividade da notícia. Desse modo, Nelson criava suas histórias sobre fatos simples da vida, sem focalizar apenas o compromisso com a verdade propriamente dita. Essa vivência jornalística, associada aos acontecimentos trágicos de sua vida, como, por exemplo, o assassinato de seu irmão Roberto, foi influência determinante para sua obra. Ele, com sua experiência de falante da língua portuguesa, intuía ao elaborar o discurso utilizado para cada personagem, produzindo diálogos que passavam a idéia de naturalidade da fala espontânea. O discurso das personagens, de maneira geral, conseqüentemente, mostra uma fala distensa, com uso de gírias, expressões populares, ditados e alguns poucos palavrões.”

Outro estudioso de Nelson Rodrigues, Adriano de Paula Rabelo, também não concorda que as peças do dramaturgo venham a perder a virtude da revolução da linguagem. Isso porque nelas a linguagem do cotidiano é recriada esteticamente. “A língua que se desgasta é a que falamos aqui, fora da literatura, no nosso cotidiano. Também não falamos mais como as personagens de Machado de Assis, mas a linguagem utilizada por elas está vivíssima e muito expressiva em suas histórias. Nenhum de nós, cidadãos urbanos do Brasil – e certamente nem mesmo algum habitante do sertão mineiro de hoje –, fala como as personagens de Guimarães Rosa, mas quanta virtude lingüística em suas obras.”

Por outro lado, afirma Rabelo, Nelson tinha tamanho sentimento íntimo da língua brasileira que muitas gírias e coloquialismos utilizados por ele em suas peças, contos, romances e crônicas se incorporaram à língua atual e estão vivíssimos em nossa linguagem cotidiana. “Mesmo a parte que envelheceu de suas gírias e coloquialismos é perfeitamente compreensível, por fazer parte da memória lingüística inclusive das gerações mais jovens.” Isso se dá, exemplifica ele, com expressões como “é batata”, “carambolas”, “papagaio” (exclamações), “uma pinóia”, “é o golpe”, “ih, meu filho”, “sossega, leão”, “gaita”, “erva” (dinheiro), “chispa”.

Rabelo se debruçou sobre o teatro do dramaturgo brasileiro na tese Formas do trágico moderno nas obras teatrais de Eugene O’Neill e de Nelson Rodrigues, orientada por João Roberto Gomes de Faria, defendida na USP no ano passado. Para ele, os estudos sobre o teatro de Nelson sem dúvida enfocam muito mais os temas que a linguagem utilizada pelo autor. “É uma grande lacuna que está por ser preenchida por trabalhos de maior fôlego por parte da crítica literária. A linguagem de Nelson Rodrigues, não somente nos diálogos de suas peças, mas também nos outros gêneros em que escreveu, é tão importante quanto os temas por ele abordados. Estes ganharam sempre grande destaque por causa de seu conteúdo polêmico, dos posicionamentos políticos assumidos pelo autor na conjuntura dos anos 1960 e 1970 e pela persona pública que ele mesmo construiu para si. A linguagem de Nelson em suas obras, porém, é indissociável da própria temática de seus textos.”

Quanto à importância da linguagem empregada nos diálogos das peças de Nelson no processo de modernização do teatro brasileiro, Rabelo diz que é evidente que esse é um dos aspectos fundamentais da verdadeira revolução promovida por ele no teatro nacional. “Antes do sucesso de suas primeiras peças, a cena brasileira era dominada, em suas vertentes mais populares, pelo vaudeville, peça feita exclusivamente para provocar a gargalhada fácil na platéia, e pelo teatro de revista, com seus painéis plenos de musicalidade e humor também fáceis e superficiais.” Em sua vertente mais elitizada, havia certo “teatro sério”, voltado para encenações dos clássicos do teatro estrangeiro. “Não somente a linguagem brasileira era desvalorizada nesse teatro como havia nele muitos atores portugueses, e a dicção portuguesa era considerada a mais adequada em nossos palcos.”

Nelson tinha consciência de que pretendia trazer inovações ao teatro ao trocar a linguagem rebuscada da representação pela forma de falar viva do dia-a-dia? Rabelo acredita num meio-termo entre algo consciente e algo instintivo. No início dos anos 1940, lembra o pesquisador, Nelson era um talento literário latente à espera de um direcionamento. “Talvez sua grande vocação fosse para romancista. Ele não somente era um leitor voracíssimo de toda sorte de romances – de escritores eternos como Dostoiévski e Flaubert à subliteratura de folhetinistas como Ponson du Terrail e Eugène Sue –, como era talhado para as profundas análises psicológicas.” No entanto, acrescenta ele, a vida o levou a empenhar mais suas potencialidades como dramaturgo. “Isso porque, num de seus períodos de penúria econômica, Nelson passou pela entrada de um teatro onde se aglomerava uma grande quantidade de pessoas para assistir a uma peça. Ele, então, pensou que poderia ganhar dinheiro escrevendo para o teatro.”

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