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Ciências da Terra

Histórias de águas antigas

Resquícios de chuvas em cavernas ajudam a reconstruir o clima dos últimos milhares de anos

Eduardo CesarEstalagmite…Eduardo Cesar

Chuvas intensas como as que no início deste ano tumultuaram de­ze­nas de cidades em Santa Catarina po­dem estar conectadas a fenômenos climáticos em regiões distantes, com chuvas fortes também na Amazônia ou frio rigoroso no hemisfério Norte. Em um período relativamente recente da história da Terra, de 100 mil anos até os dias atuais, oscilações abruptas de temperatura no hemisfério Norte, que se repetem em média a cada 3 mil anos, correspondiam a variações de chuva em regiões tropicais em uma dimensão ainda maior que os El Niño ou La Niña, causados pelo aquecimento ou resfriamento das águas do Pacífico a cada dois a sete anos.

Geólogos e climatologistas do Brasil, dos Estados Unidos e da Alemanha chegaram a essas conclusões analisando rochas que antes atraíam essencialmente pela beleza – as estalactites e as estalagmites, colunas de rochas que crescem, respectivamente, a partir do teto ou do solo das cavernas e ganharam valor científico nos últimos anos por preservarem resquícios das águas de chuvas que caíram há milhares de anos. Os resultados das análises do oxigênio do carbonato de cálcio de estalagmites de cavernas brasileiras estão colocando os trópicos na história do clima do planeta nos últimos 500 mil anos, antes contada somente por meio das amostras de gelo retiradas de regiões polares e de sedimentos do fundo do mar. Os registros de chuvas obtidos por instrumentos meteorológicos, que também indicam as tendências do clima, raramente recuam além de 150 anos.

“Estamos completando o quebra–cabeça do clima global do passado”, diz o geólogo Francisco Cruz, pesquisador do Instituto de Geociências (IG) da Universidade de São Paulo (USP). Ele é o primeiro autor de uma pesquisa com estalagmites de cavernas do Rio Grande do Norte publicada no final de fevereiro na Nature Geoscience, que reuniu pesquisadores da USP, da Universidade de Minas Gerais, de Albany, Massachusetts e Minesotta, Estados Unidos, e do Instituto para Pesquisa Marinha e Polar, da Alemanha. Tomadas em conjunto, as pesquisas com estalagmites de cavernas do Brasil e da China acentuam os contrastes climáticos a sul e a norte do Equador, mostrando que, em consequência desse ciclo de 3 mil anos, havia épocas de intensa umidade no Brasil, enquanto em um país vizinho, a Venezuela, e em outro bem distante, a China, o clima era mais seco.

Os estudos das cavernas nordestinas e os anteriores, em cavernas de São Paulo e de Santa Catarina, mesmo que retratando variações climáticas em pontos ou regiões específicas, ajudam a recompor a história mais antiga do clima no território brasileiro e delimitam os momentos de mudanças mais intensas. Um deles é o início do clima semiárido no Nordeste, há cerca de 4 mil anos, em razão de um deslocamento periódico do eixo de rotação da Terra que fez com que o hemisfério Sul começasse a receber mais radiação solar do que o hemisfério Norte. “Há 6 mil anos o clima do Nordeste era muito diferente”, afirma Cruz, que nasceu em Natal, capital do Rio Grande do Norte.

Francisco Cruz / USPVista interna da caverna Abissal, interior do Rio Grande do Norte: 26 mil anos de variações climáticas gravadas nas rochasFrancisco Cruz / USP

Os registros da composição química das rochas de cavernas do Nordeste dos últimos 26 mil anos sugerem que o clima nordestino começou a assumir as características atuais a partir de 4 mil anos atrás. Segundo ele, o sertão do Nordeste nunca foi tão úmido quanto o litoral nordestino, mas as chuvas no interior eram mais bem distribuídas ao longo do ano: provavelmente caíam ao longo de seis meses, de outubro a abril, em vez de se concentrarem em três, de março a maio, como hoje. Essa mudança deve ter contribuído para a substituição de florestas relativamente encorpadas para a atual caatinga.

Quando começou o período mais seco, a maioria das estalagmites parou de crescer. “A água evaporava antes de chegar às cavernas”, afirma Cruz. A chuva escasseou a ponto de a equipe de que Cruz faz parte, depois de explorar dezenas de cavernas, ter encontrado apenas uma estalagmite com camadas de carbonato de cálcio formadas nos últimos 4 mil anos. A testemunha única da mudança de clima estava a 15 metros de profundidade, isolada em uma das galerias da caverna Furna Nova, uma caverna a 300 quilômetros de Natal descoberta anos atrás por Jocy Cruz, técnico do Centro Nacional de Estudo, Proteção e Manejo de Cavernas (Cecav), do Instituto Chico Mendes, que acompanhava as equipes das universidades e definia, sem contestação, o que poderiam ou não retirar para análises laboratoriais.

Examinando outro tipo de material – grãos de pólen de plantas preservados em pântanos e fundos de lagoas –, o botânico Paulo Eduardo de Oliveira, pesquisador da Universidade de Guarulhos, em São Paulo, havia chegado antes a conclusões semelhantes: até 4 mil anos atrás a caatinga se misturava com outros tipos de vegetação, formando matas mais abertas, com árvores, arbustos e cactos, sem análogos hoje. Na Amazônia a história é outra. “A leste da Amazônia há indicações de que houve momentos mais secos, mas não tão secos a ponto de eliminar a floresta, enquanto a oeste não há nenhum sinal de mudança no clima nos últimos 40 mil anos”, diz Oliveira.

Polens e sedimentos antigos ajudam também a reconstruir a história da ocupação humana, indicando que os antigos habitantes da Amazônia, por exemplo, cultivavam milho e mandioca, de acordo com um estudo de Oliveira em conjunto com pesquisadores da Flórida, Estados Unidos, e do Rio de Janeiro, publicado em 2007 na Philosophical Transaction of The Royal Society B. Desenhos sobre rochas, ainda pouco estudados, evidenciam a ocupação humana no Nordeste antes da fase semiárida no Lajedo de Soledade, a 30 km da caverna Rainha, uma das principais cavernas estudadas, no município potiguar de Felipe Guerra, descoberta também há poucos anos pelo espeleólogo Ariosvaldo Araújo da Silva, um dos fundadores de um grupo de espeleologia em Natal.

Francisco Cruz / USPLajedo de Soledade: sinais da ocupação humana de milhares de anos atrásFrancisco Cruz / USP

Há 4 mil anos, enquanto o Nordeste começava a se tornar mais seco, começava a chover mais no Sul e Sudeste. A razão era a mesma: o aumento na intensidade de radiação solar no hemisfério Sul, como resultado da oscilação do eixo de rotação da Terra, que obedece a ciclos de cerca de 23 mil anos. Dependendo da inclinação do eixo de rotação da Terra pode haver mais sombra no hemisfério Norte e maior cobertura solar no hemisfério Sul – ou o contrário.

Quatro anos atrás, após examinar estalagmites de uma caverna de São Paulo e outra de Santa Catarina (Pesquisa Fapesp nº 111, maio de 2005), Cruz verificara que a insolação mais forte faz com que os verões no litoral da Região Sul se tornem mais chuvosos – e agora ajudam a explicar parte do impacto dos aguaceiros que deixaram 80 mil pessoas desabrigadas em 63 municípios catarinenses. Ao apresentar os resultados desse trabalho, publicados em maio de 2005 na Nature, Cruz comentou que a insolação e as chuvas mais intensas no Sul eram uma tendência natural que deveria se manter nos próximos mil anos, “sem considerar as intervenções humanas sobre o clima”.

“Hoje todo o hemisfério Sul está sujeito a uma insolação mais intensa”, observa Cruz. Por estar mais aquecido, o continente atrai os ventos úmidos do Atlântico chamados de alísios. Vindos do leste, provocam chuvas que se propagam da Amazônia para as regiões Sudeste e Sul do Brasil. O calor liberado com a formação de chuvas na região amazônica origina um movimento de ar que atinge altas altitudes e se desloca para leste, no sentido inverso ao dos alísios, e mergulha nas proximidades do litoral do Nordeste. “Essa massa de ar mais seco e frio inibe a entrada de umidade que alimentaria as chuvas no interior do Nordeste”, observa Cruz.

“Os dados de estalagmites podem servir para avaliar a capacidade dos modelos computacionais de reproduzir a variabilidade climática do passado na América do Sul”, comenta Mathias Vuille, climatologista da Universidade de Albany, Estados Unidos, que participou desse estudo. Segundo ele, as estalagmites indicam variações reais de chuva nos trópicos, mas não explicam por que choveu mais ou menos, enquanto as simulações computacionais, obtidas por meio de modelos matemáticos, informam sobre mecanismos atmosféricos que causaram as mudanças do clima, mas não podem ser consideradas reais até serem comparadas com registros materiais.

José Marengo, climatologista do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, tem se utilizado de registros geo­lógicos ou botânicos para obter uma primeira visão de climas passados. Tais materiais, segundo ele, podem também levar a conclusões arriscadas: “Para demonstrar com mais precisão como o clima do passado deve ter sido”, diz ele, “precisamos de mais pontos”. Os climatologistas reconhecem que, apesar das limitações, os estudos com polens e rochas de cavernas ajudam a diferenciar os efeitos marcadamente naturais, numa época em que a civilização humana era incipiente, dos que possam sofrer influência da ação humana. Nos últimos 100 mil anos, por causas essencialmente naturais, durante séculos nas regiões polares a temperatura deve ter permanecido alguns graus acima ou abaixo dos patamares anteriores, enquanto nos trópicos chovia de duas a três vezes mais.

No início deste ano os argentinos assistiram à seca mais intensa dos últimos 50 anos e os australianos viram as cidades serem consumidas por incêndios enquanto os termômetros chegavam ao recorde de 46,6º Celsius. Em Santa Catarina fortes chuvas causavam inundações que tumultua­ram dezenas de cidades; os ingleses deixaram de lado os planos imediatos diante de nevascas igualmente intensas. Os especialistas no estudo do clima não dizem que os extremos climáticos do início deste ano já refletem mudanças climáticas permanentes, mas haviam alertado que essas situações poderiam ocorrer no futuro com mais frequência. Climatologistas observaram em um relatório de 2007 que incêndios de dimensões mais amplas que as habituais poderiam se tornar mais frequentes na Austrália.

Marengo coordenou a elaboração de cenários climáticos derivados de modelos regionais que projetavam episódios de chuvas mais intensas ou de variações mais acentuadas de temperaturas no Brasil na segunda metade do século XXI (Pesquisa FAPESP nº 130, dezembro de 2006). Ou talvez não tão longe. Na semana anterior ao Carnaval ele viu o rio que corta a cidade de Guaratinguetá, entre o Rio de Janeiro e São Paulo, transbordando e alagando avenidas e casas. “Nunca vi o rio tão alto”, abismou-se. Segundo ele, ali e em outras cidades brasileiras “o clima agrava a crise já existente de falta de planejamento urbano”. Também a Argentina pode passar nos próximos anos por oscilações maiores de chuvas e de temperatura, como a registrada este ano, de acordo com um estudo coor­denado por Marengo, que deve ser publicado em breve no International Journal of Climatology.

Cruz corre contra o tempo para descobrir um pouco mais dos segredos do clima. Sobre uma de suas mesas de trabalho no Instituto de Geociências descansam muitas estalagmites – as preferidas por apresentarem camadas nítidas e relativamente regulares – para serem analisadas. Vieram de cavernas de São Paulo, Santa Catarina, Minas Gerais, Goiás, Mato Grosso, Bahia e Tocantins. Uma das peças mais valiosas é uma estalagmite de quase 2,5 metros de comprimento, encontrada em 13 pedaços na Caverna do Diabo, sul paulista, que registra as variações do clima nos últimos 600 mil anos. Segundo Cruz, só o Brasil e a China possuem registros tão longos e contínuos.

O projeto
Paleoclima do Quaternário tardio brasileiro a partir das razões isotópicas de oxigênio e carbono em espeleotemas (nº 06/06761-0); Modality: Programa Jovens Pesquisadores Program; Coordinator: Francisco William da Cruz Junior – IG/USP; Investment: R$ 104.113,80

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