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Especial

Darwin, instinto e mente

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Já em 1837, no Caderno B, um caderno de notas onde registrou ideias e observações diversas a respeito de evolução, Darwin notava que “mesmo a mente e o instinto” são influenciados pela adaptação a novas circunstâncias. Sua correspondência da época e de mais tarde também indica seu interesse por questões psicológicas: numa carta de Edward Blythe a Darwin (1855) encontramos longamente debatida a questão do instinto e da razão nos animais e nos seres humanos. No final de A origem das espécies (1859), Darwin previu que a psicologia encontraria “uma base segura […] no fundamento […] da aquisição necessária de cada poder mental e de cada capacidade mental de forma gradativa” (isto é, através da seleção natural). T. H. Huxley, numa palestra de 1863, afirmou que o trabalho de Darwin “estava destinado a ser o guia da especulação biológica e psicológica para as próximas três ou quatro gerações”. Huxley subestimou o impacto das ideias darwinianas: elas continuam relevantes até hoje em várias áreas científicas e, em particular, na área de estudo do comportamento.

Uma primeira, e notável, contribuição de Darwin reside na generalização dos princípios da seleção natural ao comportamento instintivo. O princípio é simples: os traços comportamentais, como os anatômicos e fisiológicos, variam entre indivíduos, transmitem-se por hereditariedade e tornam-se mais frequentes na medida em que proporcionem aos indivíduos uma capacidade maior para enfrentar os desafios ambientais e para se reproduzir. Darwin (1859) aplica a ideia a instintos impressionantes como a tendência do cuco europeu em colocar seus ovos em ninhos alheios, o comportamento das formigas que usam formigas de outras espécies como escravas para a realização das tarefas do ninho e a perfeição hexagonal dos alvéolos nos favos de abelhas. Em cada caso, variantes individuais poderiam ter sido selecionadas, ao longo das gerações, em função da vantagem reprodutiva, ganhando predominância na população. Darwin não elimina do instinto a operação de fatores de cognição, sua concepção se aproxima bastante do modo atual de considerar o comportamento animal como produto de fatores de prontidão e de plasticidade.

A ideia de situar o comportamento num quadro evolutivo permite que se comparem e classifiquem as espécies a partir de sua interação viva com o ambiente, que se entenda melhor as funções das estratégias comportamentais e também (uma ideia perigosa) que se tome o ser humano como mais uma espécie, aparentada na maneira de ser a outros animais considerados inferiores.

A teoria da evolução começou com Darwin, mas não terminou com ele. Houve mudanças marcantes, depois dele, no estudo do comportamento animal. Elas não eliminam o princípio geral: o refinam e desvendam novas hipóteses. A teoria darwiniana se apresenta como um esquema aberto e versátil do qual não é possível prever o desenvolvimento, adaptado passo a passo às evidências e refutado em alguns de seus desdobramentos.

Uma retomada importante das ideias de Darwin foi a etologia, proposta por Konrad Lorenz e seu colega Niko Tinbergen, na década de 1930. Partiam ambos da ideia de que há elementos comportamentais herdáveis desencadeados automaticamente por estímulos do ambiente. Lorenz, levando adiante uma linha implícita em Darwin, usou os comportamentos de espécies de aves aquáticas, os anatídeos, para reconstituir o seu parentesco e seu desenvolvimento filogenético. Hoje está em plena efervescência a análise evolucionária comportamental, com aplicações importantes à compreensão da origem do ser humano.

Tinbergen inaugurou estudos de campo em que testava o valor adaptativo de padrões comportamentais. Por que será que, logo após a eclosão de um ovo, a mãe gaivota apanha e leva a casca para longe do ninho? A pergunta não tem resposta óbvia nem antropomórfica e é esclarecedor descobrir o jogo evolutivo subjacente, feito de custos e benefícios: ao jogar a casca, o adulto diminui a probabilidade com a qual o ninho será detectado por predadores.

Dessa linha toma seu ponto de partida uma abordagem vigorosa ao comportamento animal, a ecologia comportamental. Além de promover a inserção do comportamento na matriz ecológica, formula hipóteses baseadas em mecanismos diferenciais de transmissão genética. Contribuições importantes foram as de W. D. Hamilton a respeito da aptidão abrangente – que parece solucionar a questão das castas estéreis em insetos sociais, tão problemática para Darwin, e fornece uma base para entender por que a entreajuda ocorre mais frequentemente e de forma preferencial entre indivíduos aparentados; e de R. Trivers sobre investimento parental, que explica por que, em geral, as fêmeas são mais seletivas em relação aos seus parceiros reprodutivos e por que os machos são mais promíscuos. O princípio envolvido é a seleção sexual, postulado por Darwin, durante muito tempo negligenciada.

A segunda contribuição de Darwin às ciências do comportamento tem a ver com a compreensão do comportamento humano. Ela é essencial. Não se trata, como muitas vezes é alegado, de uma perspectiva reducionista, avessa a levar em conta as características de cognição e cultura que tornam o ser humano distinto. Darwin (The descent of man, 1871) escreve, nesse sentido: “Um macaco antropoide, se pudesse julgar a si próprio com imparcialidade, admitiria que […], embora capaz de utilizar pedras para brigar ou para quebrar nozes, estaria totalmente sem condições de ter a ideia de transformar uma pedra para dela fazer uma ferramenta […]. Também reconheceria que não lhe está dado seguir um raciocínio metafísico até o fim, ou de resolver um problema de matemática, ou de refletir a respeito de Deus, ou de admirar uma paisagem grandiosa”. As diferenças entre homem e animal seriam contudo, segundo ele, de grau, não de natureza.

Darwin estudou, num contexto comparativo, a expressão das emoções humanas. Seu livro (A expressão das emoções no homem e nos animais), um best-seller na época do lançamento, em 1872, não teve impacto sobre a pesquisa. Sua proposta foi retomada pelo psicólogo P. Ekman, quase um século depois. Ekman, como Dar­win (com métodos bem mais sofisticados), descreveu como a face espelha a raiva, a alegria, o medo e outras emoções e demonstrou, como ele, o valor transcultural das expressões. São notáveis as descrições de Darwin. Ele demonstra ser, antes de Desmond Morris, um man watcher, um observador agudo do ser humano e sua minúcia foi legada à perspectiva etológica. Paradoxalmente, não foi darwiniano ao pender para a “herança do uso”, uma versão da hipótese de transmissão dos caracteres adquiridos, para explicar a origem da expressão humana das emoções.

Os desenvolvimentos mais recentes da abordagem evolucionista ao comportamento humano retornam aos princípios do próprio Darwin: o da seleção natural e da seleção sexual. Depois das propostas da etologia humana e da sociobiologia, estamos hoje presenciando o desenvolvimento da psicologia evolucionista que busca, de forma arrojada, uma síntese entre os aportes darwinianos e os propriamente psicológicos (Cosmides e Tooby, 1999). Essa abordagem coloca em conjunção cognição e processos pré-programados e descreve a mente humana, herdada de contextos evolutivos prévios, como composta por um conjunto de competências naturais, que são adaptações produzidas por seleção natural e sexual e que decorrem de interação entre genes e fatores ambientais. A partir desse arcabouço, as abordagens biológicas ao comportamento humano proporcionam novas hipóteses e resultados não triviais a respeito de aspectos variados do comportamento humano, desde as preferências sexuais até a competição, altruísmo e comportamento agressivo.

A recepção imediata das ideias de Darwin no campo psicológico não foi sempre entusiástica. “Quantas ideias obscuras, quantas ideias falsas!… que linguagem pretensiosa e vazia!”, escreve em 1864 J. P. Flourens, que tinha livros publicados sobre instinto animal, a respeito de A origem das espécies. Numa resenha de The descent of man, na revista The Lancet (1871), lemos: “Aos que […] exigem as provas as mais conclusivas [a respeito] dos atributos mentais e morais do ser humano… o conjunto de fatos apresentado pelo Sr. Darwin deve parecer bastante inadequado e seu raciocínio a partir deles inconclusivo, senão totalmente falso”. Estas opiniões apressadas contrastam com a impressionante vitalidade das ideias darwinianas na psicologia e nas ciências do comportamento de hoje, não só em centros tradicionais de pesquisa como no Brasil. São muitas as promessas de avanço na compreensão tanto do instinto como da mente.

César Ades é psicólogo, especialista em comportamento animal e professor da Universidade de São Paulo.

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