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Walnice Nogueira Galvão

Walnice Nogueira Galvão: A donzela guerreira

A pesquisadora lança novos livros e mantém sua sábia ousadia em falar, com propriedade, sobre a realidade e a cultura

EDUARDO CESARWalnice Nogueira GalvãoEDUARDO CESAR

“Porque a cabeça da gente é uma só, e as coisas que há e que estão para haver são demais de muitas, muito maiores diferentes, e a gente tem de necessitar de aumentar a cabeça, para o total”: essa frase, de Guimarães Rosa (1908-1967) em Grande sertão: veredas, descreve à perfeição o tipo de intelectual raro que é a crítica literária e professora titular de teoria literária da USP, Walnice Nogueira Galvão, aliás, a referência obrigatória quando o assunto são as obras rosianas ou as de Euclides da Cunha (1866-1909), sobre os quais ela já escreveu inúmeros livros. Afinal, Walnice também escreve, com muita propriedade, sobre cinema, política, teatro, música, indústria cultural e, entre outros tantos assuntos, até sobre o Carnaval, como se poderá ler em Ao som do samba: uma leitura do Carnaval carioca, seu livro mais recente ao lado de Mínima mímicaensaios sobre Guimarães Rosa (lançado no fim do ano passado pela Companhia das Letras), que deverá sair em julho pela Editora da Fundação Perseu Abramo. Sábia, durante a entrevista ela preferiu se definir com outra frase extraída do épico de Rosa: “Eu não sei quase nada, mas desconfio de muita coisa”. Mais que mera humildade, a referência revela a força-motriz da geração que a moldou: a curiosidade sobre o mundo. É desse material que são feitos (e do qual ela também é composta) os intelectuais com “i” maiúsculo que a influenciaram: Antonio Candido (de quem foi assistente), Gilda de Mello e Souza, Décio de Almeida Prado.

“Que interesse podem ter as coisas que eu falo? Eu preferiria uma entrevista em que fosse falar do Guimarães Rosa, do Euclides da Cunha, a falar de mim mesma. Sou uma pessoa que prefere cultivar o low profile e me sinto estranha quando estou no centro da discussão em vez das figuras notáveis que eu estudo”, foi como abriu a nossa conversa. Nesse ponto, façamos justiça a ela: foram 20 anos estudando Os sertões e mais tantos anos se debruçando sobre Grande sertão: veredas, por cujas edições definitivas ela foi responsável. Não parece haver nada a respeito desses dois autores que ela desconheça. Mas somos também obrigados a discordar de Walnice: poucos pensadores brasileiros ainda se interessam em dar conta da realidade presente e analisar a cultura em suas dimensões sociais e políticas. Daí as “coisas” que ela fala terem, sim, um grande interesse, como são as ideias dos verdadeiros intelectuais, ao contrário daqueles que, como observa em seu livro As formas do falso, “estão presos a seus privilégios e que aqui existem e aqui produzem, mas de olho na última moda das agências centrais de cultura”. Walnice, na contramão, consegue, por exemplo, reunir a Canudos literária com a política americana atualíssima no Iraque. “Da mesma forma que em Canudos, esse conflito camufla interesses econômicos e políticos como se fosse uma luta do bem contra o mal, do patriotismo contra a subversão.” Nos anos 1960 mostrou o funcionamento escapista das canções de protesto; no auge da popularidade de Jorge Amado escreveu um artigo em que o chamava de sádico, pedófilo e exibicionista; mais recentemente colocou em dúvida a qualidade literária de um “medalhão” dito intocável como o escritor Rubem Fonseca. Ousadia faz parte da vida dessa “donzela guerreira”, título, aliás, de um de seus livros.

REPRODUÇÃO IGHBCenas de Canudos: luta entre o bem e o mal com ecos atuaisREPRODUÇÃO IGHB

Não é uma questão de polêmica gratuita, mas de prioridades. “O que não fica é o superficial, o fraco, o ruim. O Dicionário Houaiss tem 400 mil palavras. O rádio, a televisão, a literatura que se faz hoje não chegam a 20 mil. Estamos jogando fora 380 mil palavras”, afirma. Isso tem um peso na boca de quem retratou a grandeza de Rosa por- que “foi em sua pena que nossa língua literária alcançou o nosso mais alto patamar: nunca antes e sobretudo nunca mais depois a língua foi desenvolvida em todas as suas virtualidades”. Apesar disso, Walnice está otimista: com os jovens, com a literatura, com o mundo e com o Brasil. Mas num tom contido que faz eco a Guimarães Rosa: “Qualquer amor é um pouquinho de saúde, um descanso na loucura”.

Efemérides como o centenário de nascimento de Guimarães Rosa ou da morte de Euclides da Cunha mais do que homenagens rendem uma boa reflexão: criava-se tanto e com tamanha grandeza então. Hoje nos contentamos em reproduzir o que eles fizeram. A senhora concorda?
Não sei se estamos cada vez mais pobres intelectualmente e se quando uma coisa não progride isso significa uma decadência permanente. Tenho impressão de que talvez esse marasmo seja uma fase que estamos atravessando. Mas concordo que estamos numa fase em que predomina a intertextualidade, essa constante necessidade de estabelecer um parâmetro com obras clássicas, mais do que efetivamente ir em frente e criar algo novo. Nisso há mesmo uma falta de criatividade: falamos de literatura, mas isso pode se aplicar para a arte em geral, ao cinema, à história etc. Em literatura é algo flagrante, pois, de uns anos para cá, tudo é intertextualidade, tudo tem referência a uma “outra obra” ou a um “outro autor”. Gente como Guimarães não precisou dessa “referencialidade”. Um exemplo prático. Fui chamada por uma editora para dar um parecer sobre um romance francês atual. O autor escreveu um romance inteiro com base num outro romance inglês do século XIX e ele quer nos fazer crer que a vida dele teria um paralelo com aquela novela. O romance inteiro é isso! Ora, não tem cabimento uma coisa dessas! Gente como Guimarães não precisou dessa “referencialidade” e nem imaginaria uma coisa dessas. Eu, pessoalmente, estou muito ansiosa para ver quando será superado e creio que o será. Estamos vivendo uma fase na qual há o embotamento de paradigmas, a necessidade de que sejam revistos, e também uma era de muita interferência das novas tecnologias. Tenho a impressão de que dessa mistura surgirá algo.

ARQUIVO/AEGuimarães Rosa: dividido entre o mundo e o sertãoARQUIVO/AE

Em geral, as pessoas são pessimistas sobre as novas tecnologias. A senhora acha que elas podem ajudar?
Tenho certeza. Veja como crianças e adolescentes lidam com as novas tecnologias: é uma coisa absolutamente espantosa. Para mim, a saída vai ser para este lado, já que estamos vendo o nascimento de uma nova maneira de escrever que não é a tradicional e, portanto, sujeita a “mais do mesmo”. Nós somos muito mal-acostumados aqui no Brasil: por exemplo, o que marca muito a gente ainda é o Modernismo, ainda a Semana de Arte Moderna, embora isso já tenha ocorrido há quase cem anos. Somos, porém, criados a estudar aquele impacto, fruto de uma fase de extensa transgressão e ruptura, de uma criatividade adoidada. Logo, a gente quer isso em tudo e não é assim. Insisto que estamos atravessando uma fase, embora já faça bastante tempo, em que não existe essa ruptura, essa transgressão, essa criatividade solta. As pessoas vêm fazendo uma coisa mais acomodada, em que tudo o que se faz precisa ter essa referência ao passado, a tal da intertextualidade, quando um ser dialoga com outro. Então isso não é só no Brasil, é no mundo inteiro. Estamos também numa fase mais lenta na produção de pensamento e de tudo que varia o ritmo dessas coisas. Mas eu falei do meu otimismo com as novas tecnologias. Mesmo quando eu penso que existe um movimento anunciando o fim da literatura, eu olho meus netos, penso na série do Harry Potter e me vejo obrigada a discordar disso, pois surgiu uma escrita que as crianças acompanham. Ainda mais as crianças, que têm déficit de atenção e não são capazes de ler uma página porque estão tão viciadas no visual e não sabem acompanhar raciocínios completos como a literatura! Fico contente de ver que a literatura e o “livrão” não estão morrendo. O menino de 7 anos lê um volume do Harry Potter num fim de semana e é preciso quase “pegar pela orelha” para ele parar de ler e fazer outras coisas. É muito interessante esse fenômeno. Há mais de 200 anos que não vemos esses romances de folhetim, que chamo de romance torrencial, que não acabam nunca. Quer dizer, como aqueles filmes do tipo Duro de matar ou Máquina mortífera, que têm continuação: dois, três, quatro… É um fenômeno espantoso do conteúdo da coisa, mas é certo que as crianças estão redescobrindo a leitura, agora que estão no mundo do visual, não é? Eu acho que nós não sabemos direito das coisas, não. E eles estão lá nos computadores, falando na língua deles, uma língua nova, cheia de possibilidades da criação do novo.

É curioso, e prazeroso, ouvir uma intelectual falando sobre livros infantis e filmes de Hollywood…
A meu ver, imagem e escrita não são dois universos, são duas linguagens. Tudo são linguagens. Eu gosto também de artes plásticas, frequento muitas exposições; gosto muito de música também, ouço sempre óperas; e gosto muito de música popular, teatro. Sou muito curiosa e todas as artes me interessam: não vejo nenhuma incompatibilidade, mas apenas linguagens diferentes de comunicação artística. Agora, por exemplo, está para sair um livro que fiz sobre o Carnaval carioca, a que cheguei pelo meu gosto por música popular. Não é uma história do Carnaval, uma tentativa de interpretar o Carnaval carioca através de sua história, de seu desenvolvimento presente, sobre esse meu interesse de como ele é no momento. Fui a Veneza, Nova Orleans, a Nice e a Munique, porém apenas o brasileiro me impressionou. Há quem diga que é o maior espetáculo da Terra, mas essa monumentalidade serve a certas funções, mesmo com a exploração e comercialização: é a encenação, todos os anos, do mito da democracia racial. Nas letras dos enredos, por exemplo, se canta e se mostra que somos uma democracia racial. Isso é mentira, evidentemente, mas esse mito continua a ser encenado. Esse é o verdadeiro enredo do Carnaval, para além dos sambas-enredo: o enredo profundo é esse. O país inteiro exaltando o negro e o mestiço durante três dias e, no resto do ano, eles continuam a ser oprimidos e explorados.

AYRTON VIGNOLA/FOLHA IMAGEMCarnaval carioca: exibição de suposta democracia racialAYRTON VIGNOLA/FOLHA IMAGEM

A senhora sempre tem preocupações políticas e sociais em seus trabalhos. Acha que faz parte do ser um intelectual?
Não sei dizer se é obrigatório. Conheço muita obra de arte feita por pessoas completamente alienadas, que viviam nas nuvens, mas fizeram trabalhos maravilhosos. Não é obrigatório, mas sim solidário. Seria muito bom se todas as pessoas se preocupassem com o mundo onde vivem e com as outras pessoas também. Eu me lembro de uma frase bonita do Sartre. Quando perguntaram se ele tinha remorso de não ter feito alguma coisa na vida, ele disse: “Gostaria de ter prestado mais atenção nos meus vizinhos”. O mundo de hoje está muito necessitado de cabeças pensantes que não fecham os olhos, mas não quero fazer comício, pelo amor de Deus [risos]. Aprendi a ser assim com o Antonio Candido. Prestei atenção no caminho de militância dele, pois ele sempre se preocupou e participou. Num outro registro, o Guimarães Rosa era muito dividido entre o sertão e o mundo. Ele era um cosmopolita, um poliglota, mas estava o tempo todo escrevendo sobre o sertão, recuperando a linguagem e as fábulas do sertão. Era certamente um homem com um pé em cada coisa que não conseguia ficar na mesma, um homem internacional que não abriu mão de ter uma alma sertaneja.

A sua trajetória pessoal acompanha um pouco esse movimento. A senhora saiu do Mackenzie e foi para a Faculdade de Filosofia da USP na Maria Antônia, um centro de pensamento político…
Atravessar aquela rua foi algo que mudou o meu destino. Eu estudava no Mackenzie e fui fazer cursinho no Grêmio e minha cabeça mudou para sempre, um momento importantíssimo na minha vida, com toda a responsabilidade que trouxe e com todos os problemas que vieram junto com essa decisão. Eu peguei o ano de 1968 na Maria Antônia e era impossível você não entrar na militância mais radical. Fui até segurança no Teatro Oficina, protegendo os atores de Roda Viva dos terroristas de extrema direita. Levantem as mãos para o céu, porque não existe mais uma possibilidade de ditadura neste país. Então as coisas estão mais calmas, os jovens estão apáticos? Nem todos, mas não há tanta motivação para brigar. Eu entendo isso também. Ditadura é uma coisa que destrói as pessoas e ainda bem que as coisas estão melhores e que alguns jovens possam estar apáticos. Mas não acho que todos o sejam, não. Ultimamente tenho achado que o panorama nacional e internacional está muito interessante. A direita quer que os homens não pensem, que se desinteressem da política. Conseguiram nos EUA e fizeram com que os jovens não votassem até a eleição do Obama. Por isso é que eu te digo: não vamos ficar lamentando estarmos decadentes e que antes é que era bom. Olha aí a virada! As coisas ruins vão se acumulando até que um dia dá um estouro, como foi a eleição do Obama. Eu nunca pensei que fosse ver uma coisa dessas, que só iria acontecer em 200 anos. Essa eleição é um grande sopro de esperança, de que nem tudo está perdido. Se isso aconteceu por causa dos jovens, estamos é vivendo momento muito interessante na história do Brasil e do mundo, é animador. Mas nós estamos ficando atrasados na América Latina, porque já existem duas mulheres presidentes da Republica. Nós ainda não tivemos um negro ou uma mulher na Presidência.

Também há relativamente poucas mulheres criadoras…
Poucos negros também. Mostre os negros que fizeram uma grande obra literária ou que fizeram uma grande pintura, cadê? Se você não educa, e por várias gerações, não vai ter nunca, porque esse é um processo lento. Hoje pensamos pouco na educação.

Qual é a grande tendência atual?
O fundamentalismo religioso. O ca­pitalismo é racionalista e lógico por definição. E como que se explica isso? Pensávamos que depois da Revolução Francesa isso tinha acabado e que a sociedade estaria inteira laica e racional, mas não está. Você pensa que é só no Brasil que tem a Igreja Universal do Reino de Deus? No mundo inteiro está havendo uma virada para religião. Tenho a impressão de que há um sentimento derivado do consumismo. Se montarmos uma sociedade global e ela diz que o objetivo da sua vida é adquirir bens materiais, que o importante é ter coisas, chega uma hora em que você precisa de Deus, porque é tudo muito seco, muito sem valor. Nesse consumismo, temos de consumir sem parar, compramos um carro agora e já tem outro melhor, temos de largar aquele e comprar outro, depois outro. Isso gera uma insatisfação, e o princípio do capitalismo é a insatisfação, então há falta de valores, de espiritualidade, falta uma esfera que não seja tão seca, tão material. A virada religiosa, com a qual eu não simpatizo nem um pouco, evidentemente, está associada ao capitalismo, é um complemento indispensável da materialização do capitalismo. Eu pensava, não sei se ainda penso, que isso seria alguma coisa que a arte poderia dar. Vejo a arte, numa sociedade laica, racionalista e ateia, como um substituto da religião. Mas parece que isso não é o suficiente, tem que ter religião, como algo natural para suprir essa carência que o consumismo gera. Bem, temos duas maneiras de pensar esse fenômeno de desencantamento do mundo. O pessoal da Escola de Frankfurt pensa que a racionalização foi imperfeita, então há muitos resíduos mitológicos e religiosos que hoje estão voltando à tona. Podemos também seguir outro caminho, se pensarmos no excesso de razão, como diz Freud, isso gera exatamente essas insatisfações. Para vivermos em sociedade, temos de abrir mão de nossos instintos, se não não dá, pois um agarraria a garganta do outro, especialmente os dois instintos que são fortíssimos, a sexualidade e a agressividade. Então, o que acontece? Ficamos infelizes, é o que ele chama de mal-estar da civilização. Talvez esse desencantamento do mundo passe por aí, por essa repressão excessiva de nosso comportamento. Assim, eu não acho que o fundamentalismo islâmico seja pior, por exemplo, do que o fundamentalismo dos EUA, nem do que o brasileiro. Qualquer forma de fundamentalismo não é correta. Creio que seja uma propaganda norte-americana inventar que o fundamentalismo ruim é só o do Islã. Pelo contrário. Acho que é preciso dar mais força para o Iraque, pois não era hora de eles fecharem aliança com o que há de pior do lado de cá. Não estou dizendo que seja bom do lado de lá, mas é preciso reconhecer que nós não estamos no fim do fundamentalismo.

A atual crise econômica também pode ser entendida como uma forma de “desencantamento” forçado do mundo?
Temos de parar com isso, com esse incentivo ao consumo crescente. Se não, dá no que deu, é impossível uma economia sobreviver assim, entra em crise. Seria ótimo se as pessoas fossem incentivadas a pensar mais nisso. Se a crise desse uma boa chacoalhada nas pessoas seria uma boa consequência. Estou entrando em uma dívida para quê? Para ter mais um bem material? Eu sempre fico pensando por que as pessoas muito ricas precisam de tanto dinheiro: é preciso ter dois iates? Um só não chega? Eu não entendo muito bem essa coisa de querer sempre mais e não ver no que isso acarreta para as pessoas e também para o planeta. O consumo, o capitalismo, está destruindo o planeta. É a primeira vez na história que existe a possibilidade de se destruir o planeta. Então estamos desacelerando, mas estamos desacelerando tão devagar que dá medo, não é? Será que, quando finalmente desacelerarmos, ainda vai ter sobrado uma floresta, ainda vai ter sobrado água? Eu acho que está tudo meio apocalíptico, mas acho que estamos melhorando, você não acha?

Aqui também? O que a senhora acha do governo Lula?
Eu nunca imaginei que um operário nordestino estivesse no poder. O Brasil está com muito boa reputação no mundo, pois ele está resolvendo muitos problemas sociais, está resolvendo a pobreza, está gerindo muito bem os seus recursos naturais, não está fazendo bobagens, está tentando uma independência internacional, está fazendo negócios com a China, com países da África e outros países do mundo. Eu vejo isso, de uns anos para cá, o aumento do otimismo e da esperança. Há uma maior preocupação social. Surgiu uma nova classe no Brasil, surgiu a classe C, que não responde mais aos formadores de opinião, pois tem uma própria opinião. Vejam a segunda eleição do Lula. A mídia inteira dizia que ele estava perdido, mas ele só perdeu aqui em São Paulo, que é o bastião da direita no Brasil. Não deveria ser, pois somos o polo modernizador do Brasil, o capitalismo de São Paulo é o mais avançado. O estado é modernizador na economia, mas na política não.

Seria interessante se tivéssemos novamente no Brasil as literaturas regionais para dar conta disso…
Isso é um pouco correlato da globalização, porque ela faz tudo ficar igual, não está certo? Vai tornando tudo igual, ainda não tornou e espero que nunca aconteça, mas tende para o igual. No Brasil também existem forças econômicas. Olha, o único intelectual que eu conheço que não mudou de endereço é o Benedito Nunes, que ainda vive no Pará. Até os artistas se mudaram. Onde mora o Caetano ou o João Ubaldo Ribeiro? No Rio de Janeiro. Talvez a diversidade não esteja sendo modernizada, mas somente mudando de foco. Isso que se fala do axé, essa pasteurização da cultura baiana: parece que há uma concentração em um determinado foco, coisas que são rotuladas como “baianidade”, como o axé, o trio elétrico, a Ivete Sangalo. Pode ser que aconteça isso, como uma ordem natural das forças sociais, mas pode ser que exista alguma coisa se mexendo por baixo que a gente não viu. Não acho que está acontecendo uma diminuição da diversidade, mas sim que estamos sendo mais expostos a artistas que são mais promovidos para ganhar dinheiro. São o que tem de pior, as coisas menos interessantes, mas talvez os vejamos mais porque são os mais promovidos.

Relacionado com esse tipo de empobrecimento, há também um empobrecimento da leitura e dos leitores? Haverá leitores de Euclides da Cunha ou Guimarães Rosa no futuro?
Não penso que haja empobrecimento do leitor. Isso chega para gente na universidade, tem muito aluno que faz essa observação, mas não acredito nisso, não. Por exemplo, Homero ainda dialoga conosco. Ao lermos Homero estamos lendo o que chamamos de “grande literatura”. Guimarães Rosa? Dá 2.500 anos para ele também que sempre haverá gente para ler e gostar.

Então a senhora acredita na continuação do romance?
O romance é uma criação da sociedade burguesa, as formas literárias também são criações históricas. Não existia narrativa em prosa, isso foi uma invenção da burguesia, então, enquanto existir a sociedade burguesa, vai ter romance. Pelo contrário, o romance é a forma do nosso tempo, não é a poesia, não é o teatro. Basta ver qualquer catálogo de livraria, a forma mais presente é o romance. Agora muda, o romance está mudando toda hora, mas ainda é um romance. No momento, e nos últimos anos, ele está servindo – em especial os best-sellers – como instrumento para pensar o multiculturalismo. Os romances que mais vendem no mundo inteiro são os que tratam do multiculturalismo, como O caçador de pipas etc. esse tipo de coisa que se passa nas colônias árabes na França, nas colônias indianas na Inglaterra. Os romances tratam disso ultimamente, em toda parte há autores “exóticos”. Entre em qualquer livraria, veja o ganhador do Nobel – um ano é um turco, no outro um israelense. São eles que estão ganhando os prêmios. Acho que as pessoas procuram um exotismo camuflado – exotismo para consumo da sociedade europeia e norte-americana – brasileira também, vai… É exotismo para branco, na minha opinião, pois ele trata dos povos de cor, sempre. Eu tenho uma noção muito maluca sobre essa coisa: tenho a impressão de que é uma preocupação dos brancos – EUA e Europa – com o fato de estarem perdendo a hegemonia. Se eles se sentem “invadidos de estrangeiros”, eles leem esses romances para terem sua supremacia assegurada, pois neles mostram que esses povos são “piores”. Até esse filme indiano que ganhou o Oscar. Um horror. É o máximo do exotismo “mundo cão” que você pode oferecer para o espectador sair do cinema se sentindo muito bem por não ser daquele lugar. Mas é um exagero meu.

Gostar de um romance pode dizer muito sobre uma pessoa. Que livro fala muito sobre como é Walnice Nogueira Galvão?
Em busca do tempo perdido, de Proust. Porque é lindamente escrito. Você pode relaxar na leitura e ele sempre será um guia maravilhoso em que você pode confiar. Isso é grande literatura para mim, que estudo tanto a literatura.

 

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