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Biotecnologia

Carapaça versátil

Biopolímero obtido do camarão pode ser usado em vacinas e cosméticos

MIGUEL BOYAYANCarapaça do camarão é um dos componentes que podem ser usados para fabricar cosméticos e vacinasMIGUEL BOYAYAN

Duas matérias-primas encontradas em grande quantidade no Rio Grande do Sul, a quitosana, um biopolímero preparado a partir da carapaça do camarão, e o poliol, obtido do óleo do grão da soja, são os principais componentes de uma nova substância para incorporação de partículas ou princípios ativos utilizados no preparo de gel para cabelo ou para ultrassonografia, além de entrar na composição de repelente de insetos. Registrado com o nome comercial de Quiol-gel, ele apresenta viscosidade semelhante às substâncias utilizadas atualmente em vários produtos farmacêuticos e cosméticos e fabricadas a partir de polímeros petroquímicos, com a vantagem de ser biocompatível e biodegradável.

“O produto tem uma composição específica que permite a aplicação do material diretamente na pele após a incorporação de ingredientes cosméticos ou ativos”, diz a professora Nádya Pesce da Silveira, do Instituto de Química da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e coordenadora da pesquisa. Uma das principais características do Quiol-gel é a possibilidade de variar a viscosidade da formulação. É possível obter tanto um gel, como uma pomada, um fluido ou até um spray. Para isso, basta modificar as condições de preparação das macromoléculas de quitosana associadas às moléculas menores do poliol, adequando o pH desejado.

Os estudos que derivaram na formulação do gel começaram com o desenvolvimento de uma nanopartícula de origem biológica, que recebeu o nome de quitossoma, resultado da incorporação da quitosana ao lipossoma, uma nanoestrutura semelhante a pequenas esferas de gordura considerada um excelente sistema de liberação controlada de medicamentos ou substâncias biologicamente ativas. “O diferencial desse sistema para outros similares é o método de preparação, que faz com que a estabilidade da partícula melhore muito”, diz Nádya. Lipídios extraídos da lecitina de soja, um subproduto da produção do óleo de soja, foram associados à quitosana, molécula natural com propriedade antifúngica, para que o sistema ficasse mais estável. “O quitossoma se mantém estável durante um mês em temperatura ambiente sem criar fungos”, diz Nádya. Essa propriedade, aliada ao fato de ser biodegradável e biocompatível, faz dessa nanopartícula um veículo com grande potencial para encapsular ativos biológicos. “Dentro do quitossoma posso colocar uma vacina, um antioxidante, um protetor solar ou até mesmo medicamentos”, explica.

“Algumas possibilidades de aplicação já foram testadas. Quitossomas preparados na UFRGS foram utilizados como adjuvantes (veículos de transporte de substâncias) em vacinas contra a difteria, uma doença bacteriana que afeta a garganta e pode causar sérias complicações. O experimento foi feito por pesquisadores do Instituto Butantan coordenados pela pesquisadora Maria Helena Bueno da Costa, do Laboratório de Microesferas e Lipossomas do Centro de Biotecnologia, em parceria com pesquisadores da Universidade de Havana, em Cuba. Três formulações diferentes de toxoide diftérico, a toxina atenuada, foram testadas e comparadas. Uma delas era composta do toxoide associado ao quitossoma, outra do toxoide veiculado com lipossoma normal e a terceira apenas o toxoide sem nenhum adjuvante extra. “A resposta do quitossoma como adjuvante foi superior”, diz Maria Helena. Ela diz que ainda não se sabe o mecanismo da ação adjuvante do quitossoma, mas que foi possível observar nos experimentos com camundongos maior produção de anticorpos.

UFRGSQuitossomas vistos por microscopia eletrônica UFRGS

A pesquisadora ressaltou que o método de incorporar as quitosanas nos lipossomas desenvolvido pelo grupo da professora Nádya é inovador. “A quitosana é colocada internamente e externamente nos lipídios”, diz. É como se fosse um sanduíche, que melhora a resistência das partículas. Pelos outros métodos já conhecidos a quitosana é colocada apenas externamente. “Como as nanopartículas aderem ao tecido e liberam lentamente a substância encapsulada, há um aumento na eficácia da vacina ou do medicamento encapsulado porque o contato com o corpo é mais prolongado”, explica Nádya. Isso significa economia das substâncias ativas e menores efeitos colaterais. Um novo estudo conduzido atualmente por Maria Helena utiliza o quitossoma como modelo para vacina oral contra difteria e contra veneno de abelha. “Ele induz também a resposta da mucosa, que é um grande problema da vacina oral”, diz a pesquisadora.

Radiação solar
O quitossoma também foi testado em associação com a melatonina, uma substância produzida no cérebro pela glândula pineal e presente em pequenas quantidades em frutos, vegetais, cereais e plantas aromáticas, para avaliar como a formulação responde ao envelhecimento cutâneo produzido pela radiação solar. O experimento foi feito pela mestranda Manuela França Gonçalves, orientada pela professora Silvia Guterres, do Departamento de Produção e Controle de Medicamentos da Faculdade de Farmácia da UFRGS e coordenadora da Rede Nanocosméticos, criada e financiada pelo Ministério da Ciência e Tecnologia. A professora Nádya foi coorientadora na parte da caracterização do quitossoma.

A melatonina associada ao quitossoma foi comparada com a melatonina incorporada a um hidrogel. As duas formulações foram passadas no dorso de camundongos submetidos à radiação ultravioleta. “A melatonina tem efeito antioxidante, protege contra o envelhecimento cutâneo e a radiação  UVA do sol, que promove danos a longo prazo”, diz Manuela. O quitossoma ajuda a transportar a melatonina e pode ser um sistema promissor na incorporação de aplicações cutâneas, como protetores solares, porque vai ajudar na proteção da pele contra os efeitos da radiação UVA. Isso significa que o quitossoma poderia ser associado a filtros físicos e químicos em protetores solares que já são utilizados para aumentar a eficácia dos produtos.

No Instituto de Ciências e Tecnologia de Alimentos da UFRGS o quitossoma tem sido avaliado em associação com algumas enzimas pelo grupo do professor Adriano Bradelli. “Eles podem fazer com que, por exemplo, o queijo permaneça mais tempo estável”, diz Nádya. São várias linhas de estudo com aplicações diversas que ultrapassam as fronteiras da cosmética, área em que as pesquisas tiveram início.

Artigo científico

MARÓN, L. B., et al. LUVs recovered with chitosan: a new preparation for vaccine delivery. Journal of Liposome Research. v. 17, ed. 3&4, p. 155-163, jul. 2007.

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