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Sociologia

Desigualdade sem igual

Seminário discute dilemas da segregação social brasileira

MARCOS D'PAULA/AGÊNCIA ESTADO

Reflexos: trabalho, redes sociais e serviços públicos para explicar a segregaçãoMARCOS D'PAULA/AGÊNCIA ESTADO

O escritor americano F. Scott Fitzgerald não tinha dúvidas em afirmar que nós, os pobres mortais, éramos diferentes dos ricos, porque, afinal de contas, eles tinham mais dinheiro do que nós. Mas será que apenas o dinheiro basta para explicar tudo? Os indicadores de desigualdade e da renda têm mostrado que essa diferença entre ricos e pobres no Brasil vem caindo, mas será que apenas eles bastam para nos dar um painel preciso do que é a segregação social nacional? “A renda é uma dimensão muito relevante para a análise da pobreza e da desigualdade e não é à toa que as comparações internacionais focam esta dimensão. Entretanto, nosso esforço no Centro de Estudos da Metrópole (CEM) tem se orientado a examinar a pobreza e a desigualdade em suas múltiplas facetas, porque a situação de pobreza de um indivíduo é resultado da combinação de diferentes aspectos, além da renda. Estes são: seu acesso ao mercado formal de trabalho, aos serviços públicos e a vínculos sociais e associativos. A situação de desproteção de um indivíduo é resultado dessas múltiplas dimensões”, explica a diretora do CEM, a cientista política Marta Arretche.

Assim, continua a pesquisadora, embora seja importante que nos pautemos por trabalhos recentes que mostram que a distribuição recente tenha melhorado como forma de entender o que acontece no país, não se pode deixar de levar em conta outras facetas da pobreza e desigualdade que têm igualmente um grande impacto no bem-estar das pessoas, e os estudos do CEM se preocupam exatamente em ampliar essa visão.

Daí o seminário internacional Metrópole e Desigualdades que acontece entre os dias 24 e 26 deste mês, mais uma etapa no processo de internacionalização desse Cepid (Centro de Pesquisa, Inovação e Difusão) da FAPESP, que também é um INCT (Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia). O seminário discutirá justamente esses três eixos de pesquisa e as peculiaridades do processo brasileiro de desenvolvimento recente.

“Nossas pesquisas partem do pressuposto teórico de que o trabalho, os serviços sociais e a sociabilidade são mecanismos decisivos para a superação de atenuação das situações de pobreza. Você pode ter dois indivíduos com a mesma renda nominal, mas, se um deles tem acesso a habitação subvencionada pelo Estado, saúde etc. e o outro não tem, um é mais pobre e segregado do que o outro. É preciso analisar sempre além da renda e é isso que o seminário propõe. Isso, aliás, está em sintonia com os estudos internacionais mais recentes”, analisa Marta. “A pobreza até pode estar sendo atenuada, mas por outro lado a desigualdade pode estar sendo reproduzida.”

O primeiro eixo do seminário tratará do acesso ao mercado de trabalho e se inicia com uma leitura inusitadamente “otimista” do estado atual da metrópole paulistana. “Os fluxos migratórios mudaram de sinal já nos anos 1990, quando passaram a apresentar sinais líquidos negativos após décadas de crescimento acelerado, uma tendência que se explica tanto por fatores locais, como a perda de dinamismo do mercado de trabalho de menor qualificação e o alto custo da moradia, quanto por fatores externos como o surgimento de novos polos de desenvolvimento em outras regiões do país”, explica o sociólogo Álvaro Comin, do CEM.

Ou seja, São Paulo, ao contrário do que se dizia, parou de crescer e de receber migrantes, com mais gente saindo que entrando, em especial a força de trabalho de menor qualificação. “Está havendo uma redução na participação relativa da parcela mais pobre e menos escolarizada da população.” Mais: segundo o pesquisador, entre 2003 e 2007 o crescimento do emprego formal foi da ordem de 4,15% ao ano e pela primeira vez em duas décadas o número de pessoas com carteira assinada supera os 50%.

“A cidade está ganhando em serviços mais sofisticados e a demanda de mão de obra foi em força de trabalho dita mais elitizada, o que sugere que será uma metrópole com perfil mais ‘classe média'”, explica Comin. Ao mesmo tempo, acompanhando essa evolução, cresce também o nível de escolaridade. “Os indivíduos formalmente empregados têm muito mais chances de se manter atualizados em suas áreas de atuação, reduzindo os riscos de desemprego e aumentando suas oportunidades de progressão profissional.” Até aí tudo parece indicar um mundo ideal. Mas é nesse ponto que surge a inflexão da desigualdade com o aparecimento de um novo padrão de segregação: os mais pobres que não se encaixam nessa nova estrutura, mas ainda dependem da cidade para sobreviver (empregadas domésticas e outros tipos de empregado), são obrigados a morar cada vez mais longe, porque a cidade não os comporta, seja pelo preço da moradia, seja pelo novo perfil exigido.

“É um ciclo complexo: a cidade fechou suas portas para um determinado tipo de trabalhador, que se vê obrigado a morar em municípios próximos ou regiões próximas, expulso da metrópole. Agora problemas como transporte, enchentes etc. viram questões imensas. O que havia para ‘comemorar’ num primeiro momento é motivo de grande preocupação quando se pensa melhor”, observa o pesquisador. Afinal, as questões ganham esfera metropolitana, já que as mazelas englobam áreas mais distantes e com certeza mais pobres e com menores condições de resolução do que uma metrópole como São Paulo, pondera Comin. “Além disso, você só trabalha com duas esferas: o Estado de São Paulo e as prefeituras, que não colaboram entre si, basta lembrar da guerra fiscal e das questões dos partidos políticos.”

Até mesmo o perfil industrial de São Paulo está alterado, embora o estado continue a concentrar os mesmos 50% da produção industrial em sua área. “As indústrias tradicionais que usavam trabalhadores comuns estão indo para o interior e a cidade está com a indústria que usa mais tecnologia. A economia da cidade está mais intensiva em capital e menos intensiva em força de trabalho.”

Expulsão
“No geral, a pobreza está sendo convidada a se retirar da cidade e estamos exportando problemas como favela, miséria, falta de saúde, entre outros. Ao mesmo tempo, os ‘expulsos’ estão sendo impedidos de usar sistemas de serviços públicos de outros lugares, porque pedem a eles comprovantes de trabalho e residência. Daqui a 20 anos, quando olharmos São Paulo, pode-se até pensar que tudo está bem, mas os problemas vão estar na nossa frente, logo adiante do rio, nas cidades em torno, com a diferença de que essas cidades têm pouca chance, como nós, de fazer política e mudanças”, avisa Comin.

As pesquisas de Nadya Guimarães, do CEM, mostram outra realidade cruel. “Agora se pede diploma de segundo grau ou universitário para qualquer função. Um gari da prefeitura, por exemplo, precisa apresentar diploma de segundo grau, tamanha a distorção. É um efeito perverso dessa ‘elitização’ da cidade. Um auxiliar de escritório precisa apresentar diploma universitário, sabe-se lá de que faculdade, mas precisa. A pergunta que fica é: qual é a recompensa de se ter estudado para acabar fazendo telemarketing e ganhar tão pouco? Confirmando o que já está na nossa cultura de que o estudo não leva a nada.” “Tudo o que parece bom da imagem de São Paulo parece, na verdade, trazer um quê de ruim”, nota Comin.

Tuca Vieira/Folha Imagem

Mar de desigualdade: prédio no Morumbi e favela em ParaisópolisTuca Vieira/Folha Imagem

Um outro eixo da desigualdade estudado pelo CEM está nas chamadas redes de sociabilidade. “A pobreza tem uma dimensão territorial: pessoas pobres podem estar segregadas espacialmente, mas podem estar unidas espacialmente, combatendo exatamente esse efeito da segregação. A questão da desigualdade de acesso a políticas de sociabilidade faz indivíduos terem condições e futuros diferentes”, explica o sociólogo Eduardo Marques, do CEM.

A partir de mapas que mostram as redes de sociabilidade de indivíduos, Marques mostrou que essas relações com vizinhos, familiares, amigos, colegas etc. importam muito, acima de escolaridade e outros fatores, se o indivíduo está ou não empregado, a qualidade do emprego e a sua renda. A partir desses dados, o pesquisador formulou propostas para o Estado que poderiam aproveitar essa relação inevitável entre indivíduos e suas relações interpessoais, uma forma eficiente de auxiliar na hora de tentar encontrar emprego.

Afinal, uma pesquisa de Nadya Guimarães feita junto a desempregados que procuravam trabalho em agências públicas e privadas revelou que 80% dos entrevistados conseguiram ocupação por meio de sua rede de amigos em outra ocasião em detrimento das agências (o que, é claro, não os impede de tentar os organismos como reforço). “Isso revela que pessoas com amigos têm muito mais chances de ter um emprego e, assim, ampliar a renda e, logo, diminuir a desigualdade, por meio de suas relações pessoais, mostrando que essas redes de relações são mais efetivas do que as políticas públicas”, analisa Marta.

“O combate à pobreza não pode de forma alguma prescindir das políticas sociais tradicionais, assim como de políticas macroeconômicas que promovam empregos de boa qualidade e em grande quantidade. Mas dado que algumas redes apresentam padrões importantes de penetração no tecido relacional das comunidades, a sua integração às políticas do Estado pode ajudar a lhes dar maior resolubilidade, tanto fazendo as políticas chegarem aos seus usuários de forma mais precisa quanto ajudando a customizá-las, inclusive em termos de linguagem, mediando culturalmente as relações entre o Estado e as comunidades”, observa Marques.

“No caso específico do emprego, o desenvolvimento de agências de emprego que disponibilizem informação integrada sobre trabalho, mas se localizem de forma radicalmente descentralizada nas comunidades, poderia auxiliar na redução do efeito do mecanismo da localização inicial do migrante e de entrada de jovens no mercado de trabalho, distribuindo mais equitativamente acessos a informações e estruturas relacionais pouco locais.”

Favor
Se o emprego ainda depende daquela informação amiga de um amigo, a boa notícia está no terceiro eixo de pesquisas do seminário sobre os serviços públicos. “Se você pegar alguém numa situação bem difícil: ele está desempregado numa metrópole. Como estará a vida dele? Apesar de todas as dificuldades, hoje os filhos dele podem continuar na escola e ele continuará contando com os serviços de saúde. Tudo isso sem precisar de favores ou benesses de nenhum político”, conta Marta Arretche. “A situação dele numa metrópole, com certeza, é bem melhor do que se não estivesse nela.”

Segundo a pesquisadora, as regiões metropolitanas não são os piores lugares do Brasil. “Classifiquei todas as cidades nacionais segundo essa perspectiva ampliada da pobreza que caracteriza os estudos do CEM: renda, saúde, educação e habitação. Todas foram classificadas segundo um índice que varia de 1 a 6, no qual 1 indica as cidades com melhor situação e 6 as cidades com a pior situação de renda e social. A grande maioria das cidades das regiões metropolitanas está entre 1 e 2, ou seja, entre aquelas com os melhores indicadores”, explica. Para ela, os principais problemas parecem ser as condições de mobilidade urbana, isto é, infraestrutura urbana e transporte. Outro dado positivo levantado por Nadya Guimarães é que 98% das pessoas nas grandes metrópoles (Rio, Salvador, Belo Horizonte, São Paulo) têm acesso aos serviços públicos diretamente, o que indica a quase extinção do clientelismo nesse campo. Estudos comparados indicam que a desigualdade de acesso a serviços públicos no mundo vem caindo, ao passo que a desigualdade de renda vem aumentando.

“Nessa perspectiva, o Brasil parece estar seguindo uma trajetória particular, pois a democracia brasileira tem conseguido produzir redução da desigualdade de renda combinada à redução da desigualdade de acesso a serviços públicos”, pondera a diretora do CEM. A desigualdade também pede uma reflexão política, e não apenas econômica.

“A expectativa da maior parte dos cientistas sociais no início da década de 1990 era de que o Estado brasileiro seria incapaz de atender às demandas da dívida social herdada do regime militar. A ampliação da participação política combinada à incapacidade do Estado para atender às demandas por integração social constituiriam uma séria ameaça à democracia”, diz Marta. “Essas expectativas se mostraram infundadas, pois a democracia brasileira tem revelado paulatina capacidade de incorporação social, ou seja, o Brasil está seguindo a trajetória clássica das democracias modernas nas quais a participação política cria oportunidades e incentivos institucionais para uma progressiva integração social das massas.”

Foram as instituições políticas brasileiras que permitiram a incorporação do eleitorado e a entrada das demandas. “Inclusive das camadas mais baixas. Os governos que se seguiram à ditadura levaram cada vez mais adiante na agenda da redemocratização o resgate da dívida social deixada pela ditadura. Não há dúvida de que a concentração de renda e o acesso limitado das camadas mais baixas da sociedade tiveram origem na configuração de forças políticas e nas políticas públicas priorizadas pelos governos de plantão”, afirma a cientista política Argelina Figueiredo. “Desde a redemocratização nos anos 1980 esse quadro social começou a mudar e vem mudando com intensidade cada vez maior. A dimensão dessa mudança mostraria que ela foi significativa se compararmos com o timing de processos de mudança social equivalentes nos países hoje com democracia considerada ‘consolidada’.”

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