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Zoologia

Na enxurrada seca

Sapos da Caatinga têm adaptações fisiológicas para sobreviver aos meses sem chuva

José Eduardo Carvalho/UnifespSono alerta: Pleurodema diplolistris em seu esconderijo de estiagemJosé Eduardo Carvalho/Unifesp

Quando a chuva desaba no sertão potiguar, a paisagem se modifica subitamente. De um instante a outro rios se formam, lagoas se enchem e do chão brotam centenas de sapos. É assim próximo a Angicos, no centro do Rio Grande do Norte. Ali os sapos Pleurodema diplolistris passam os 10 ou 11 meses anuais de seca enterrados na areia, de onde os machos já emergem cantando em uníssono, como uma enorme sirene, e logo saltam para a lagoa mais próxima. Atraídas pela cantoria, as fêmeas escolhem seus pares e liberam dezenas de óvulos que, depois de fecundados, são envoltos num muco semelhante a clara de ovo que o macho bate em neve. Em um ou no máximo dois meses, quando as chuvas cessam e os rios desaparecem como por um passe de mágica, os sapinhos recém-nascidos precisam estar completamente formados e prontos para se enterrarem na areia. Entender como esses anfíbios resistem a tanto tempo sem água e sem alimento tem sido um dos enigmas explorados pelos fisiologistas Carlos Navas, da Universidade de São Paulo (USP), e José Eduardo Carvalho, do campus de Diadema da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).

Durante todo o período em que não chove os Pleurodema se mantêm enterrados e sem comer, em estivação – o correspondente no verão à hibernação, em que animais passam o inverno inativos. Entender os processos fisiológicos que tornam esse feito possível é o ponto de encontro dos projetos coordenados pelos dois pesquisadores: o de Navas, que une fisiologia e conservação no contexto de mudanças do clima, e o de Carvalho, sobre fisiologia comparada de répteis e anfíbios, no âmbito do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia (INCT) de Fisiologia Comparada, ambos com financiamento da FAPESP. “Na estivação, a inatividade acontece quando o ambiente não favorece”, explica Carvalho, “quando a temperatura está alta, o metabolismo dos animais costuma ficar mais rápido, e não o contrário”. Em busca de reunir o conhecimento sobre aspectos diversos – como a atividade dos genes, os efeitos nos músculos e o que se vê no registro fóssil – em animais diferentes – de esponjas a mamíferos –, os dois pesquisadores editaram o livro Aestivation: molecular and physiological aspects, com autores de vários países, publicado este ano pela editora internacional Springer. “A síntese de cada capítulo pode nos ajudar a traçar quais são os mecanismos comuns a grupos diferentes”, diz Navas.

Mesmo com essa reunião de trabalhos, ainda não há um consenso que defina a estivação em termos ecológicos e fisiológicos. Talvez nunca haja, visto que cada organismo adota um conjunto próprio de soluções para as dificuldades impostas pelo ambiente. O caso dos anfíbios, incluindo resultados da pesquisa paulista, está exposto no capítulo do livro escrito por Carvalho, Navas e Isabel Cristina Pereira, cujo mestrado foi orientado por ambos. Eles verificaram que Pleurodema não entra num estado de torpor tão pronunciado quanto espécies estudadas em outros países: esses sapos ficam enterrados na areia de olhos abertos e, quando encontrados, saem pulando de imediato. “É um estado de depressão fisiológica moderado”, define Carvalho. Além disso, o grupo liderado por Carlos Jared, do Instituto Butantan, já observara que esse anfíbio da Caa­tinga não forma casulos. Em um mês de preparação para a seca, o sapo australiano Neobatrachus aquilonius secreta 45 camadas de pele que formam um invólucro como uma massa mil-folhas; Scaphiopus couchii, de desertos norte-americanos, demora cerca de quatro horas para sair da dormência, quando perturbado.

Fisiologia
Durante a estiagem o estômago dos Pleurodema está vazio, o intestino atrofiado e massas de gordura formam 12% do peso. O ovário das fê­meas está cheio, pronto para liberar os óvulos assim que chova. Isabel levou alguns desses animais ao laboratório para mensurar o uso de oxigênio, medida que indica gasto de energia, e verificou que durante a estação seca o consumo em repouso cai pela metade, o que indica uma restrição das funções do organismo. “São como válvulas metabólicas que se fecham”, explica Navas. Mas, quando a pesquisadora forçava os sapos a saltarem, o consumo de oxigênio não variava conforme a umidade, deixando claro que eles rapidamente voltam a ligar todas as válvulas.

Isabel Cristina Pereira/USPAbraçado à fêmea, macho bate muco e produz um ninho para os ovosIsabel Cristina Pereira/USP

Para saber quais vias metabólicas se mantêm ativas e quais são desligadas, o grupo examinou a atividade de diversas enzimas essenciais no metabolismo. Constataram uma queda na atividade das vias metabólicas dependentes de oxigênio – não porque o gás estivesse em falta, mas para poupar energia. Durante a seca, o metabolismo de fato fica reduzido no fígado e nos músculos das patas de trás. Uma baixa concentração de proteínas no coração sugere que esse órgão também fica menos ativo durante a estivação. As patas, ao contrário, mantêm teores proteicos normais. É o que parece permitir aos sapos saírem pulando prontamente em qualquer momento de um período de inatividade que pode chegar a dois anos, enquanto uma pessoa que passe um mês de cama fica com atrofia muscular e tem de reaprender o uso das pernas.

Carlos Jared e Marta Antoniazzi, do Instituto Butantan, também buscam acrescentar peças ao quebra-cabeça da Caatinga por meio de estudos de história natural e morfologia. Analisando a pele de Pleurodema ao microscópio eletrônico de varredura, eles estão vendo que a densidade de vasos sanguíneos na pele é maior durante a seca. Ainda falta terminar as análises para ter uma quantificação completa, mas por enquanto eles acreditam que seja a forma de manter uma eficiência maior de trocas gasosas e absorção de água. “A pele desses sapos é mais espessa do que nas outras espécies”, explica Jared, “por isso deve ser necessária essa maior vascularização”.

Entender a fisiologia e a morfologia desses animais requer ciência de ponta, mas de pouco adianta se não for feito o trabalho mais básico de observar como vivem os animais. Isabel, por exemplo, observou que ao fim de cada noite de namoro os sapos buscam comer e em seguida voltam a se enterrar na areia. “Eu seguia cada um deles noite adentro, para ver aonde iam”, conta. Mas não podia piscar: a pele manchada dos Pleurodema os torna quase invisíveis na areia e em coisa de 30 segundos eles desaparecem da superfície. No dia seguinte voltam a sair do chão, até que as chuvas cessem.

Por enquanto, não se sabe onde estiva a maior parte das cerca de 40 espécies de anfíbios que habitam a Caatinga e se lançam às centenas numa cantoria e reprodução desenfreadas nas lagoas recém-formadas. Jared e Marta têm tido um papel importante em reduzir esse desconhecimento: a cada ano eles exploram caatingas em vários estados do Nordeste para observar os animais e tentar desencavar onde se escondem. Foi ele quem encontrou onde os Pleurodema passam o verão e abriu caminho para outros estudos. “Demorei sete anos para descobrir, desde 1987, quando comecei a ir todos os anos à Caatinga”, relembra. “Sem o aporte dele ainda estaríamos procurando os sapos”, comenta Navas, que por isso dedicou a Jared o capítulo publicado no livro Aestivation.

Estratégias
Ano após ano, o pesquisador do Butantan observou que à medida que a estiagem avança e o solo seca, os Pleurodema parecem se enterrar mais e mais fundo, ficando sempre próximos a alguma umidade, até 1,80 metro de profundidade. Isabel mediu essas profundidades em diversos momentos do ano e concorda que os sapos realmente fazem um percurso vertical em busca de zonas menos áridas. Ela mediu a umidade em diferentes profundidades e viu que a 40 centímetros de profundidade a água se perde depressa, o que já não acontece quando se cava 80 centímetros. Viu também que a temperatura se mantém bastante estável, e os teores de oxigênio dentro da areia caem muito pouco – de 21% na superfície para 20,7% a 1,5 metro de profundidade. “É como duas pessoas dormindo num quarto fechado”, compara Navas, “essa alteração não faz cócegas no anfíbio”.

“Na Caatinga cada anfíbio adota uma estratégia para enfrentar as condições ambientais”, conta Jared, que, como integrante do INCT de Toxinologia, financiado pela FAPESP, busca a relação entre as toxinas dos anfíbios e o ambiente da Caatinga. Os sapos Proceratophrys cristiceps têm pelo menos o dobro do tamanho dos Pleurodema e a pele quatro vezes mais fina, o que deve facilitar a absorção de água. Outra espécie, Rhinella granulosa, é ativa durante o dia e tolera temperaturas até 44°C, segundo artigo em parceria entre o grupo de Navas e o de Jared publicado em 2007 na Comparative Biochemistry and Physiology, Part A. O grupo verificou que em sapos jovens, que são diurnos, a enzima citrato sintase, importante no metabolismo aeróbio, se mantém estável mesmo em temperaturas muito mais altas do que os adultos, noturnos, toleram. Segundo Jared, essa espécie tem uma camada calcificada na pele, o que impede a perda de água. Além disso, alterações na pele conduzem o orvalho para uma região na virilha especializada na absorção. Junto com o cururu Rhinella jimi, esse anfíbio é o único alheio à estiagem da Caatinga.

A ausência de recursos mais especializados, como casulos, pode refletir a história desse ambiente que se acredita ter por volta de 10 mil anos. Muito jovem, em termos evolutivos. Antes disso, o sertão nordestino era um mosaico de matas diferentes, mais úmidas do que é hoje o ecossistema quase desértico e cheio de espinhos. “Talvez os anfíbios da Caatinga não tenham tido tempo de se especializar”, especula Navas.

É nessa capacidade de se adaptar às mudanças ambientais que o conhecimento da fisiologia da estivação se encaixa no projeto que o pesquisador da USP coordena dentro do Programa FAPESP de Pesquisa sobre Mudanças Climáticas Globais. “Os eventos extremos serão cada vez maiores, precisamos avaliar a capacidade que a fauna tem de lidar com os desafios fisiológicos que as mudanças impõem”, conta ele, que com isso pretende pôr a fisiologia a serviço da conservação no contexto das mudanças do clima. “Como fica se a seca ficar mais longa, se a chuva ficar mais concentrada? Os anfíbios terão tempo de se reproduzir?”

Os projetos
1. Effects of global climate change of the brazilian fauna: a conservation physiology approach (nº 2008/57687-0); Modalidade Projeto Temático – Programa FAPESP de Pesquisa sobre Mudanças Climáticas Globais; Co­or­de­na­dor Carlos Arturo Navas Iannini – IB/USP; Investimento R$ 1.007.071,66
2. Instituto Nacional de Pesquisas em Fisiologia Comparada (nº 2008/57712-4); Modalidade Projeto Temático; Co­or­de­na­dor Augusto Shinya Abe – Unesp-Rio Claro; Investimento R$ 200.000,00

Artigo científico
CARVALHO, J. E. et al. Energy and water in aestivating amphibians. In: Aestivation. Car­valho, J. E. e Navas, C. A., eds. p. 141-169. 2010.
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