Imprimir PDF Republicar

Novos materiais

Concreto feito de cinzas

Resíduos da queima do bagaço de cana-de-açúcar podem substituir parte da areia usada na construção civil

Eduardo CesarAs cinzas do bagaço são jogadas em aterros ou lançadas sobre a lavouraEduardo Cesar

Uma montanha negra composta por 3,8 milhões de toneladas de cinzas e restos queimados de bagaço de cana-de-açúcar. Esse é o resíduo produzido durante um ano pela incineração do bagaço nas usinas sucroalcooleiras nacionais. Há algum tempo, as indústrias do setor queimam o bagaço e a palha da cana para geração de energia elétrica destinada a consumo próprio e, em caso de produção excedente, venda a terceiros. As cinzas resultantes da queima são descartadas em aterros ou lançadas em plantações de cana-de-açúcar como adubo, embora pairem dúvidas sobre sua real eficácia. Para cada tonelada de bagaço incinerado, são gerados por volta de 25 quilos de cinzas. Esse material foi estudado pela equipe coordenada pelo engenheiro civil Almir Sales, professor da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), e os resultados mostram que esse resíduo poderá ter um destino ambientalmente adequado e se transformar num importante insumo na fabricação de argamassa e concreto para uso na construção civil. Os resultados foram apresentados em um artigo publicado em fevereiro na versão on-line da revista Waste Management.

A proposta do pesquisador da UFSCar é substituir parte da areia atualmente utilizada na preparação de argamassa e concreto pela cinza do bagaço de cana. A pesquisa, iniciada há três anos e realizada com apoio financeiro da FAPESP, mostrou que a substituição de 30% a 50% em massa da areia natural pelas cinzas não apenas preserva as características físicas e mecânicas de um concreto de boa qualidade, mas também traz benefícios.  “Nessa faixa de substituição, o concreto feito com cinzas pode ter um ganho de resistência 20% superior ao concreto convencional”, afirma Sales, que contou com a colaboração da doutoranda Sofia Araújo Lima e mais cinco alunos de iniciação científica. Além disso, esse tipo de concreto reduzirá a necessidade de áreas para destino do resíduo e, ao mesmo tempo, utilizará menos areia, diminuindo o impacto ambiental dos leitos dos rios, de onde é retirada.

“A extração de areia natural e pedra britada exige muito da natureza. A maioria dos portos de areia e das pedreiras provoca desgaste ambiental nos cursos d’água. Estamos começando a ter dificuldade para encontrar areia e pedra natural para uso na construção civil”, afirma o pesquisador da UFSCar. Recentemente, diz ele, houve um aumento de 500% no preço da areia em São Luís, no Maranhão, motivado pelo cancelamento das licenças ambientais para extração de areia na cidade.

O concreto feito com cinzas de bagaço poderá, em princípio, ser utilizado na maioria das aplicações em construção civil. A proposta inicial é que ele venha a ser empregado na fabricação de guias, sarjetas e bocas de lobo. “Várias prefeituras já trabalham com aplicação de resíduos para produção de artefatos de concreto. Acreditamos que uma delas possa se interessar em fazer uma produção piloto com o nosso concreto”, conta Sales. Para algumas aplicações especiais, como concretos estruturais de elevado desempenho, serão necessários mais estudos.

Parece areia
Para chegar à conclusão de que as cinzas do bagaço substituem bem a areia, o pesquisador realizou uma série de ensaios. A caracterização física microscópica mostrou que ela tem um perfil muito próximo ao da areia natural, com uma porção cristalina e alto teor de sílica. Os estudos feitos com as amostras colhidas em quatro usinas de São Paulo também revelaram a inexistência de elementos próprios para adubo no resíduo. “Trata-se de um material em sua maior parte inerte e fraco enquanto adubo. Não encontramos concentração significativa de potássio que justifique o uso das cinzas como elemento para correção da acidez do solo, como vem ocorrendo”, destaca Sales.

Outro dado surpreendente revelado pelos ensaios foi a presença de grande quantidade de metais pesados, entre eles chumbo e cádmio, nas cinzas analisadas. Com isso, seu emprego na adubação das plantações pode representar risco de contaminação do solo e do lençol freático. Cauteloso, Sales ressalta que é preciso fazer estudos mais detalhados na área de solo com a realização de uma amostragem mais ampla. “Trabalhamos com cinzas produzidas por um número limitado de usinas. Mesmo assim, esse é um indício que precisa ser verificado”, afirma. Esses elementos químicos provavelmente foram incorporados à cana-de-açúcar na fase de cultivo, quando são usados inseticidas, herbicidas e maturadores para aumentar a produtividade e antecipar o corte. Depois que o bagaço foi queimado, os metais pesados passaram para as cinzas.

Os tratamentos para que a cinza do bagaço possa ser utilizada na substituição da areia, de acordo com Sales, são simples e de baixo custo. Nos casos em que a cinza tem fragmentos de bagaço mal queimados, é preciso fazer um peneiramento para retirá-los. No entanto, em usinas que possuem fornos mais novos, já preparados para a produção eficiente de energia elétrica, o bagaço é totalmente incinerado, dispensando o peneiramento. A segunda fase do tratamento limita-se a uma moagem para controle do tamanho dos grãos de cinza – em termos técnicos, é feito um acerto granulométrico. “Com a realização da moagem, é possível obter uma cinza muito parecida com a areia, só que a cor é preta”, diz o pesquisador, esclarecendo que o investimento para aquisição dos moinhos responsáveis por esse processamento é relativamente baixo e pode ser diluído no custo dos fornos.

Durabilidade à prova
Uma vez que a dosagem ideal de substituição da areia pela cinza no cimento já foi definida (entre 30% e 50%), o próximo passo da pesquisa será a realização de testes de durabilidade do concreto. Nesses ensaios, previstos para serem realizados nos próximos 12 meses, também será verificado se o concreto feito com cinzas possui características adequadas para proteger armaduras – ou seja, se, além de durável, ele pode resguardar o aço empregado nas construções de concreto do processo de corrosão. Durante esses testes, os corpos de prova ficarão expostos ao ambiente, simulando uma situação real. “Os ensaios preliminares são animadores e a tendência é que a durabilidade possa ser confirmada”, conta Sales.

Segundo o pesquisador da UFSCar, outros países já buscam alternativas à areia e à brita para a fabricação de argamassa e concreto. É o caso de Holanda, Dinamarca e Bélgica, onde esses insumos têm sido substituídos por resíduos de construção e demolição (RCD). “A adição de RCD para fazer recomposição de areia e brita é bem disseminada em muitos países desenvolvidos, chegando a índices superiores a 70%”, diz. No Brasil, várias cidades já possuem usinas de reciclagem nas quais os RCDs são separados, triturados e transformados em areia e brita para a produção de artefatos de concreto. “Esse é um caminho a ser seguido. Temos que aprender a transformar os resíduos gerados em diversos setores, inclusive o agroindustrial, em concreto e outros componentes para a construção civil sem ter que extrair sempre do ambiente.”

O concreto com restos da queima do bagaço de cana não é o primeiro trabalho do pesquisador focado no aproveitamento de um resíduo e sua transformação em um produto com valor agregado. Há cinco anos, ele coordenou um projeto que resultou em uma patente, visando à incorporação do lodo gerado em estações de tratamento de água em concretos e argamassas. No lugar de enviar o lodo produzido em estações para aterros sanitários ou incineradores, é possível utilizá-lo para a fabricação de artefatos de concreto.

O projeto
Utilização da cinza do bagaço da cana-de-açúcar na produção de artefatos para infraestrutura urbana: caracterização do resíduo e avaliação de argamassas e concretos (nº 08/06486-4); Modalidade Auxílio Regular a Projeto de Pesquisa; Co­or­de­na­dor Almir Sales – UFSCar; Investimento R$ 124.592,61 (FAPESP

Artigo científico
SALES, A.; LIMA, S.A. Use of Brazilian sugarcane bagasse ash in concrete as sand replacement. Waste Management. 2010. Versão on-line. doi: 10.1016/j.wasman.2010.01.026
Republicar