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Biologia

A biologia sintética e a bioenergia

Como a descoberta de que é possível transferir um genoma criado em laboratório pode afetar as tecnologias para biocombustíveis

Uc san diegoAlgas: aposta da biologia sintética para produzir combustíveisUc san diego

Já pensou se, a partir da sequência completa do seu genoma, o leitor conseguisse sintetizar o seu próprio DNA, introdu­zi-lo em uma célula humana e depois fazer com que o seu DNA assumisse o comando dessa célula, formando tecidos, órgãos e até uma cópia idêntica de si mesmo, para a qual você poderia transferir suas memórias? Como no romance de ficção científica de Phillip K. Dick, que originou o roteiro do filme Blade Runner, parece que pelo menos uma importante prova de conceito foi conseguida. O J. Craig Venter Institute (JCVI) publicou em 20 de maio no site da revista Science um artigo em que reporta a ativação de um genoma sintético de um microrganismo em outro, a bactéria Mycoplasma mycoides. A medida de sucesso, nesse caso, foi o fato de que o genoma sintético adquiriu o controle de uma outra célula e essa célula passou a se reproduzir em laboratório.

Fundador do JCVI, o cientista Craig Venter, em várias entrevistas, diz que agora vai atrás do genoma de uma alga para produzir bioenergia. Eu o ouvi dizer algo similar em uma palestra no último Congresso Mundial de Biotecnologia em Barcelona em 2009. Um dos grandes desafios que temos atualmente é produzir bioenergia de forma barata e ambientalmente sustentável. A descoberta do JCVI abre caminho para que pesquisadores consigam microrganismos “engenheirados” que façam o trabalho de produção de etanol ou biodiesel com excelentes padrões.

Aqui no Brasil, no Laboratório Nacional de Ciência e Tecnologia do Bioetanol (CTBE), em Campinas, já estamos “engenheirando” bactérias e fungos com enzimas que atacam a parede celular vegetal e podem ajudar no desenvol­vimento da rota tecnológica da segunda gera­ção do etanol. Um dos laboratórios do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia do Bioetanol (INCT do Bioetanol), comandado pelo pesquisador Richard Ward, reportou no último workshop do INCT, em abril, ensaios com uma enzima quimérica, ou seja, uma proteína montada artificialmente que tem a capacidade de atacar dois componentes da parede celular ao mesmo tempo, a lignina e a hemicelulose.

Assim, mesmo que não tenhamos feito (ainda) algo tão espetacular como Venter, a bioenergia brasileira já começa a mergulhar na era da biologia sintética. Há várias vias a escolher e problemas a resolver usando essa tecnologia. Uma delas é “engenheirar” o metabolismo da Saccharomices cerevisiae, a levedura que usamos para fazer álcool, de forma que ela seja capaz de usar os açúcares de cinco carbonos que vêm das hemiceluloses, algo que ela não faz muito bem.

Com microrganismos, as aplicações da biologia sintética serão bem mais rápidas e deverão produzir resultados impressionantes. Por outro lado, com organismos mais complexos, podem demorar bem mais. Mesmo assim, os biólogos já estão se movimentando nesse sentido e o estão fazendo através da compreensão dos organismos como sistemas complexos.

Um grande passo, mas ainda inicial
Colocar um genoma sintético numa célula é, sem dúvida, um passo im­­portante na área da biologia. Se considerarmos que um gene corresponde, em média, a 10 a 15 kbps (1 kbp equivale a mil bases do DNA), o que o grupo do JCVI fez foi construir um genoma com 600 a mil genes, transferi-lo para uma célula cujo DNA tinha sido retirado, e fazer com que essa célula bacteriana receptora do genoma sintético funcionasse.

É um avanço técnico sensacional e as implicações disso são enormes. Porém, a dificuldade de aplicar isso em organismos mais complexos é maior ainda. Isso porque no genoma de uma planta de milho estima-se que existam 32 mil genes, ou seja, é 32 vezes maior do que o do genoma sintético que o JCVI utilizou. É provável que na nossa cana-de-açúcar tenhamos aproximadamente o mesmo número de genes que no milho. No entanto, diferentemente da Mycoplama mycoides, na cana há oito cópias de cada gene. Isso quer dizer que há, nominalmente, cerca de 240 mil genes interagindo no genoma do organismo e fazendo com que ele funcione perfeitamente bem a ponto de produzirmos o etanol que usamos para encher os nossos tanques. Se o grau de dificuldade fosse linear em relação ao tamanho do genoma, fazer com a cana o que foi feito com a bactéria M. mycoides seria 400 vezes mais difícil. Porém há dificuldades adicionais que tornam a relação mais complexa e difícil ainda.

A bioenergia de que necessitamos, em parte por contingência da nossa tecnologia de motores, está armazenada em ligações entre átomos de carbono e a única forma de guardar a energia desse modo é através do processo de fotossíntese.Há bactérias capazes de realizar fotossíntese e elas são geralmente colocadas como um dos alvos da biologia sintética. As cianobactérias, por exemplo, são boas produtoras de lipídios que podem funcionar como biodiesel, o que indica que podemos pensar em montar sistemas industriais com elas para produção de bioenergia.

Mas há uma reflexão biológica importante a ser considerada. Se as cianobactérias são assim tão boas para produzir bioenergia, por que a civilização não é baseada nelas para obter comida e energia até hoje? Por que nossa comida é baseada principalmente em plantas terrestres? Uma das respostas é que o aumento de complexidade que houve, com a evolução da multicelularidade e o desenvolvimento de sistemas fotossintéticos cada vez mais eficientes, fez com que as plantas dominassem o planeta. Dentre elas, as gramíneas, como o milho e a cana-de-açúcar, produziram um dos sistemas fotossintéticos mais eficientes que existem. Elas têm um sistema de fotossíntese chamado C4, com o qual produzem maior quantidade de biomassa em menos tempo do que outras plantas. E é por isso que a civilização como a conhecemos é fortemente baseada nessas espécies.

A biologia sintética já vem sendo adotada para alterar a fotossíntese em plantas. A soja, por exemplo, não tem fotossíntese tão eficiente quanto as gramíneas. Mas um grupo internacional de pesquisadores já vem traçando estratégias de como fazer para “implantar”, utilizando biologia sintética, um sistema C4 nas folhas dessa leguminosa. Esse é um objetivo imensamente mais difícil do que o que o JCVI alcançou. Isso porque não estamos lidando com um genoma apenas, mas, no caso do sistema C4, com três genomas diferentes: um que fica no núcleo da célula e mais dois que ficam nos dois tipos de cloroplastos encontrados nas diferentes células das folhas das plantas C4.

Venter deu um grande passo, mas ainda falta muita investigação e criatividade para que possamos realmente quebrar o código da complexidade que a vida esconde. Há um grande número de pesquisadores, inclusive no Brasil, se movendo na direção do uso da biologia sintética como principal arma para desenvolver novas biotecnologias. O que vem por aí promete ser extremamente divertido e interessante.

Marcos Buckeridge é um dos coordenadores do programa Bioen-FAPESP e diretor científico do Laboratório Nacional de Ciência e Tecnologia do Bioetanol (CTBE). Assina também a coluna Neotrópicas no site de Pesquisa FAPESP.

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