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Antropologia

Palco de razões e paixões

As relações entre a universidade, o teatro e a cidade nos anos 1940

ARQUIVO / AGêNCIA ESTADO / AE

Cacilda BeckerARQUIVO / AGêNCIA ESTADO / AE

Se, entre 1940 e 1950, São Paulo se transformou, como já disse um ufanista, na “locomotiva do Brasil”, é preciso ressaltar que um dos vagões mais importantes era a cultura, cujos passageiros mais ilustres foram os intelectuais da primeira geração de cientistas sociais formados pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, da então recém-fundada Universidade de São Paulo (USP), e, atores e diretores do Teatro Brasileiro de Comédia (TBC), criado em 1948. Ambos eram reflexos da nova modernidade democrática que substituía as velhas elites agrárias, decadentes, e das novas oportunidades que surgiam desse processo. “Na capital paulista implantou-se um sistema cultural denso e diversificado, que irá se expressar ao mesmo tempo no teatro e na vida intelectual, por causa de alterações na estrutura social, decorrentes do processo de metropolização por que passava a cidade, e em razão da guerra mundial que gerou a vinda de professores e atores estrangeiros”, explica a antropóloga Heloísa Pontes, professora do Departamento de Antropologia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e pesquisadora do Pagu, Núcleo de Estudos de Gênero da mesma universidade. Há 10 anos Heloísa se dedica a estudar a relação entre o teatro, a universidade e a cidade e o resultado final é o livro Intérpretes da metrópole, a ser lançado pela Edusp.

A pedra de toque da pesquisa foi uma observação feita por um dos seus “objetos de estudo”, a filósofa e crítica literária Gilda de Mello e Souza no artigo “Teatro ao Sul” (incluído no livro Exercícios de leitura), onde a ensaísta afirma que São Paulo, a partir dos anos 1940, tornou-se o centro de experimentações no âmbito da cultura e, aqui, o teatro se antecipou aos estudos sociais, encarregando-se da tarefa realizada no Nordeste pelo romance. “O que surpreende é que tudo aconteceu ao mesmo tempo: intelectuais inovadores e um teatro moderno, representado pelo TBC, aparecem em relação numa urdidura que reúne, de um lado, a vinda da Missão Francesa e seus professores (Claude Lévi-Strauss, Pierre Monbeig, Roger Bastide etc.) para a USP e a chegada de diretores estrangeiros como Louis Jouvet, Adolfo Celi, Henriette Morineau e Ziembinsky. Essas ‘visitas’ irão formar, simultaneamente, a primeira geração de intérpretes e intelectuais modernos, criadores de novas redes de sociabilidade para a cidade”, analisa a pesquisadora. Desse encontro entre um novo contingente de alunos e de atores amadores, oriundos em sua maioria de famílias de classe média de imigrantes, uma cidade como São Paulo, com estrangeiros em início de carreira (Missão Francesa) ou mais experientes como os diretores de teatro, que chegam aqui devido à Segunda Guerra Mundial, permitiu-se a implantação de um sistema cultural e intelectual complexo, sem precedentes na nossa história. “Nesse contexto, a cidade se tornou o polo modernizador do teatro brasileiro, ofuscando a cena teatral carioca por mais de uma década”, diz a professora.

E o fez não só no palco, mas na vida acadêmica. A Faculdade de Filosofia, Ciên­cias e Letras da USP se tornou o centro da formação de um novo sistema acadêmico de produção intelectual, graças ao trabalho, de um lado, dos integrantes do grupo da revista Clima (Antonio Candido, Gilda, Décio de Almeida Prado etc.) e, do outro, dos cientistas sociais liderados por Florestan Fernandes. “Para se ter uma ideia do impacto da USP na vida e na carreira de mulheres como Gilda basta mencionar que as faculdades de direito e medicina, nas quais se formavam os filhos da elite dirigente, eram avessas às pretensões do contingente feminino, que jamais ultrapassou a cifra de 5% do corpo discente entre 1934 e 1949”, lembra Heloísa. “Compare-se com os 60% de mulheres e os 30% de filhos de imigrantes que integravam as turmas de ciências sociais na faculdade entre 1936 e 1955.” A universidade, como a cena teatral, igualmente separava São Paulo da então capital federal, o Rio de Janeiro, onde a instituição nunca alcançou a mesma centralidade obtida na capital paulista. “Ali, e por um bom tempo, a vida universitária conviveu com outras vias de acesso à vida pública, sendo um pouco mais que uma agência de obtenção de credenciais para o escalonamento salarial dos ocupantes de postos superiores do serviço público”, afirma o sociólogo Sergio Miceli da USP, autor de Intelectuais à brasileira (Companhia das Letras). “São Paulo foi praticamente o único espaço institucional em que se constitui algo próximo ao que se poderia chamar de elite intelectual.” Nada mais distante da experiência de um soció­logo carioca. “No Rio de Janeiro esses intelectuais não conheciam uma carreira universitária, o estímulo à pesquisa acadêmica em moldes científicos e modernos, a autonomia, vivendo sob jurisdição política das autoridades educacionais do governo federal, em um ambiente urbano que, como sede do governo, fazia da burocracia política o centro de gravidade da vida intelectual”, afirma a socióloga Maria Alice Rezende de Carvalho, da PUC-RJ, autora do artigo “Temas sobre a organização dos intelectuais no Brasil”(Revista Brasileira de Ciências Sociais, 2007). Além disso, na qualidade de cidade cosmopolita, o Rio, lembra Heloísa, abrigava uma convivência intelectual diversa da de São Paulo, em que livrarias, cafés, bares e redações de jornais e revistas eram os espaços privilegiados de circulação de ideias e de sociabilidade.

reprodução

Patrícia Galvão, a Pagureprodução

Reflexo
Essa postura moderna foi o reflexo ideal das transformações operadas na sociedade da metrópole. “São Paulo vivenciava a descrença em relação ao legado, ao passado, e essa atitude se exprimia no surgimento de um tecido cultural renovado, produzido pela modernização evidente na produção inovadora da linguagem intelectual e cultural. A ênfase no presente resultou na crença de um futuro promissor identificado com a realidade de uma sociedade de classes aberta e com regime de participação democrática”, analisa a socióloga Maria Arminda do Nascimento Arruda, da USP, e autora do livro Metrópole e cultura (Edusc). “Essa sensação de perda de raízes, que para alguns (a antiga elite) era percebida como negativa, para outros significava a chance de liberação nas mais diferentes áreas.” Só assim foi possível, como revela Heloísa, a ascensão de figuras como Florestan Fernandes, que se deixou aclimatar pelos ensinamentos da escola francesa, e a atriz Cacilda Becker (um exemplo apenas, já que se pode dizer o mesmo de Fernanda Montenegro, Maria della Costa, entre outras mulheres que, no dizer desta última, “mandavam no teatro”), discípula dos vários diretores estrangeiros, ambos de origem humilde que tiveram a sua vida alterada, alcançando “nome próprio” e brilho nas suas áreas de atuação. Em comum a essas atrizes está uma origem modesta, filhas de imigrantes e donas de um reduzido capital intelectual até a sua entrada na cena teatral, onde se desenvolvem rapidamente nas mãos dos diretores estrangeiros numa química exemplar que, em pouco tempo, atualizou a cena nacional, por meio do TBC, em igualdade com a internacional. “Vindas dos escalões inferiores e remediados da estrutura social brasileira, as atrizes infundiram os modos, as dicções, a corporalidade, a expressividade, as graças, os sinais de uma energia social que reverberava no palco a mobilidade geográfica e societária do momento de transformação pelo que passava a metrópole”, fala Heloísa.

Pesquisa
Mas havia disparidades entre os dois grupos, fator que impulsionou a pesquisa da professora. “Numa situação inversa à das mulheres intelectuais da época, cujos exemplos mais sensacionais foram Gilda, Patrícia Galvão (a Pagu) e a crítica literária Lúcia Miguel Pereira, que enfrentaram uma série de constrangimentos para se afirmar e ‘fazer nome’, as atrizes foram alçadas à condição de protagonistas com o respaldo de seus parceiros.” Basta lembrar as várias atrizes que, após deixarem a “escola” do TBC, formaram suas companhias em que eram as primeiras atrizes tendo os parceiros a seu lado como empresários ou diretores: Fernanda Montenegro e Fernando Torres, Cacilda e Walmor Chagas, Nydia Lícia e Sergio Cardoso. Para as intelectuais que acompanhavam de perto essa cena era preciso, como confessou Gilda de Mello e Souza, se rebelar contra o destino reservado às mulheres então: ser esposa exemplar ou, no caso das “inconformadas”, se dedicar à ficção ou aos versos. Gilda, Pagu e Lúcia preferiram se realizar “como homem” (ainda palavras de Gilda), cada uma a seu modo. “Elas se aventuraram pela ficção antes de partir para uma vida intelectual, na época dominada pelos homens. Lúcia, em seu romance Maria Luísa, de 1933, escrito no mesmo ano que o romance socialista pioneiro Parque industrial, de Pagu, e Gilda nos contos escritos para a revista Clima, que foram solenemente ignorados apesar da sua elevada qualidade literária”, diz a pesquisadora. “As escritoras recebiam, então, o supremo elogio feito a um trabalho feminino: ‘Até parece escrito por um homem’”, desabafou Lúcia num artigo de 1954. Mas, por vezes, a realidade pesava em demasia, como foi o caso da “musa inventada do Modernismo”, que é como Heloísa define Patrícia Galvão, a Pagu, que completa seu centenário neste ano. “Entrega e submissão, em função da sexualidade sequestrada, da maternidade partida e da militância baseada no autossacrifício, são os eixos da trajetória de Pagu, bem diversos do esperado para uma mulher que fez nome e fama como símbolo da irreverência e da emancipação feminista.”

Já Gilda abriu mão de sua paixão pela ficção. “Seu gesto foi recusar a posição que os companheiros da revista lhe atribuíram, insurgir-se contra as modalidades socialmente mais adequadas de expressão para as mulheres da época, no que foi o seu primeiro ato de liberdade. Ainda assim, na repartição das tarefas, aos homens couberam as posições e os temas nobres: a cultura e a editoria das seções permanentes. Às mulheres, a ‘costura’ da redação, a função de colaboradoras.” Sem falar nas críticas de Florestan Fernandes à pesquisa de Gilda sobre a moda, vista como “coisa de mulher” e que não corresponderia aos métodos científicos necessários de se fazer sociologia. Daí o descaso completo a que foi relegada a sua tese de doutorado, defendida em 1950 e só publicada três décadas mais tarde, sobre A moda no século XIX. “Com recursos e meios distintos, Lúcia, Patrícia e Gilda refletiram sobre os constrangimentos sociais e psicológicos que incidiam sobre a vida das mulheres. Uma comparação rápida entre o campo intelectual e o campo teatral permite contrastar as oportunidades de carreira e as maneiras distintas de ‘fazer nome’ que se abriam para as intelectuais e as atrizes”, nota Heloísa. “Mais ‘feminino’ que o campo intelectual do período, o teatral ilumina, por contraste, os espaços possíveis, os recursos utilizados e as frustrações experimentadas pelas três intelectuais para se fazerem reconhecidas como ensaístas e críticas de cultura.” De um polo ou de outro, ambos com as dificuldades enfrentadas pelas mulheres, surgia uma metrópole moderna e cultural que podia, com ufanismo merecido, figurar como “locomotiva do Brasil”.

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