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Geologia

Berçário de montanhas

Fissuras microscópicas em cristais ajudam a resgatar a história do planalto da Bocaina

silvio hiruma / instituto geológicoPerfil acidentado na costa sudestesilvio hiruma / instituto geológico

Uma gigantesca calha corre paralela à costa brasileira ao longo de 1.000 quilômetros entre Curitiba, no Paraná, e Barra de São João, no Rio de Janeiro. É o Rift Continental do Sudeste do Brasil, uma formação geológica parecida com um vale com mais ou menos 100 quilômetros de largura por onde corre o rio Paraíba do Sul. Ele é ladeado por duas cadeias escarpadas, a serra do Mar e a da Mantiqueira, e abriga cidades importantes como Curitiba, São Paulo, Taubaté, Resende e Volta Redonda. Silvio Hiruma, do Instituto Geológico de São Paulo, vem investigando a geologia de um trecho dessa formação – o planalto da Bocaina – e concluiu que essas serras se formaram em momentos bem distintos.

O mais antigo deles aconteceu há cerca de 120 milhões de anos: foi a separação entre a África e a América, que gerou na costa brasileira tensões suficientes para fazer crescer ainda mais a serra do Mar, hoje a leste do rio Paraíba do Sul. Os picos mais elevados dessa serra, com mais de 2.000 metros de altitude, compõem os 1.800 quilômetros quadrados do planalto da Bocaina, que ainda guarda partes preservadas provavelmente desde antes da separação dos continentes. “É uma região que não sofreu uma erosão forte, por isso é importante para investigar a história geológica dessa serra”, diz Hiruma.

A cadeia mais no interior, a serra da Mantiqueira – onde está Campos do Jordão, destino favorito de paulistas durante o inverno para aproveitar lareiras, cobertores, fondues e chocolates quentes, além de tirar os casacos do armário –, se formou por volta de 60 milhões de anos mais tarde, quando movimentações geológicas resultaram na abertura do rift continental.

O que permite a datação de eventos de exposição e erosão nas rochas cristalinas muito antigas que formam a região, em que marcadores cronológicos são raros, é observar os traços de fissão em grãos de apatita. São defeitos na estrutura cristalina do mineral visíveis apenas ao microscópio depois de um tratamento químico. Esses traços são preservados quando a rocha que estava aquecida em camadas profundas abaixo da superfície terrestre se resfria. “A densidade desses traços permite estimar há quanto tempo aquela apatita passou pelas porções mais superficiais da crosta”, explica o geólogo. O trabalho fez parte do projeto coordenado por Claudio Riccomini, da Universidade de São Paulo, um dos pioneiros no estudo da região e orientador de Hiruma durante o doutorado. Parte das análises foi feita na Universidade Estadual Paulista (Unesp) de Rio Claro, em colaboração com o grupo de Peter Hackspacher.

As datações indicaram que o planalto da Bocaina preserva testemunhos de épocas muito diversas. “Foi uma somatória de soerguimentos seguidos por erosão”, explica Hiruma. As idades apontadas pelos grãos de apatita de amostras coletadas em diferentes altitudes desse planalto variam desde cerca de 46 milhões de anos até por volta de 303 milhões de anos atrás, segundo artigo publicado este mês na Gondwana Research. De maneira geral, as amostras mais antigas estão acima de 1.400 metros de altitude, região das cabeceiras do rio Paraitinga e do ribeirão Capetinga, e as com menos de 130 milhões de anos estão abaixo, a exemplo da região do rio do Funil e da serra da Carioca.

Se a tendência fosse constante, contaria uma história bastante simples, de montanhas se elevando e sendo erodidas. Mas não é o caso: amostras diferentes coletadas na mesma altitude revelaram idades de traços de fissão bem diferentes, de 60 milhões e 137 milhões de anos. Além disso, uma amostra com 303 milhões de anos foi encontrada no meio da escarpa que delimita o norte do planalto da Bocaina, numa altitude de 1.058 metros.

Traços do passado
Essa distribuição de idades revela uma história complexa de processos geológicos diversos. Depois da separação dos continentes, eventos magmáticos em dois pulsos principais, por volta de 80 milhões e 65 milhões de anos atrás – época da formação do Rift Continental do Sudeste do Brasil –, também causaram soerguimento das montanhas. Nos últimos milhões de anos, movimentos da crosta continua­ram a alterar a organização geo­lógica por ali. O resultado de toda essa atividade são alterações dramáticas no relevo, em que redes de drenagem dos rios são invertidas, montanhas se elevam e falhas se abrem como rasgos.

A comparação com Campos do Jordão, na Mantiqueira, está no início: só duas amostras, ante 27 de Bocaina. Por enquanto, parece que a região de Campos do Jordão tem rochas que foram expostas bem mais tarde do que as da Bocaina, trabalho que Hiruma e colaboradores pretendem continuar nos próximos anos.

Para complicar a viagem no tempo empreendida pelos pesquisadores, as rochas formadas e revolvidas por processos diversos não ficam necessariamente à espera de geólogos que contem sua história. Processos erosivos que acontecem até hoje já existiam centenas de milhões de anos atrás, de maneira que testemunhos mais superficiais muitas vezes deixam de existir. Isso torna o trabalho mais árduo e o mosaico mais desafiante, mas nada que cause desânimo. A técnica de traço de fissão começou a ser mais usada em estudos geológicos nos últimos 30 anos, bem recente para esse tipo de pesquisa. Abriu portas que, Hiruma espera, serão cada vez mais exploradas nas próximas décadas e acabarão por revelar muito da história deste continente.

O projeto
Morfotectônica e evolução cenozoica do planalto de Bocaina (nº 2003/08031-0); Modalidade Auxílio Regular a Projeto de Pesquisa; Coordenador Claudio Riccomini – IG/USP; Investimento R$ 72.035,69

Artigo científico
HIRUMA, s. t. et al. Denudation history of the Bocaina Plateau, serra do Mar, southeastern Brazil: Relationships to Gondwana breakup and passive margin development. Gondwana Research. v. 18, n. 4, p. 674-87. nov. 2010.

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