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Cooperação

Esforço multiplicado

Com investimentos conjuntos do governo paulista, das universidades estaduais e da FAPESP, será criado o Centro Paulista de Pesquisa em Bioenergia

Marcos GarutiNo último dia de 2009 o governo do estado de São Paulo, a FAPESP e as três universidades estaduais paulistas celebraram um acordo de cooperação que marcou o lançamento do Centro Paulista de Pesquisa em Bioenergia, uma iniciativa que busca criar uma base científica para ampliar a competitividade da pesquisa paulista e brasileira em energia obtida de biomassa. Pelo convênio, a Secretaria de Ensino Superior do estado vai repassar R$ 18,4 milhões para as universidades de São Paulo (USP), Estadual de Campinas (Unicamp) e Estadual Paulista (Unesp), que serão usados para a construção de laboratórios, eventuais reformas e compra de equipamentos. As universidades, por sua vez, se comprometeram em contratar pesquisadores em diversas áreas da pesquisa em bioenergia, que trabalharão em conjunto com os pesquisadores já atuantes neste campo nas três instituições, num esforço integrado. Já a FAPESP assumiu a missão de selecionar e financiar os projetos em bioenergia vinculados ao centro, além de participar da coordenação de seu conselho superior, cuja sede será na Fundação. “O Centro Paulista de Pesquisa em Bioenergia vem complementar os esforços no país para a criação de conhecimento e tecnologia em bioenergia, reforçando a parte de ciência básica e a formação de recursos humanos, objetivos nos quais nossas três universidades estaduais são excelentes”, explica o diretor científico da FAPESP, Carlos Henrique de Brito Cruz.

O formato do novo centro, que foi alvo de discussões ao longo de todo o ano de 2009, é baseado numa partilha de investimentos e de responsabilidades. Cada um dos três atores envolvidos – governo, universidades e FAPESP – vai investir montantes equivalentes. O convênio veio em resposta a uma proposta amadurecida pelas universidades e pela FAPESP, que foi apresentada ao governo estadual. “A Fundação e as universidades estaduais paulistas discutiram longamente a ideia de se implantar um centro de pesquisa em bioenergia, sediado nas três universidades”, diz Brito Cruz, que coordenou a proposta. “O governo estadual aprovou a proposta formatada, dedicando os recursos orçamentários para uso na infraestrutura necessária. O plano apresentado previa investimentos do governo estadual para infraestrutura, pela FAPESP para projetos de pesquisa e pelas universidades para admissão de professores”, afirmou.

Os R$ 18,4 milhões do convênio assinado em dezembro correspondem ao investimento do governo estadual para a primeira fase da implantação do centro. O governador de São Paulo, José Serra, afirmou durante a inauguração do Laboratório Nacional de Ciência e Tecnologia do Bioetanol (CTBE), no dia 22 janeiro, que os recursos para o Centro Paulista de Pesquisa em Bioenergia deverão superar R$ 150 milhões, o que projeta um investimento superior a R$ 50 milhões para cada uma das partes.

Os novos laboratórios deverão ter um caráter multidisciplinar e envolver pesquisadores de áreas como agronomia, química, biologia, física, matemática, engenharia e ciências sociais. “A aglutinação de competências das universidades é o forte desse projeto e o objetivo é que o Brasil avance no que diz respeito ao conhecimento em bioenergia”, diz o reitor da Unesp, Herman Voorwald. Para o reitor da Unicamp, Fernando Costa, a experiência pode definir um modelo novo de fazer pesquisa. “A parceria entre universidades, governo e FAPESP é uma experiência inovadora”, diz. “Temos agora o desafio de procurar os melhores pesquisadores, aqui no Brasil ou no exterior, para preencher as vagas que serão criadas”, afirma Costa. Segundo o reitor da USP, João Grandino Rodas, a parceria prevista no centro revela uma abertura das universidades a demandas da sociedade. “O fato de a universidade ser autônoma não significa que ela deva se fechar em seus próprios interesses. A bioenergia é um desses temas que precisam reunir esforços de todos os segmentos possíveis, pois tem impacto tanto na qualidade de vida das pessoas quanto no desenvolvimento do país. E o avanço na pesquisa nesse campo vai render benefícios para a sociedade e também para nossos alunos e professores”, disse o reitor.

O físico José Goldemberg, reitor da USP entre 1986 e 1990, ressalta que a arquitetura do novo centro dá uma resposta aos desafios mapeados pela Comissão de Bioenergia do governo paulista, coordenada por ele entre 2007 e 2008. “Ficou claro para a comissão que a expansão da produção do etanol no estado exigia um aumento de produtividade e que era necessário avançar em pesquisa para desenvolver novas tecnologias”, diz Goldemberg. Segundo ele, foram aventadas outras possibilidades para enfrentar o problema, como a criação de um instituto estadual de bioenergia. “Creio que essa solução foi interessante, pois vai trazer pessoal novo para a pesquisa em bioenergia e envolve os pesquisadores das universidades nesse esforço. Não é só o governo que está colocando dinheiro”, disse. Segundo Franco Lajolo, vice-reitor da USP que assumiu a reitoria interinamente no final de 2009 e participou das negociações do novo centro, a iniciativa é “um jogo em que todos os participantes vão ganhar”. O essencial, segundo ele, é garantir que não faltem recursos para as próximas etapas do centro. “A colaboração entre universidades, governo e FAPESP vai ampliar nossa capacidade de resolver grandes problemas em bioenergia, condição fundamental para não perdermos a nossa competitividade.”

A pesquisa em bioenergia vem crescendo no país, principalmente em São Paulo, estado que concentra boa parte da produção de cana do país, e envolve iniciativas federais, estaduais e do setor privado. O Centro Paulista de Pesquisa em Bioenergia, de acordo com seus idealizadores, quer diferenciar-se de iniciativas já existentes mirando em avanços na fronteira do conhecimento, associados à formação de recursos humanos qualificados.

Marcos GarutiPós-graduação
Uma das ambições do novo centro, cuja viabilidade ainda está sendo avaliada, é criar um programa conjunto de pós-graduação envolvendo as três universidades. As três instituições têm tradição em estudos de bioenergia, sobretudo na área de agronomia, com destaque para a USP e a Unesp, na de conversão de biomassa, que é bem desenvolvida na Unicamp, e em genômica, no âmbito do Programa FAPESP Sucest (Sugar Cane Est), que mapeou os fragmentos de genes funcionais da cana. Mais conhecido como Genoma Cana, este projeto foi iniciado em 1999 por cerca de 240 pesquisadores liderados pelo professor Paulo Arruda, da Unicamp, com financiamento da FAPESP e da Coo-perativa dos Produtores de Açúcar e Álcool do Estado de São Paulo (Coopersucar). Depois de 2003, Glaucia Mendes Souza, do Instituto de Química da USP, assumiu a coordenação do Sucest e iniciou o Projeto Sucest-FUN, composto por uma rede de pesquisadores dedicados à análise funcional dos genes da cana e à identificação de genes associados a determinadas características agronômicas.

O centro também promoverá a ampliação do número de pesquisadores trabalhando no campo da bioenergia no estado de São Paulo. Na fase de implantação, as três universidades deverão contratar 17 docentes e pesquisadores. Esse número deve chegar a cerca de 50, à medida que novos investimentos no centro forem feitos pelo governo. Um mapeamento dos profissionais atuantes nas três instituições paulistas foi realizado pelo Comitê de Pesquisa em Bioenergia, que organizou a proposta do centro, composto pelo diretor científico da FAPESP, Carlos Henrique de Brito Cruz, e pelos professores Antonio Roque Dechen, da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz, da USP, Nelson Ramos Stradiotto, do Instituto de Química da Unesp, e Luís Augusto Barbosa Cortez, da Faculdade de Engenharia Agrícola da Unicamp.

No mapeamento foram consultados 456 docentes e pesquisadores, sendo que 365 deles, ou 80% do total, responderam ao questionário. A conclusão foi que existe um número significativo de pesquisadores das três universidades que desenvolvem pesquisa em bioenergia e que a capacitação concentra-se na produção de biomassa e nos processos industriais ligados à produção de bioenergia. “A presença brasileira no âmbito das publicações científicas é grande na área de agronomia e de desenvolvimento de variedades da cana, mas não é tão expressiva em outras áreas”, diz Cortez, da Unicamp. “Precisamos investir em pesquisa para que o Brasil busque a liderança em todas as áreas, pois não basta ser forte em apenas algumas delas”, afirma.

Há um número relativamente baixo de pesquisadores que atuam, por exemplo, na área de motores automotivos, o que coloca um problema para o futuro dos motores flexíveis para álcool e gasolina – eles só existem atualmente no Brasil, não são alvo de investimentos vultosos pelas filiais das montadoras e tendem a perder competitividade para os motores a gasolina e diesel, cujo desenvolvimento é impulsionado pelas matrizes dos fabricantes de carros. “Com a identificação dos pontos de estrangulamento, poderemos definir melhor onde alocar recursos humanos, reforçando áreas já existentes e suprindo lacunas nas menos pesquisadas”, afirma Antonio Roque Dechen, da Esalq-USP. Para Nelson Stradiotto, da Unesp, a ampliação do contingente de pesquisadores e o estímulo à formação de doutores permitirão que o país conte com uma nova geração de cientistas trabalhando em temas de fronteira num horizonte de 10 anos. “Temos que pensar alto, pois é isso que os Estados Unidos estão fazendo hoje”, afirma.

Outra área que conta com um número limitado de pesquisadores é a de biorrefinarias, que busca desenvolver insumos químicos e polímeros verdes, estimulando a substituição de petróleo por etanol como matéria-prima. “A meta do centro não é simplesmente produzir mais combustível com custos menores, mas produzir riqueza a partir do conhecimento. Se quisermos que a biomassa seja sucedânea dos combustíveis fósseis, precisamos torná-la lucrativa como o petróleo, investindo em novas aplicações, como a geração de energia e a alcoolquímica, que ampliam a renda para o setor e a sociedade”, afirma Cortez.

Vantagem competitiva
A base científica produzida pela iniciativa busca ajudar o Brasil a competir com outros países, notadamente os Estados Unidos, na transição para as tecnologias de segunda geração, aquelas que prometem extrair energia de celulose. O Brasil, que dispõe da tecnologia mais eficiente de etanol de primeira geração, extraída da sacarose da cana-de-açúcar, tem uma vantagem competitiva na corrida da tecnologia de segunda geração, que é uma enorme disponibilidade de biomassa, na forma de bagaço e palha de cana. Tais substratos correspondem a dois terços da energia disponível na cana e hoje são aproveitados na queima e geração de eletricidade. Mas o país não tem investido tanto quanto seus competidores na superação dos desafios tecnológicos que persistem – hoje ainda não há tecnologia economicamente viável para extração de energia de celulose. Para vencer esses desafios e buscar conquistas de impacto, o centro investirá em pesquisa básica, deixando para outras iniciativas já existentes a preocupação com avanços incrementais. A pesquisa aplicada e o desenvolvimento tecnológico realizados no centro deverão acontecer em cooperação com o setor privado.

O novo centro vai incorporar-se ao esforço do Programa FAPESP de Pesquisa em Bioenergia (Bioen), lançado em julho de 2008 com o objetivo de avançar em ciência básica e em desenvolvimento tecnológico relacionados à geração de energia obtida de biomassa. Além de buscar a competitividade econômica do biocombustível brasileiro, o centro tem uma meta socioambiental, que é produzir conhecimento capaz de melhorar os indicadores de sustentabilidade da cadeia produtiva da cana-de-açúcar. “A estratégia fundamental do centro é aumentar o número de cientistas em áreas de ciência básica relacionadas aos temas do Programa Bioen da FAPESP em São Paulo”, disse Brito Cruz, diretor científico da Fundação. “É muito significativo que o governo estadual tenha aprovado a proposta da FAPESP e das universidades, garantindo apoio adicional com investimento direto, para um programa de pesquisas organizado pela Fundação”, afirmou.

Marcos GarutiOs programas de pesquisa do centro deverão compreender as mesmas áreas previstas na criação do Bioen, e que envolvem toda a cadeia produtiva da cana-de-açúcar. São elas a produção da biomassa para bioenergia, a pesquisa de meios de produção de bioenergia, as biorrefinarias e alcoolquímica, a área de aplicação em motores automotivos e, por fim, os aspectos de sustentabilidade, como os impactos econômicos, sociais e ambientais do uso da bioenergia. Cada uma dessas linhas de pesquisa promoverá iniciativas nas áreas de educação e de difusão, a fim de estimular a transferência para a sociedade do conhecimento produzido.

Duas áreas consideradas fundamentais para ampliar a produtividade da cana são as dos mecanismos que envolvem a fotossíntese na cana-de-açúcar e a das relações funcionais da genômica da cana. No caso da fotossíntese, a ambição é conhecer melhor o processo pelo qual a planta fixa o carbono, convertendo a energia solar em energia química. Tal processo é reconhecido como de baixa eficiência e, no caso da cana-de-açúcar, não tem despertado a curiosidade dos pesquisadores. Em relação à genômica, a intenção é criar vias de manipulação genética para obter variedades adaptadas a diferentes ambientes de produção, como clima, disponibilidade de água, fertilizantes e tolerância a herbicidas. Ainda hoje, a obtenção dessas variedades é feita com base em técnicas tradicionais de melhoramento genético.

Sustentabilidade
A pesquisa em sustentabilidade, um tema que se tornou tão essencial quanto o da produtividade, também será intensificada. “Para o desenvolvimento da bioenergia no Brasil, é fundamental associarmos os esforços pelo aumento de produtividade ao objetivo da sustentabilidade. Só a bioenergia sustentável terá um futuro no século XXI”, afirma Brito Cruz. No campo da agricultura, existem temas emergentes como a utilização de técnicas de plantio direto, já usadas nas culturas do milho e da soja, mas ainda uma novidade na cana-de-açúcar, para reduzir a compactação do solo causada pela colheita mecanizada. A proibição das queimadas nos canaviais abrirá campos de pesquisa relacionados à fertilidade do solo, o uso de herbicidas e questões relativas à biodiversidade. “A melhoria de indicadores ambientais e sociais está diretamente relacionada à definição de uma nova agricultura da cana, que comece por entender a fotossíntese e a genômica da cana e passe pela redefinição das mais importantes etapas que levarão à aceitação do etanol de cana-de-açúcar como um combustível líquido efetivamente renovável e com atributos ambientais inequívocos, principalmente quanto à sua capacidade de mitigar os gases de efeito estufa”, diz Antonio Roque Dechen, da Esalq-USP.

A inspiração para o novo centro vem da experiência de países como Austrália, Estados Unidos, África do Sul, Espanha e França, mas talvez as principais referências sejam os dois centros criados pelo Departamento de Energia dos Estados Unidos (DOE, na sigla em inglês). Um deles, o National Renewable Energy Laboratory (NREL), é voltado a pesquisas de conversão de biomassa em energia. O outro, o Oak Ridge National Laboratory (ORNL), dedica-se mais à pesquisa envolvendo a produção da biomassa. Tais centros desenvolvem pesquisa conjunta com centros de pesquisa ligados a várias universidades norte-americanas. “Estes centros no exterior, notadamente os do DOE, envolvem forte colaboração com boas universidades americanas e podem nos servir de modelo”, diz Cortez, da Unicamp. “Em conjunto com a iniciativa privada, pode haver uma boa complementaridade nas ações e objetivos da pesquisa básica e suas aplicações”, afirma.

A coordenação do centro caberá a um conselho superior, sediado na FAPESP e composto por sete membros: um representante da FAPESP, um de cada universidade, um do governo estadual e dois de empresas do setor do açúcar e do álcool. Esse conselho irá determinar a orientação geral do centro, acompanhar o processo de implantação, estimular a integração de esforços das três universidades e propor parcerias. Para assessorar o conselho superior será formado um conselho científico consultivo internacional, que se reunirá uma vez por ano para avaliar cientificamente os programas e os resultados alcançados. O conselho científico será constituído por pelo menos seis especialistas de renome internacional, atuantes em pesquisa básica nas áreas correlatas com as atividades do centro.

Está em desenvolvimento um acordo de colaboração com a Unesco, o braço das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura, que prevê o status de centro associado à Unesco na categoria II (centros de pesquisa não administrados pela Unesco e reconhecidos por ela como de classe mundial). O objetivo é garantir um maior relacionamento internacional. O recrutamento de bons alunos e pesquisadores no exterior também é considerado estratégico por auxiliar o conjunto de políticas que compõem a chamada agenda de diplomacia brasileira do etanol: ao mesmo tempo que promove a liderança tecnológica do Brasil também ajuda a garantir mercados de outros países.

O matemático Jacob Palis, presidente da Academia Brasileira de Ciências (ABC) e da Academia de Ciências do Mundo em Desenvolvimento (TWAS), elogiou o caráter internacional do centro e disse que a TWAS tem interesse em estabelecer parcerias com a iniciativa. “O novo centro poderá propiciar a formação de pesquisadores não só do Brasil, mas também de outras nações, em particular da África, que dispõe de áreas degradadas que poderiam ser destinadas à produção do etanol”, afirma. “Será interessante haver um fluxo de doutores e pós-doutores de países em desenvolvimento para o novo centro”, diz Palis.

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