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Paleobotânica

As árvores do deserto

Floresta de coníferas ocupou ambiente quente e arenoso na era dos dinossauros

Fotos Edivane Cardoso/ UFG e Adriano R. dos Santos/ UFUFósseis encontrados em fazenda próxima a Uberlândia, Minas GeraisFotos Edivane Cardoso/ UFG e Adriano R. dos Santos/ UFU

Os proprietários da Fazenda Sobradinho, próximo à cidade de Uberlândia, em Minas Gerais, retiraram de suas plantações há 40 anos o que pensavam ser apenas pedras no caminho e as deixaram em marmorarias da região. Naquele ano, 1972, os geólogos Kenitiro Suguio e Armando Márcio Coimbra analisaram o material e concluíram que as pedras eram, na verdade, troncos fossilizados de árvores que dois anos depois a paleontóloga Diana Mussa classificou como sendo de um grupo de pinheiros primitivos. Mas a conclusão foi recebida com descrença no meio científico. É que quando essas plantas viveram, cerca de 130 milhões de anos atrás, toda aquela região era parte de um vasto deserto de areia.

A confirmação de que os pesquisadores brasileiros estavam certos só veio agora. As evidências mais convincentes de que os fósseis da Fazenda Sobradinho são mesmo de plantas ancestrais das coníferas – grupo que inclui os pinheiros, as araucárias e as sequoias – foram apresentadas em julho deste ano em um artigo no Journal of South American Earth Sciences, resultado de um trabalho iniciado 15 anos antes.

Edivane Cardoso, hoje professor da Universidade Federal de Goiás, era estudante de biologia na Universidade Federal de Uberlândia (UFU) no final dos anos 1990 quando resolveu analisar ao microscópio os fósseis encontrados durante seu trabalho final do curso de graduação. E se surpreendeu ao ver entre as amostras de rocha fragmentos de caule petrificado. Mais especificamente, eram fragmentos de lenho – tecido de sustentação, formado pelos canais que transportam água e nutrientes entre as raízes e as folhas – de plantas que viveram 130 milhões de anos antes, no período geológico Cretáceo. Cardoso e o orientador de sua monografia na UFU, o geólogo Adriano Rodrigues dos Santos, tiveram dificuldade em convencer outros pesquisadores da descoberta. “Enviávamos o estudo para congressos e eles duvidavam. Não acreditavam que eram fósseis de vegetais tão antigos, encontrados na formação Botucatu”, conta Cardoso.

Supercontinente
Até então se duvidava de que plantas de grande porte pudessem ter vivido na região no Cretáceo, uma vez que a formação Botucatu era um deserto de areia que se estendia por áreas que hoje formam o Sudeste e o Sul do Brasil, parte do Paraguai, da Argentina e do Uruguai. Na época em que viveram essas coníferas, os dinossauros já haviam se espalhado pelo planeta. A América do Sul ainda estava conectada à África e ambas integravam um supercontinente chamado Gondwana, em cujo centro ficava o de-serto Botucatu. Segundo simulações geo-lógicas, esse deserto era parte de uma região árida mais extensa situada no hemisfério Sul, próximo ao equador, durante um grande ciclo climático de aquecimento global (hothouse), no qual prevaleceram altas temperaturas. “Os cientistas diziam que a ocorrência de fósseis na formação Botucatu era impossível, até que se descobriram registros de pegadas de dinossauros ali”, conta a paleobotânica Margot Guerra Sommer, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, que ajudou a descrever os fósseis das coníferas no Journal of South American Earth Sciences.

fontes: 1. Edivane Cardoso com base em Maria Labouriau / História Ecológica da Terra 2. Pires et al./ Journal of South American Earth SciencesO número, a densidade e o porte dos troncos fossilizados permitem aos pesquisadores supor que houve uma floresta de coníferas onde hoje existe um fragmento de cerrado. Os fósseis são de plantas adultas e estão tombados, muitos deles compactados horizontalmente, sinal de que grande quantidade de sedimento recobriu a antiga floresta antes que as plantas se petrificassem. Cinco exemplares de grande porte, cada um com mais de cinco metros de comprimento, foram recuperados. Também foram encontrados fragmentos fósseis menores, inclusive de raízes. “São muitos fósseis, não conseguimos precisar quantos”, diz Margot. Segundo as pesquisadoras, essas árvores devem ter vivido próximas umas das outras, formando uma densa floresta. Além disso, eram de grande porte, com até 20 metros de altura, provavelmente mais altas do que os pinheiros atuais.

Ao analisar as características microscópicas dos fósseis, Margot e Etiene Fabbrin Pires, hoje professora na Universidade Federal do Tocantins, verificaram que os exemplares coletados são anatomicamente semelhantes, ou seja, todos provavelmente pertencem à mesma espécie, que integra o grupo das protopináceas. “Esse material é importante, pois se trata do primeiro registro paleobotânico para a formação Botucatu em toda a bacia do Paraná”, explica Etiene.

Diante desse cenário, os pesquisadores se perguntaram: como essas árvores teriam se desenvolvido no deserto? As raízes fossilizadas encontradas no sedimento arenoso da Fazenda Sobradinho indicam que o material não foi transportado e que as plantas provavelmente viveram no local onde foram sepultadas. “O curioso é que essas grandes árvores eram sustentadas por um solo pobre em nutrientes”, conta Etiene. De acordo com os pesquisadores, é possível que essas árvores vivessem à margem do deserto, em formações vegetais que cresceram entre as dunas, em regiões com maior umidade, ambientes semelhantes àqueles em que hoje se desenvolvem os oásis.

A água, embora disponível, era escassa em determinados períodos. Os anéis de crescimento, estruturas do tronco que indicam o ciclo de vida das plantas, sugerem que essas árvores viveram sob estresse constante. “Nos anéis de crescimento, as células do lenho tardio não apresentam espessamento da parede, como ocorre nas árvores atuais”, explica Etiene. “Nesses fósseis, houve simplesmente redução do tamanho da célula.” Essas características anatômicas indicam que o crescimento dessas protopináceas era controlado pela alternância de estações secas e úmidas, e não pela disponibilidade de mais ou menos luz solar, como ocorre com as coníferas atuais, adaptadas a climas temperados.

Folhas perenes
As análises microscópicas dos lenhos fósseis também levaram a concluir que provavelmente as folhas dessas plantas eram perenes e não caíam em períodos de seca prolongada. Mas é impossível afirmar como era a aparência dessas árvores, já que só troncos e raízes foram preservados. “Elas deveriam se parecer com as coníferas atuais”, diz Margot. “Com base na anatomia do lenho, pode-se sugerir que elas tenham sido ancestrais de plantas do gênero Pinus.” Cicas, samambaias e outras coníferas dominavam a paisagem em diferentes regiões do globo na época em que essas protopináceas viveram. “Há registro de coníferas em ambos os hemisférios em períodos anteriores, contemporâneos e posteriores ao estudado”, diz Etiene. Na época em que as coníferas da Fazenda Sobradinho viveram as plantas com flores estavam surgindo e, só alguns milhões de anos mais tarde, se adaptariam aos diferentes ambientes do planeta. Hoje as coníferas ocorrem em poucos locais nas regiões Sudeste e Sul do Brasil.

Por enquanto, não é possível explicar como ocorreu a fossilização dessas árvores. Uma hipótese é que esse processo de petrificação tenha se iniciado com a planta ainda viva, como ocorre em muitos ambientes hoje. “Vamos investigar as características anatômicas que ajudam a determinar a espécie”, conta Margot. “A partir de características dos fósseis e do sedimento, também queremos conhecer com mais precisão qual o ambiente em que essas plantas viveram no grande deserto Botucatu.”

Artigo científico
PIRES, E. F. et al. Early Cretaceous coniferous woods from a paleoerg (Paraná Basin, Brazil). Journal of South American Earth Sciences. v. 32 (1), p. 96-109. jul. 2011.
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