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Teatro

Criando sobre o palco vazio

Em momento de entressafra, Antunes Filho cogita montar Hamlet

Emidio Luisi / Acervo GEDES SESC Memórias, 2010Cena de Policarpo Quaresma, de 2010, exibida em janeiro na TV SescEmidio Luisi / Acervo GEDES SESC Memórias, 2010

O ator que busca sentir uma emoção para forjar os sentimentos de um personagem não pode estar no palco de Antunes Filho, 82.

Desde 1978, o mais velho dos diretores brasileiros ainda vivos é avesso aos clichês do realismo praticados por ele próprio em uma fase imediatamente anterior àquele ano, que foi marcado pela estreia de Macunaíma, sua histórica adaptação para a obra de Mário de Andrade.

É justamente nessa passagem que, como reconhecem alguns teóricos teatrais brasileiros, reside a entrada para a contemporaneidade do teatro nacional. No livro Panorama do teatro brasileiro, por exemplo, o crítico Sábato Magaldi defende a montagem de Macunaíma como principal candidata a esse marco.

Inquieto por natureza, Antunes não se satisfaz com uma posição já conquistada. Em cada trabalho procura superar a si próprio, e agora diz ter encontrado um dos maiores desafios de sua carreira: quer encenar Hamlet, de William Shakespeare. “Não sei quando estreia, porque não quero fazer correndo; quero ter tempo para poder fazer um saravá ao teatro com essa montagem”, diz.

A investida surge no mesmo momento em que a produção mais recente de Antunes é revista por um projeto da TV Sesc, que filmou suas três últimas peças, Policarpo Quaresma, Foi Carmen e Lamartine Babo. As versões para a TV foram exibidas em janeiro.

Mas o que faz do trabalho de Antunes um pilar de quase tudo o que ainda hoje é produzido em termos de representação cênica em solo nacional? Em primeiro lugar, esse legado se apoia justamente no afastamento das técnicas do realismo. Imitar a vida deixa de ser a prerrogativa. Recriá-la parece ganhar mais sentido.

Na época em que Macunaíma estreou, o cinema articulava as ferramentas necessárias para recortar na tela o sonho naturalista, embora o próprio Glauber Rocha (1939-1981) e outros cineastas de vanguarda tenham emprestado seu talento a um contraponto à mimese.

O teatro se reinventava, portanto, em busca de linguagens desconhecidas, cioso de algo que se perdera no paralelo com a sétima arte. Não só no Brasil. O experimentalismo varreu o mundo, inspirado sobretudo pelo trabalho de alguns artistas europeus.

Antunes, conta ele, desde o início de sua carreira nos anos 1940 dava sentido quase dogmático aos métodos de Stanislavski, espécie de pai do naturalismo. Ainda hoje a metodologia do diretor e teórico russo está debaixo do braço de qualquer estudante de artes cênicas, nas principais escolas do mundo.

Paquito / Archivo GEDES SESC Memórias, 1984Macunaíma, na montagem de 1978: marco do teatro brasileiro contemporâneoPaquito / Archivo GEDES SESC Memórias, 1984

Um dos maiores sucessos de Antunes antes da recriação de seu próprio estilo nos anos 1970 tem seus fundamentos técnicos nas teorias de Stanislavski. Plantão 21 (1959), de Sidney Kingsley, recria situações de uma delegacia, tateando a verossimilhança típica do cinema. O espetáculo é protagonizado por um delegado cujas convicções éticas acabam se remodelando ao ambiente corrupto. No elenco estavam Jardel Filho, Mauro Mendonça e Laura Cardoso, entre outros.

É o estilo de Plantão 21 que Macunaíma recusa. O experimento cênico inaugurou o Centro de Pesquisa Teatral de Antunes (que existe até hoje e é subsidiado pelo Sesc-SP) e valeu-se tanto do distanciamento crítico proposto pelo alemão Bertolt Brecht como da estilização gestual dos expressionistas.

Como lembra Sebastião Milaré em seu Hierofania, estudo sobre a trajetória e a elaboração do método de criação de Antunes, os elementos cênicos da montagem pareciam “se resumir a folhas de jornal e longas extensões de tecido branco, que se transformavam em florestas, em rios, em tanta coisa”.

A partir de então, Antunes se abre para um verdadeiro surto criativo, que resultou em espetáculos como Nelson Rodrigues, o eterno retorno (1981), Romeu e Julieta (1984) e Nova velha história (1991). Neste último, o diretor chega a criar um idioma específico para os personagens de sua peça. O espectador, obviamente, não compreendia o que era dito, mas embarcava no fio narrativo de uma fábula absolutamente familiar.

O caminho traçado por Antunes em busca de uma linguagem própria passou então por influên-cias internacionais importantes, como os trabalhos do encenador polonês Tadeusz Kantor, o balé da coreógrafa alemã Pina Bausch e o butô pós-catástrofe nuclear do dançarino japonês Kazuo Ohno.

A obsessão do diretor com um trabalho vocal eficiente para o palco – até hoje, quando fala na voz do ator, Antunes aponta a nuca, e não a boca, como principal fonte de emissão sonora – resultou em montagens históricas de tragédias gregas, como Fragmentos troianos (1999) e Medeia (2001). E de seus espetáculos saíram atores como Cacá Carvalho, Luís Melo e Giulia Gam.

Hoje Antunes se debruça sobre Hamlet, mas ainda incerto de um caminho para o clássico do autor inglês William Shakespeare.

Diz que decerto outras montagens antecederão esta, dada a complexidade da obra protagonizada pelo príncipe da Dinamarca. Enquanto não decide por uma nova montagem, o diretor observa o palco vazio de seu centro de pesquisa, que tem, sobre a porta de entrada, um pequeno quadro, onde está escrito:

“De maneira nenhuma pode-se dizer que não haja nada num palco vazio, num palco que se pise de improviso. Pelo contrário. Existe ali um mundo transbordante de coisas. Ou melhor, é como se do nada surgisse uma infinidade de coisas e de acontecimentos, sem que se saiba como e quando”. 
O texto é de Kazuo Ohno.

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