
Segundo as pesquisadoras Elza Berquó e Sandra Garcia, também pesquisadora do Cebrap, o principal objetivo desse trabalho é mostrar que no Brasil a transição demográfica tem características próprias. Por um lado, o rejuvenescimento da fecundidade já apontado e de outro, um adiamento da reprodução para após os 30 anos. A convivência desses dois regimes de fecundidade moldará o futuro próximo do país. “Essa transição pode ser positiva ou não, dependendo de como a sociedade lidará com essas mudanças. Como a fecundidade caiu muito e a população está envelhecendo, além de a expectativa de vida ter se elevado, no futuro, entre 2030 e 2035, teremos uma carência séria de mão de obra jovem, como acontece nos países mais desenvolvidos, onde há décadas há mais idosos do que jovens, o que coloca cada vez mais um peso sobre a população economicamente ativa”, analisam as pesquisadoras. “Mas, no Brasil, há esse elemento novo, o rejuvenescimento da fecundidade, não verificado nos países desenvolvidos. Em 1980, o pico da fecundidade estava entre os 25 e 29 anos. Hoje, está na faixa das jovens de 20 a 24 anos. Isso mostra que há um fôlego, ainda que, logo, os jovens vão pesar cada vez menos e os idosos, mais.”
Fonte: Pesquisa Nacional de Demografia e SAúde - 2006
Bônus
“Até meados do século XXI teremos uma população envelhecida. Mas, no caso brasileiro, ainda há tempo de se aproveitar isso como um ‘bônus demográfico’, não mais viável no caso europeu. Na educação, por exemplo, a redução do ritmo de crescimento da população ao lado do envelhecimento podem ser um bônus, já que há chances de melhorar a cobertura e a qualidade do ensino. Diminui-
-se a pressão também sobre os recursos naturais e o meio ambiente”, observa a demógrafa. “Mas é uma janela que se fechará rapidamente, por volta de 2030, permitindo uma arrancada no desenvolvimento e um aumento na qualidade de vida, desde que esse bônus seja inteligentemente aproveitado”, avisa o demógrafo José Eustáquio Diniz, coordenador da pós-graduação do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). “Se perdermos essa chance ficaremos apenas com as desvantagens de uma população envelhecida, que pode significar a queda no crescimento econômico face à crise no mercado de trabalho e o peso dos velhos sobre os mais jovens”.

“Há também uma percepção altamente positiva das jovens sobre as implicações da gravidez em sua vida amorosa e em sua autoestima, espantosos 96,2%. Isso está na contramão de quem vê na gravidez adolescente uma falta de projeto de vida. Os dados parecem indicar que, na ausência de uma melhor educação, de melhores condições de vida e de oportunidades, essa gravidez, embora não prevista, se configura como projeto de vida e não a ausência dele”, diz Sandra. “Para boa parte da sociedade, a gravidez na adolescência é um mal de grandes proporções, uma irresponsabilidade, quase uma tragédia nacional, já que o que se espera dos jovens é que estudem e se preparem para o mercado. Essa visão ideal não leva em conta que as oportunidades não são oferecidas de maneira igual para todos na sociedade brasileira”, observa Maria Luiza Heilborn, professora do Instituto de Medicina Social da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (IMS/UERJ). “É o mesmo equívoco de achar que as populações pobres estão prestes a criar uma explosão demográfica. Em geral, nos segmentos mais pobres, a maternidade é vista como um status social face à falta de perspectivas profissionais, uma forma de entrar no mundo adulto. Nas classes médias, a maternidade só é bem aceita mais tarde, quando as questões profissionais e financeiras estão resolvidas. Daí, a recorrência ao aborto nesses estratos”, analisa.
Fonte: Pesquisa Nacional de Demografia e Saúde - 2006
Para a pesquisadora, ao mesmo tempo em que a gravidez jovem é indesejada, um indicador de “subdesenvolvimento”, a sociedade fechas as portas de acesso a métodos contraceptivos e criminaliza o aborto e a pílula do dia seguinte. “Há uma censura contra a gravidez na adolescência, mas não há o mesmo consenso em permitir o uso de certos métodos de interromper a gravidez”, avalia Maria Luiza. “As escolhas contraceptivas e reprodutivas estão sendo feitas em um contexto de ilegalidade do aborto e de pouca informação e provisão inadequada da contracepção de emergência no Brasil. Vale lembrar ainda o reduzido nível de implementação dos programas de educação em sexualidade nas escolas públicas. Qual seria a trajetória dessas jovens se as instituições melhorassem sua ação e o país tivesse oportunidade mais igualitárias?”, pergunta-se Sandra. Afinal, estar informado sobre métodos contraceptivos durante a relação sexual não garante seu uso adequado. “Nessa idade, há uma grande imprevisibilidade dos encontros sexuais e, logo, não há incorporação da contracepção ao cotidiano juvenil. Existe vergonha em falar com a família ou ir a uma farmácia para comprar preservativos. Já a pílula, com seus efeitos colaterais sobre o corpo das jovens que vivem numa sociedade que cobra formas perfeitas, a tendência ecológica dos jovens de não ingerir produtos químicos, e o esquecimento de tomar a pílula, determinam a gravidez indesejada”, avalia Eliane Brandão, do IMS/Universidade Federal do Rio de Janeiro. A tudo isso se reúnem as falhas no uso dos contraceptivos e o despreparo dos profissionais de saúde em atender jovens e explicar os métodos.
“No fundo, o sexo entre adolescentes é um tabu, algo não assumido e que não é contemplado com a atenção necessária pelas autoridades, pela escola e pela família. Por que as campanhas do uso da camisinha contra o HIV, que tiveram grande repercussão, não atrelaram ao problema das doenças sexualmente transmissíveis a questão da gravidez? Foi uma falta terrível de visão”, nota Elza. A pesquisadora não é tão otimista sobre o entusiasmo das jovens que engravidam na adolescência. “Em geral, essa visão positiva é post facto, ou seja, uma forma de aceitar algo já posto”, diz.
A demógrafa também não concorda totalmente com a tese de que boa parte das jovens que deixou a escola ao se verem grávidas teria saído de qualquer forma ou já estavam fora dela antes da gravidez. “É pertinente perguntar por que isso ainda acontece numa sociedade em que as melhores oportunidades de emprego estão associadas a maiores níveis educacionais. Não há programas especiais para mães jovens nas nossas escolas e, ainda que não tenhamos dados concretos, temos que considerar que ser mãe quando já há tão poucas chances para pessoas com baixa educação terá consequências sérias nas vidas dessas adolescentes”, acredita a demógrafa. Uma jovem sem filhos tem 60 vezes mais chances de continuar na escola do que uma mãe da mesma idade e estrato social e econômico.
“No Brasil, a falta de educação e oportunidades está induzindo muitas adolescentes a começar uma família como projeto de vida. Num sistema educacional e econômico melhor, isso, com certeza não ocorreria, como se vê nos países avançados em que também há queda na fecundidade geral, mas sem concentração em faixas etárias baixas”, pondera Elza. Quem efetivamente planejaria ser mãe tão jovem num país sem creches ou apoio à maternidade adolescente, obrigando-as a contar com a solidariedade familiar e de vizinhos para sobreviver e entrar no mercado. “Isso explica as grandes filas para esterilização, que expõem as mulheres a DSTs. Exercer a sexualidade não é fácil. É um direito natural, mas há riscos.” Ao mesmo tempo, nas classes mais abastadas, a pesquisa revelou um fenômeno curioso: 44% das jovens entre 15 e 20 nunca tiveram relações sexuais. “Esse número nos impressionou. Elas afirmam ter outras coisas para fazer e ocupar o tempo e querem casar virgens: não se trata apenas de não engravidar ou não iniciar a vida sexual. É um conservadorismo crescente que pode estar associado ao aumento dos evangélicos”, observa Elza.
Mais recentemente, a Medida Provisória 577 do governo federal que instituiu um cadastro nacional de gestantes e puérperas, cuja intenção seria a de diminuir a mortalidade materna, pode ter como consequência a identificação de ocorrência de abortos, “o que seria uma invasão direta da intimidade das mulheres e a possibilidade de pressão de grupos conservadores para propostas e medidas que viessem a retroceder os avanços já obtidos nesse campo, como congelamento de embriões e experimentos com célula-tronco”, fala Elza.

Um fenômeno presente em vários países europeus e nos EUA, a reprodução assistida tem uma crescente demanda no Brasil, mas, na grande maioria, os tratamentos são feitos em clínicas privadas com um alto custo. “Hoje não são apenas os casais mais abastados, mas a população mais pobre que quer ter o direito ao processo, que está garantido pela Constituição na questão do direito à reprodução. É do Estado a responsabilidade de disponibilizar os tratamentos para a população em geral”, conta Sandra. Lésbicas e homossexuais masculinos, ao lado de pessoas solteiras, também reivindicam esse direito. Em 2005 foi instituída a Política Nacional de Atenção Integral em Reprodução Humana Assistida, ligada ao SUS, mas logo em seguida foi suspensa. “É um desrespeito ao direito de cidadania, bem como deixa a prática sem qualquer regulação, vulnerabilizando as mulheres. Não é incomum, quando uma nova tecnologia em reprodução assistida é divulgada na midia, haver uma corrida às clínicas que a realizam, na busca de soluções tecnológicas que ainda estão sendo apropriadas pelo mercado e necessitando de maior tempo para sua validação.” conta a pesquisadora. Para Sandra, a reprodução assistida não vai impedir a queda da fecundidade, mas pode trazer realização a muitas pessoas. “Falta, porém, uma movimentação maior das mulheres por esse direito. Isso pode ser devido ao fato de que os movimentos de mulheres lutam há muito tempo pelo direito de acesso ao aborto e aos métodos contraceptivos, demandas prioritárias ainda não plenamente atendidas”, diz Sandra. “Por outro lado, o trabalho de desconstrução da maternidade como destino feminino, pelos movimentos feministas, levou a que parte desse movimento exercesse fortes críticas e resistência às tecnologias reprodutivas”, acrescenta.
A pesquisadora Elza Berquó afirma que “homens e mulheres devem ter o direito de decidir tanto sobre sexualidade quanto orientação sexual e reprodução, cabendo ao Estado informar e dar condições para que o sexo seja seguro e, portanto, prazeroso”. É na intimidade que se desenha o novo mapa demográfico do país. Conhecê-lo e compreendê-lo pode vir a contribuir para a garantia e a ampliação dos direitos sexuais e reprodutivos.
O Projeto
Reprodução assistida no Brasil: aspectos sociodemográficos e desafios para as políticas públicas (nº 2010/14827-6); Modalidade Jovem Pesquisador; Coordenadora Sandra Garcia – Cebrap; Investimento R$ 142.680,00