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Teatro

Onde o teatro encontra a cidade

Cia. São Jorge de Variedades leva novo espetáculo às ruas da Barra Funda

divulgação / cia são jorge devariedades

Barafonda, em cartaz na Barra Fundadivulgação / cia são jorge devariedades

Junto com o século XX ficou para trás também o período que, ao menos no meio teatral paulistano, ganhou o título de “a era dos diretores”. José Celso Martinez Corrêa, Antunes Filho e Gerald Thomas haviam feito trabalhos memoráveis como encenadores, mas metodologias comandadas por autoridades não pareciam, na virada do milênio, encantar uma nova geração de artistas. Ganhou força, dali em diante, um novo tipo de produção, mais aberto para a participação – ou para a coautoria – do ator, do iluminador, do cenógrafo. Estabeleceu-se, então, o que um dia poderá ser chamado de “a era dos coletivos”.

A Companhia São Jorge de Variedades surgiu exatamente nesse contexto, acompanhada desde o berço por outras companhias jovens que, em parte, firmaram seus trabalhos com ajuda de incentivos públicos. A Lei do Fomento, criada pela prefeitura de São Paulo, por exemplo, permitiu processos de pesquisa continuados; e juntos ganharam fôlego o Núcleo Bartolomeu de Depoimentos, o Folias D’Arte, a Cia. Livre de Teatro, a Cia. do Latão e muitos outros coletivos.

A São Jorge acaba de estrear Barafonda, dando prosseguimento a esse histórico de pesquisas iniciado em 1998, ano de sua fundação por atrizes formadas na Escola de Artes Dramáticas e pela Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP). Neste novo trabalho o processo de criação parte da tragédia grega Prometeu acorrentado, de Ésquilo, mas também da figura de Dionísio, deus do vinho e das festas. Os dois mitos são revisitados a partir de uma ideia: eles representam personagens que abordam a questão da liberdade de maneiras distintas.

Na argumentação da peça, Prometeu, personagem conhecido por sua inteligência e também por ter roubado o fogo de Zeus e tê-lo entregue aos mortais, simboliza a ideia de que progresso, civilização, lógica e ciência cerceiam a vontade e induzem a um aprisionamento moral e cívico. Dionísio faz um contraponto: representa a sabedoria da espontaneidade, o vigor dos instintos primitivos, da confraternização, da embriaguez e da insanidade.

Essas duas figuras permitem ao grupo ao menos um fio narrativo ligado aos mitos e suas histórias. Mas a adaptação se amplifica com a criação de um subtexto poético, criado em processos de improvisação e que dão origem a um caminho de veias ritualísticas. “Para nós, não bastava mais falar sobre as festas, sobre a comunhão. Esse discurso nos pareceu limitado diante da possibilidade de sermos nós próprios a festa e a comunhão. Por isso saímos à rua”, diz a atriz Georgette Fadel, que dirigiu este e boa parte dos trabalhos produzidos pela São Jorge de Variedades.

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Quem não sabe..., de 2009, ganhou um Prêmio Shelldivulgação / cia são jorge devariedades

Barafonda é quase inteiramente encenado na rua. Os espectadores fazem, com o elenco, um trajeto de cerca de dois quilômetros, cujo ponto de partida é a praça Marechal Deodoro, ao lado do elevado Costa e Silva, conhecido como Minhocão. Boa parte do caminho passa pelas ruas da Barra Funda, bairro onde está a sede do grupo. “O título vem daí. ‘Barafonda’, em sua origem, quer dizer multidão desordenada, bagunça”, explica Georgette.

Quem estiver na plateia do espetáculo vai entender bem esse significado. Não só por causa de uma proposta que não tem enredo como foco, mas também porque tudo acontece muitas vezes no meio do trânsito de carros e pedestres, conta a diretora. A peça começa às 15 horas e tem cerca de três horas de duração (mais informações: www.ciasaojorge.com). Ou seja, “pegamos o rush e o entardecer da cidade”, comenta Georgette. “Esse é um espetáculo sobre a Barra Funda, mas é principalmente uma vontade nossa de realizar uma comunhão com o bairro onde estamos sediados”, explica ela. “Queremos, ainda, subverter o tempo da cidade, que na verdade tem como marca justamente a falta de tempo.”

Desde a fundação da companhia, suas criações são pautadas por uma vontade latente de subverter as convenções de ocupação do espaço. No espetáculo Um credor da fazenda nacional, de 1999, o grupo resgatava a obra de José Joaquim de Campos Leão, conhecido como Qorpo-Santo (1829-1883), e a encenava pelos camarins e corredores de um teatro. Em determinado momento, o público subia ao palco para assistir ao espetáculo. Com o jogo invertido, o elenco passava a ocupar a plateia, e a peça corria entre as poltronas.

Desde o início houve também uma aproximação com a cartilha brechtiana. Distanciamento dialético e discursos dirigidos diretamente à plateia, sem quarta parede, atravessaram espetáculos como Biedermann e os incendiários (de 2001), com texto de Max Frish. A peça tem como protagonista Biedermann, que mora em uma cidade acometida por incêndios criminosos. Ingenuamente, ele presta auxílio a um grupo de amigos, hospedando-os em sua casa. Descobre, depois, que eles trazem consigo, em suas bagagens, galões de gasolina.

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Santo guerreiro e o herói desajustado, de 2007divulgação / cia são jorge devariedades

São textos sempre com forte teor político. “Nós sabemos muito bem o que queremos e não deixamos espaço para dúvida”, diz Georgette. “Nossas opiniões são bem definidas, mas quando apontamos o dedo também nos colocamos na reta”, prossegue, refletindo principalmente sobre o individualismo das grandes cidades, ou sobre uma introspecção artística que, antes, “não abrangia o espaço urbano”.

Uma das mais importantes influências do grupo é o Teatro da Vertigem, diz Georgette. “Deixar o palco italiano para ocupar outros espaços não era algo exatamente novo, mas eles fizeram isso com tal força que acabaram influenciando a minha geração”, pondera. Em seu último projeto, BR-3 (2008), o Vertigem encenou uma peça dentro de um barco que navegava pelo rio Tietê.

A experiência de ocupar a malha urbana já havia determinado o campo de trabalho em outros espetáculos da São Jorge, como no espetáculo Quem não sabe mais quem é, o que é e onde está precisa se mexer (2009), que rendeu à companhia um Prêmio Shell. Naquele projeto, “a dramaturgia elege o contato com a realidade como algo mais urgente”, como escreveu o crítico Kil Abreu, em texto sobre “o enfrentamento entre teatro e sociedade”.

O embate se dava entre os atores – que gritavam palavras de ordem para os espectadores e qualquer um que estivesse passando pela rua – e uma cidade anestesiada por seus hábitos e uma estrutura econômica colossal. Representavam, eles, ali, escreve Abreu, “uma geração […] que muitas vezes olhou em volta e só viu o nada, ou o cansaço de batalhas findas ou adormecidas”.

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