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biologia celular

A herança do clone

Identificação de erro na reprogramação celular da bezerra Penta reorienta estudos de reprodução animal

189_clone penta_esp50Naquela manhã fria de 30 de junho de 2002, o Brasil acordou cedo para vibrar com os dois gols de Ronaldo Nazário, o Fenômeno, contra a Alemanha, que garantiriam à seleção nacional a conquista do quinto título de Copa do Mundo. Poucos dias depois, em 11 de julho, o Brasil alcançaria outro feito memorável, desta vez na área científica – nascia em Jaboticabal, no Hospital Veterinário da Universidade Estadual Paulista (Unesp), com 42 quilos, a bezerra Penta (evidente homenagem ao escrete canarinho), o primeiro clone brasileiro gerado a partir de células de um animal adulto. Os dois clones anteriores resultaram do uso de células fetais ou embrionárias, que se reprogramam mais facilmente.

A euforia, no entanto, transformou-se rapidamente em decepção. Penta morreu com um mês – em 12 de agosto. Consequên-cia de erros de reprogramação celular – quando genes não se expressam ou se manifestam de maneira desordenada — ocorridos durante a clonagem. No caso da bezerra brasileira, o defeito de fabricação estava relacionado ao sistema imunológico, devido a uma baixa produção de anticorpos. “O timo, órgão responsável por ativar o sistema de defesa nos recém-nascidos, não funcionava de forma adequada. Penta tornou-se vítima de uma série de infecções e acabou morrendo por sepse”, conta Joaquim Mansano Garcia, do Departamento de Medicina Veterinária e Reprodução Animal da Faculdade de Ciências Agrárias e Veterinárias (FCAV) da Unesp.

Superada a tristeza, a morte da bezerra incentivou a equipe da Unesp a tentar entender os riscos envolvidos no processo de reprogramação celular. Levou-a também a investigar mais detidamente o que faz os genes se manifestarem de forma equivocada ou simplesmente silenciarem, como se estivessem desligados, quando o embrião é obtido a partir de técnicas de clonagem. As consequências desses desvios de rota podem ser, entre outros, malformações e problemas respiratórios, neurológicos, imunológicos e ósseos, além do envelhecimento precoce. Tudo isso pode resultar em morte, como aconteceu não só com Penta, como também com outra ovelha famosa, a Dolly, primeiro ser vivo a ser clonado com sucesso em laboratório, em 1996, no Instituto Roslin, na Escócia.

Dolly viveu seis anos. Era um animal ao mesmo tempo jovem, considerado o tempo médio de vida das ovelhas, e idoso, dado que foi clonada a partir de uma célula adulta, com as pontas dos cromossomos – os telômeros – já mais curtas. “Há uma aparente contradição que precisa ser resolvida. Se usamos material genético normal, de indivíduos doadores saudáveis, por que essas aberrações e equívocos acontecem? É possível superá-los? São perguntas feitas por vários laboratórios do mundo e que também decidimos investigar”, revela Garcia.

O pesquisador explica que existem nos seres vivos enzimas chamadas de DNAmetil-transferases, responsáveis pela incorporação de radicais metil ao DNA. Esse mecanismo por sua vez atua para dar mais estabilidade e proteção às células, ajudando-as a estabelecer relações mais equilibradas com o meio externo. Nesses 10 anos, os estudos desenvolvidos pela equipe da Unesp conseguiram confirmar que, para que os riscos de erros na reprogramação sejam minimizados ou anulados, é preciso que o metil seja encontrado nas células em padrões considerados adequados – se há excesso ou falta dele, as chances de genes silenciarem e de a clonagem não dar certo são ampliadas. “Sabemos que os níveis de metilação podem ser alterados pelo ambiente, mas ainda não temos como agir, em laboratório, para tentar corrigir ou controlar essas mudanças”, diz Garcia.

Justamente por conta das relações estabelecidas com o ambiente e de eventuais prejuízos que podem causar à clonagem, o pesquisador da Unesp lembra que é preciso também acompanhar de perto e estudar elementos como o sistema de cultura das células e as condições do óvulo doado que irá gerar o embrião.  Se forem manipulados ou conservados de maneira errada ou pouco cuidadosa, poderão ser responsáveis por erros de reprogramação. Atento a esse cenário, atualmente Garcia coordena um estudo que avalia, comparativamente, o que acontece com a metilação do DNA em fetos e placentas com 60 dias de gestação, obtidos a partir de fecundação natural (in vivo), artificial (in vitro) e por meio de clonagem. O objetivo é identificar eventuais roteiros distintos de evolução e diferenças relacionadas à reprogramação genética, nas três situações. Os primeiros resultados do trabalho devem ser conhecidos até o final do ano.

Penta certamente contribuiu para sofisticar o conhecimento dos brasileiros sobre clonagem, mesmo tendo vivido por pouco tempo. Ela nasceu a partir do DNA de uma célula somática (com 46 cromossomos) retirada da cauda de uma vaca nelore (Bos indicus, rebanho indiano) e injetado em um óvulo doado por uma vaca holandesa (Bos taurus). No entanto, apesar de o núcleo pertencer à mãe indiana, 97% do código genético de Penta era semelhante ao da mãe europeia. “Era um resultado esperado, mas vislumbrávamos uma mistura um pouco mais acentuada. Penta confirmou que, na clonagem, o material do citoplasma prevalece sobre o do núcleo”, confirma Garcia.

Os pesquisadores da Unesp revelaram, em agosto de 2002 (edição nº 78 de Pesquisa FAPESP), que, embora tenham se valido da mesma técnica usada para produzir a Dolly, a clonagem de Penta inovou ao utilizar o cloreto de estrôncio combinado à droga ionomicina para ativar o óvulo reconstituído. Experimentos anteriores tinham optado por aproveitar a ionomicina com o composto 6DMAP (6-dimetilaminopurina). Segundo Garcia, o cloreto de estrôncio é mais vantajoso, pois é capaz de reproduzir com mais fidelidade os efeitos de uma fecundação normal por espermatozoide.

Para ele, além de abrir os horizontes sobre as perspectivas de melhoramento genético do rebanho bovino no Brasil, trabalhos como os que resultaram na clonagem de Penta podem servir de ferramenta para o estudo das mitocôndrias, que são os chamados reservatórios de energia e responsáveis pela respiração das células. “Mudanças nas funções dessa organela”, diz Garcia, “podem prejudicar o metabolismo celular e, dependendo da intensidade, predispor a doenças degenerativas que se manifestam também em humanos, como o mal de Alzheimer”, diz Garcia.

O projeto
Estudo da Função e Herança do DNA Mitocondrial (mtDNA) nos Bovinos: Um Modelo Animal Produzido com Nelore (nº 1998/11783-4) (1999-2004); Modalidade Projeto Temático; Coordenador Joaquim Mansano Garcia – Unesp Jaboticabal; Investimento R$ 875.415,17

De nosso arquivo
Penta, o clone campeão – Edição nº 78 – agosto de 2002

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