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Saúde Pública

Aids ainda longe do controle

Taxas elevadas de infecção persistem entre homossexuais e expõem lacunas das estratégias de prevenção

LEONILSON; FOTO EDOUARD FRAIPONTJogos perigosos, circa 1990, acrílico sobre tela, 50 x 60 cmLEONILSON; FOTO EDOUARD FRAIPONT

Os profissionais da área da saúde estão preocupados com o silencioso avanço da Aids. A razão mais recente são os resultados de um estudo em que foram entrevistados 1.217 frequentadores de bares, cinemas e boates da região da República e da Consolação, no centro da cidade de São Paulo. Esse trabalho registrou taxas altas de infecção pelo vírus HIV, causador da Aids, principalmente entre jovens homossexuais, e revelou situações que os tornam muito vulneráveis às infecções, além de brechas nas estratégias de prevenção de uma doença que ainda é um desafio de saúde pública, com 37 mil casos novos por ano no Brasil, dos quais 7 mil no estado de São Paulo.

Dos entrevistados com 18 a 24 anos de idade, 6,4% estão infectados com o vírus HIV – uma taxa cerca de 50 vezes maior que a média nacional nessa faixa de idade. Entre os entrevistados com 18 e 19 anos, a taxa de infecção foi de 5%, indicando que teriam se contaminado nos dois primeiros anos da vida sexual. Considerando todas as faixas de idade, a taxa de infecção entre todos os entrevistados foi 15% para o HIV e 18% para a sífilis, outra doença sexualmente transmissível.

Leonilson
O artista plástico José Leonilson Bezerra Dias nasceu em Fortaleza, Ceará, em 1957. A temática da Aids predominou em sua obra a partir de 1991, quando ele soube que estava com HIV/Aids. Leonilson morreu em 1993

“São números inaceitavelmente altos”, afirma Maria Amélia Veras, professora da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo e uma das coordenadoras desse estudo. Chamado SampaCentro, esse trabalho reuniu pesquisadores da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa, Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo, Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Universidade de São Paulo (USP), Instituto Adolfo Lutz, Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e organizações não governamentais. “O que vimos reflete o que se passa também em outras regiões da cidade e em outras cidades”, diz Gabriela Calazans, professora da Santa Casa, pesquisadora do Centro de Referência e Treinamento em Doenças Sexualmente Transmissíveis e Aids da Secretaria de Saúde de São Paulo e outra coordenadora da pesquisa.

O Ministério da Saúde registra um aumento na prevalência da infecção entre homossexuais de 17 a 22 anos de idade – de 0,56% em 2002 para 1,2% do total de infectados em 2007 –, mas os hábitos sociais e sexuais dos homossexuais e bissexuais, segundo as coordenadoras desse trabalho, não eram examinados em profundidade em São Paulo desde o Projeto Bela Vista, há cerca de 10 anos.

Os lugares visitados nesse levantamento são frequentados principalmente por homossexuais (80% dos entrevistados). Por ali circulam também homens que fazem sexo com homens e não se consideram homossexuais, além de homens que fazem sexo com mulheres, reforçando a necessidade de ações específicas de prevenção entre todos os grupos. De 1980 a junho de 2011, as estatísticas registraram 608.230 casos de Aids no Brasil, com uma incidência crescente entre mulheres, infectadas principalmente pela via heterossexual. De acordo com o Ministério da Saúde, havia um caso de Aids entre mulheres para cada 26 de homens em 1985; já em 2010 a proporção era de um caso em mulheres para cada 1,7 homem.

Medo e discriminação
Trinta anos depois de os primeiros casos terem sido registrados em São Paulo e em outros estados, a Aids perdeu visibilidade, já que deixou de ser uma doença incurável de alta mortalidade.Em muitos sentidos, porém, parece ter mudado pouco. Não se fala mais em grupos de risco, um conceito de saúde pública que no início da epidemia causou discriminação mesmo em quem não estava infectado, mas as agora chamadas populações mais vulneráveis ainda são vítimas de discriminação na escola, no trabalho, na família e no círculo de amigos, como a pesquisa indicou. Persiste a preocupação com os riscos da infecção pelo HIV, mas nem sempre a prevenção parece possível. Quem pode estar infectado tende a adiar o teste de detecção do vírus por causa do medo de sofrer as consequências de uma doença cujo tratamento ainda é árduo. O uso do preservativo ainda é o método mais seguro e barato de evitar a infecção, mas nem sempre é promovido e, portanto, adotado por jovens e outros segmentos mais expostos à infecção.

Quase metade (43%) dos entrevistados disse que tinha pelo menos curso universitário, indicando que não teria sido por falta de acesso à informação que se contaminaram ou se arriscam a se contaminar. Quase todos os entrevistados reconheceram que o risco de se infectar com o HIV nas relações homossexuais era grande (69%) ou moderado (28%), mas a consciência do risco nem sempre se converteu em ações que pudessem evitar a infecção: quase um terço (29%) dos entrevistados relatou ter dificuldade em usar preservativo quando estão apaixonados e 13% sentem dificuldade para dizer ao parceiro que quer usar preservativo.

“Nos contextos de vida e das relações nem sempre há espaço para a adoção de medidas de prevenção capazes de evitar a transmissão do vírus para outras pessoas”, diz Gabriela. Ela faz um paralelo com a prevenção de doenças como hipertensão, diabetes ou obesidade: “Apesar de sabermos que devemos mudar a dieta e praticar atividades físicas, nem sempre é fácil incorporar as mudanças às nossas vidas”.

Os entrevistadores não encontraram cartazes ou material indicando medidas de prevenção do contágio ou recomendando a realização de testes para diagnóstico da infecção pelo HIV ou outra doença sexualmente transmissível na maioria dos 73 lugares visitados. “Vários gerentes disseram que o público precisava saber mais sobre medidas de prevenção de Aids”, observou Gabriela. “Poucos disseram que nosso trabalho iria atrapalhar o funcionamento da casa e barravam os entrevistadores, alegando que os clientes estavam ali para se divertir e não queriam ouvir falar de doença. As barreiras foram mais frequentes em locais voltados às camadas socioeconômicas mais altas.”

De novembro de 2011 a janeiro de 2012, 34 entrevistadores trabalhavam geralmente das 22 horas às 2 horas da madrugada para conhecer os hábitos e os temores de homossexuais, heterossexuais e bissexuais. Ao encontrá-los, faziam uma pergunta simples: “Pode participar de uma pesquisa?”, e logo em seguida uma contundente: “Você já fez sexo anal ou oral com homossexual ou travesti?”.

Depois da entrevista, que durava em média 45 minutos, os entrevistadores convidavam os entrevistados para fazer uma coleta de sangue na ponta do dedo para detectar o HIV. Dos 1.217 entrevistados, 778 fizeram o teste, mas só 282 foram buscar o resultado no Centro de Referência e Treinamento em DST/Aids da Secretaria da Saúde, na Vila Mariana; dos 235 que fizeram os testes para sífilis e hepatites B e C, 172 foram buscar. “Muitos participantes aceitaram realizar o teste como forma de contribuir para a produção de conhecimentos que pudessem reorientar o desenvolvimento de políticas públicas de saúde para o grupo, mas já diziam não ter interesse em buscar o resultado, em muitos casos porque já o conheciam, mas também por medo”, observa Gabriela.

“Principalmente entre os homens que fazem sexo com homens, o medo de saber que é positivo aparece como a maior razão para não fazer o teste ou não querer saber do resultado”, disse Maria Amélia ao apresentar as conclusões do estudo na manhã do dia 30 de agosto em um congresso sobre prevenção de Aids realizado em São Paulo. “O resultado do teste, se positivo, pode intensificar a discriminação e o isolamento social.”

Estabilização questionável
“Os jovens de hoje não viram a cara da Aids, quando iniciamos o trabalho de prevenção na escola”, afirma Vera Paiva, coordenadora do Núcleo de Estudos para a Prevenção da Aids (Nepaids) e professora do Instituto de Psicologia da USP. Quem nasceu depois de 1990 provavelmente apenas ouviu falar do pavor dos primeiros tempos da Aids, na década de 1980, quando nem os médicos nem os pacientes sabiam o que a doença era e o que a causava. Até meados dos anos 1990, quando não havia medicamentos, as pessoas com Aids chegavam aos hospitais sabendo que iam ficar em alas de isolamento e morrer em algumas semanas, no máximo em poucos meses.

“No meio do pânico do início da epidemia, quando as professoras, pais e religiosos se convenceram da necessidade de um trabalho psicoeducativo promovendo a prevenção, era mais fácil trabalhar com as escolas”, diz Vera Paiva. “Mas hoje muitos gestores restringem a prevenção nas escolas, apesar de a educação escolar de adolescentes sobre o uso do preservativo ter sido apoiada por 97% dos brasileiros, de todos os grupos sociais. Foi também o trabalho nas escolas que garantiu a celebrada estabilização do crescimento da epidemia.”

Para ela, a noção de estabilização da epidemia, propagada pelo Ministério da Saúde, “não pode ser celebrada, muito menos nos níveis em que está”. “Quisemos acabar com a inflação, não controlar”, ela compara. “Não podemos nos contentar em ver as taxas de infecção em patamares altos. A valorização incorreta de estabilização, a homofobia vigente e o recrudescimento do discurso religioso podem jogar por terra um trabalho de mobilização e de prevenção de décadas.” Ativistas, pessoas com Aids ou seus amigos e familiares, pesquisadores e médicos conseguiram trabalhar intensamente em conjunto e deter o avanço da epidemia por meio de medidas de prevenção até o final da década de 1990, quando começaram a ser distribuídos os primeiros medicamentos contra Aids.

Em paralelo, várias equipes trabalhavam com afinco em institutos de pesquisas e universidades para participar do combate à epidemia. Um dos marcos desse empenho é a identificação do vírus HIV no Brasil, em 1987, como resultado do trabalho do imunologista baiano Bernardo Galvão e de sua equipe da Fiocruz do Rio de Janeiro (ver Pesquisa FAPESP nº 118). Nos anos seguintes, outros grupos começaram a identificar os subtipos do HIV mais frequentes no país, desse modo contribuindo para aprimorar os tratamentos médicos.

“Acomodação”
No dia 21 de agosto começou a circular pela internet – e depois foi debatido no congresso em São Paulo – o manifesto “Aids no Brasil hoje – o que nos tira o sono”, que ganhou esse título em referência a um comentário de Dirceu Greco, diretor do Departamento de DST, Aids e Hepatites do Ministério da Saúde. Na conferência internacional de Aids, realizada em Washington, ele disse que não perdia o sono por causa da doença no Brasil.

O documento, que em poucos dias exibia quase 370 nomes – o primeiro era o de Vera Paiva, do Nepaids –, sustentava: “A afirmação de que a epidemia de Aids está sob controle no Brasil, além de falaciosa, tem prejudicado a resposta nacional, despolitizando a discussão e afastando investimentos internacionais. Se no passado declarar que éramos o melhor programa de Aids do mundo legitimou as decisões ousadas que outrora caracterizaram o programa brasileiro e que tantos benefícios trouxeram à população, o que temos hoje é, pelo contrário, um programa desatualizado, cujos elementos são insuficientes para enfrentar a configuração nacional da epidemia”. O documento expôs um aumento de 10% no número de mortes por Aids (de 11.100 em 2005 para 12.073 em 2010) e de 12% no número de casos (de 33.166 em 2005 para 37.219 em 2010).

LEONILSON; FOTO EDOUARD FRAIPONTEl puerto, c. 1992, bordado sobre tecido de algodão e espelho emoldurado, 23 x 16 cmLEONILSON; FOTO EDOUARD FRAIPONT

“Parece que houve uma acomodação dos diferentes atores na resposta à epidemia”, comentou Ivo Brito, coordenador da unidade de prevenção do programa nacional de DST e Aids do Ministério da Saúde, em um dos debates do congresso. “Olhávamos para tendências gerais, não para particularidades, ou microáreas, que muitas vezes expressavam dados bem diferentes. A Aids não é uma epidemia única, é um conjunto de epidemias, um mosaico, com características próprias.”

E agora, o que fazer?
“Não se pode enfrentar a prevenção de doenças sexualmente transmissíveis sem reconhecer que existe uma grande diversidade de comportamento, de orientação sexual e de formas como as pessoas resolvem seus desejos”, ressalta Maria Amélia. Ela conta que sua equipe tem se encontrado com representantes do governo e de organizações não governamentais para assegurar que as análises ajudem a orientar ações capazes de conter a Aids e outras doenças sexualmente transmissíveis. “Temos de ser criativos e ampliar as ações de prevenção”, diz ela. Veriano Terto Junior, coordenador-geral da Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids (Abia), uma das mais antigas organizações não governamentais nessa área, concorda: “Uma só estratégia de prevenção, recomendando o uso da camisinha, não tem sido suficiente”.

Os especialistas reconhecem a necessidade – e a urgência – de ampliar o acesso a preservativos, a testes e a serviços de saúde e intensificar as ações de aconselhamento sobre as formas de prevenir a infecção e ampliar as estratégias de prevenção. Uma das mais recentes, intensamente debatida nos últimos meses, é o uso de medicamentos antivirais que poderiam ser tomados antes ou logo após a exposição a situações de risco de infectar-se. Os especialistas ressaltam, porém, que essa nova possibilidade de tratamento preventivo ainda está sendo avaliada e não está claro a que grupos poderá servir melhor e como poderia efetivamente funcionar.

Trabalhar mais intensamente com grupos mais vulneráveis à infecção pelo HIV parece, outra vez, prioritário. Paulo Roberto Teixeira, assessor do programa estadual de DST-Aids em São Paulo, havia feito essa recomendação logo no início da epidemia, como registrado no livro Aids – A epidemia, de 1987. No último dia do congresso de Aids em São Paulo, ele comentou: “Estamos todos insatisfeitos com o que conseguimos até o momento”.

Nos últimos 10 anos, segundo Teixeira, não houve alteração da pre       valência, que se mantém em patamares altos entre homossexuais, homens que fazem sexo com homens e prostitutas. “Em 10 anos, desde que a epidemia ganhou o perfil atual de pauperização, interiorização e heterossexualização, houve prejuízo das ações de prevenção? O esforço para descaracterizar os grupos de risco e dizer que Aids é de todos nós reduziu a intervenção nos grupos mais vulneráveis? Temos de reavaliar.”

Outro desafio considerável é como identificar e tratar as mulheres com HIV/Aids. Marli Cassamassimo Duarte examinou a prevalência de doenças sexualmente transmissíveis em 184 mulheres com HIV e idade entre 18 e 67 anos atendidas no ambulatório de infectologia da Faculdade de Medicina de Botucatu da Universidade Estadual Paulista (Unesp). Do total, 84% haviam sido infectadas pelo parceiro atual ou pelo anterior; 83% apresentavam o papiloma vírus humano (HPV), causador de câncer no colo do útero, e 24,6%, clamídia, doença sexualmente transmissível de origem bacteriana. “O alto percentual de DSTs indica sexo desprotegido e favorecimento da cadeia de transmissão”, concluiu Marli. Como esses microrganismos aumentam o risco de infecção pelo HIV, ela sugere: “O rastreio de doenças sexualmente transmissíveis deveria ser reforçado nas unidades básicas de saúde”.

Projeto
Comportamentos e práticas sexuais, acesso à prevenção, prevalência de HIV e outras infecções de transmissão sexual entre gays, travestis e homens que fazem sexo com homens (HSH) na região central de São Paulo (nº 09/53082-9); Modalidade Pesquisa em Políticas Públicas para o SUS; Coordenadora Maria Amélia de Sousa Mascena Veras – Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo; Investimento R$ 359.124,00 (FAPESP)

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