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Memória

Cientistas e diletantes

Há 110 anos profissionais da ciência e amadores criavam a Sociedade Scientifica de São Paulo

New York Botanical Garden LibraryArtigo de Lutz em alemão sobre insetos hematófagos, de 1905, e homenagem da sociedade a eleNew York Botanical Garden Library

Durante os primeiros anos do século XX surgiu em São Paulo uma associação entre cientistas profissionais e amadores com a intenção de discutir e difundir temas científicos. Foi em uma reunião na casa de Edmundo Krug, botânico e professor do Colégio Mackenzie, que se decidiu criar a Sociedade Scientifica de São Paulo em 10 de junho de 1903. “Foi um dos primeiros movimentos de cientistas do país que não era exclusivo da medicina e da engenharia, com características de juntar todas as ciências em uma única instituição”, diz o físico e historiador da ciência Thomás Haddad, da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo (USP Leste).

Na época, São Paulo tinha o Instituto Histórico e Geográfico, a Sociedade de Medicina e Cirurgia e a Sociedade de Agricultura, Comércio e Indústria. A Sociedade Scientifica surgiu num momento em que as fronteiras entre as comunidades ainda não estavam completamente estabelecidas. Isso se refletiu na composição da nova instituição, fruto da iniciativa de cientistas e“alguns diletantes”, como Krug chamava os interessados em ciência que não eram cientistas profissionais.

New York Botanical Garden LibraryNota de Splentore em italiano sobre toxoplasma, de 1908. Na época ele ainda não havia nomeado o microrganismoNew York Botanical Garden Library

Entre os primeiros a formar a sociedade, além de Krug, estavam os botânicos Alberto Loefgren e Gustavo Edwall, da Comissão Geográfica e Geológica de São Paulo, Vital Brazil, diretor do Instituto Soroterápico do Butantan, Job Lane, professor de biologia, Antonio Barros Barreto, engenheiro e professor da Escola Politécnica, Paulo Florence, professor particular, e Erasmo de Carvalho, professor de literatura do Mackenzie. Mais tarde uniram-se a eles Adolfo Lutz, médico, bacteriologista e entomólogo, Victor Dubugras, engenheiro e professor da Poli, e Belfort Mattos, futuro chefe do Serviço Meteorológico de São Paulo. Outras personalidades tornaram-se membros efetivos ou correspondentes, como Oswaldo Cruz, Emílio Goeldi, Euclides da Cunha e até políticos do Partido Republicano Paulista.

A missão da Sociedade Scientifica era melhorar o conhecimento da sociedade sobre descobertas científicas, lutar pelo ensino de ciências nas escolas, constituir uma boa biblioteca e até montar um museu. Apenas a biblioteca chegou a ser formada. Nos primeiros anos da sociedade havia conferências públicas em salas alugadas ou emprestadas. Em 1904 Vital Brazil, por exemplo, deu uma palestra sobre soro antiofídico, Belfort Mattos fez um relato sobre a influência das manchas solares no clima e Leopoldo de Freitas falou sobre a alma russa.

New York Botanical Garden LibraryPrimeira edição da revista, que durou até 1913New York Botanical Garden Library

“As conferências tinham um caráter assumidamente enciclopédico e eram acompanhadas por um pequeno e eclético público”, conta Haddad, que pesquisou o tema.

Em 1905 foi criada a Revista da Sociedade Scientifica de São Paulo, com circulação intermitente, que durou até 1913, e abordava assuntos muito variados. Alguns artigos publicados se tornaram referência. Para o primeiro número, Lutz escreveu, em alemão, um estudo sobre insetos dípteros hematófagos que até hoje é citado na literatura científica. O médico italiano Alfonso Splentore, então trabalhando em São Paulo, publicou em 1908 uma nota com a primeira descrição do microrganismo toxoplasma, ainda sem esse nome. Também foi republicada uma série escrita pelo artista e inventor Hercule Florence sobre sua viagem exploratória do rio Tietê ao rio Amazonas, que já havia saído pelo Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro anos antes.

Na década de 1910 a instituição minguou. “O último registro que encontrei foi uma nota de convocação no jornal O Estado de S. Paulo, em 1917”, diz Haddad. As razões, segundo ele, podem estar exatamente no enciclopedismo e no diletantismo da maioria de seus membros, que se tornaram inaceitáveis com a crescente especialização do campo científico. Em 1916 foi criada a Sociedade (e, partir de 1921, Academia) Brasileira de Ciências, no Rio de Janeiro, seguindo os modelos das centenárias academias de Paris e de Lisboa, com seções específicas e feitas por e para cientistas.

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