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Educação

A emoção da estreia

Programas de iniciação científica revelam disposição de universidades para estreitar relações com o ensino médio

Desbravando um novo mundo: alunos do ensino médio de Diadema unem-se para resolver desafios do programa de pré-iniciação científica da Poli-USP

Eduardo CesarDesbravando um novo mundo: alunos do ensino médio de Diadema unem-se para resolver desafios do programa de pré-iniciação científica da Poli-USPEduardo Cesar

Há três anos o cotidiano da Escola Estadual Professora Olívia Bianco, em Piracicaba, interior de São Paulo, não é mais o mesmo. O carro-chefe da reviravolta, que ainda está em andamento, é uma parceria firmada em 2010 com a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), com o objetivo de aproximar alunos dos 2º e 3º anos do ensino médio com a universidade. A cada ano, a escola seleciona seis alunos com bom desempenho em sala de aula para que, ao longo de 12 meses, desenvolvam trabalhos de iniciação científica sob orientação de docentes da Unicamp. “Os alunos que participam dizem entrar em outro mundo”, conta a diretora Vera Alice Castro Schiavinato. Segundo ela, os adolescentes que não participam do programa acabam sendo motivados pelos colegas que já frequentam laboratórios como gente grande. “É como uma corrente: o aluno que faz iniciação científica influencia os demais, e o interesse pelo estudo cresce visivelmente na escola”, acrescentou.

O ex-aluno do Olívia Bianco, Lucas Lordello dos Santos, é hoje estudante do curso de ciências do esporte da Unicamp. Até o começo de 2011, quando entrou no programa de iniciação científica, nunca havia pisado em um laboratório de pesquisa. “Eu acreditava no estereótipo de que aluno de escola pública não consegue entrar em boas universidades públicas. O projeto não só me ajudou a entrar na Unicamp como também me fez querer ir mais longe”, afirma o rapaz, que realizou seu projeto na área de anatomia na Faculdade de Odontologia. Os alunos que se submetem à iniciação científica no ensino médio ficam oito horas semanais em laboratórios da universidade, durante um ano, podendo estender o prazo se necessário.

Uma série de iniciativas, semelhantes à relatada acima, tem conseguido impulsionar o intercâmbio entre colégios da rede pública e universidades por meio da criação de novas bolsas de iniciação científica para o ensino médio. Nas principais universidades do estado de São Paulo, por exemplo, o número de alunos selecionados e de projetos aumentou significativamente. No início de abril, a Unicamp abriu suas portas para 300 adolescentes de escolas de Campinas e região, um aumento de 66% em relação a 2010. Seguindo a mesma tendência, a Universidade de São Paulo (USP) disponibilizou 512 vagas no seu Programa de Pré-iniciação Científica (Pré-IC), 97 a mais em comparação a 2012. Nos últimos anos, a Universidade Estadual Paulista (Unesp) também ampliou seu programa voltado para alunos do ensino médio, ao estendê-lo para escolas de todo o estado de São Paulo e não apenas para os colégios técnicos ligados à universidade.

Lunazzi e alunos em experimento na Unicamp

Eduardo CesarLunazzi e alunos em experimento na UnicampEduardo Cesar

Na Unicamp, o Programa de Iniciação Científica Júnior (PICJr) foi criado em 2007 com o apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), que, desde 2003, concede cotas de bolsas para alunos de ensino médio. Na primeira edição do programa foram selecionados 119 alunos de um grupo de 488 estudantes de 43 escolas públicas de ensino médio das cidades de Campinas, Limeira e Piracicaba. No ano seguinte, o número de escolas participantes aumentou 84% e a indicação de alunos chegou a 750, dos quais 144 foram selecionados. Com o aumento da demanda, a Pró-Reitoria de Pesquisa passou, com o apoio da FAPESP, a incentivar o docente orientador com um aporte de R$ 3 mil anuais para custeio de atividades dos laboratórios envolvidos. Em 2010, com a criação de outro braço no CNPq, o Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica no Ensino Médio (Pibic-EM), a Unicamp foi contemplada com mais 150 bolsas de estudo completando as atuais 300 vagas. Neste ano, a universidade recebeu 1.026 indicações de alunos interessados em participar dos 78 projetos oferecidos por docentes e pesquisadores. A área que oferece mais linhas de pesquisa é a de biomédicas.

“No começo, o aluno chega tímido, mas ao longo do ano isso muda, e, quando apresenta o pôster com os resultados do projeto, há uma transformação da qualidade de vida”, explica o docente e assessor da Pró-Reitoria de Pesquisa da Unicamp, Mário Fernando de Góes. Os alunos recebem uma bolsa de R$ 100 e tanto a alimentação quanto o transporte são pagos pela instituição. Segundo Góes, o grande trunfo do programa é aproximar os estudantes do cotidiano da vida acadêmica e oferecer a oportunidade de desenvolverem o senso crítico diante dos desafios atuais da ciência, através da construção e transmissão do conhecimento.

Mão na massa
O professor José Joaquin Lunazzi, do Instituto de Física Gleb Wataghin, da Unicamp, já orientou 10 estudantes do ensino médio, desde o início do programa, em projetos que envolvem imagens tridimensionais e cinema digital. Seus alunos são inicialmente apresentados aos processos da óptica e depois aplicam o que aprenderam na construção de equipamentos, utilizando materiais simples, espelhos, ferramentas e câmeras fotográficas. “Faço questão que coloquem a mão na massa, falta muito disso no ensino médio”, avalia. Para Lunazzi, o programa traz benefícios também para o orientador, que diante dos inúmeros questionamentos trazidos pelos estudantes precisa criar novas formas de repassar o conhecimento. “Eu poderia ter me aposentado em 2002, mas quis continuar passando um pouco da minha experiência para os mais jovens, aprendendo novas maneiras de ensinar física de um modo mais fácil.”

Atividades em grupo no Programa Futuro Cientista da UFSCar

Programa Futuros CientistasAtividades em grupo no Programa Futuro Cientista da UFSCarPrograma Futuros Cientistas

Para Belmira Bueno, coordenadora dos programas de pré-iniciação científica da USP, a ideia não é formar cientistas, mas sim ampliar a formação do aluno como um todo, para que ele tenha mais elementos e faça a melhor escolha de um curso de graduação. Segundo ela, a universidade deu início à organização de uma pesquisa que irá localizar, na rede pública, os alunos que passaram pelo programa desde 2009. “Muito em breve teremos um quadro mais completo sobre o destino desses jovens, para saber quantos ingressaram na universidade e quantos, por ventura, acabaram inseridos no mercado de trabalho”, explica. Neste caso, o objetivo é saber se houve tentativas e quais os limites que se impuseram aos egressos do Pré-IC para não terem ainda ingressado no ensino superior.

O programa da USP foi implementado em 2008 e adotou um modelo diferente de outras universidades. É inteiramente institucionalizado por meio de parcerias estabelecidas em dois acordos: um com a Secretaria Estadual de Educação (SEE) e outro com o Centro Paula Souza (CPS). O Pré-IC da USP conta com o apoio do CNPq desde 2010 e do banco Santander, que também responde pelas bolsas concedidas aos estudantes.  Há ainda um aporte da Monsanto no valor de R$ 220 mil, destinado ao pagamento de bolsas para professores do ensino médio, que participam como supervisores, e para a realização do Seminário Anual de Pré-iniciação Científica. O recurso é operacionalizado pela Fundação da USP (Fusp). Disso resulta que a USP lança três editais todos os anos com a finalidade de selecionar os alunos das duas redes de ensino público que participam do programa e os alunos de suas duas escolas que oferecem ensino médio – a Escola de Aplicação, na capital, e o Colégio Técnico de Lorena.

“Oferecemos aos estudantes de ensino médio a oportunidade de se dedicarem a um tema específico. Trata-se de algo diferente da aula expositiva da escola”, declara o pró-reitor de Pesquisa da USP, Marco Antonio Zago, que também foi presidente do CNPq entre 2007 e 2010. Segundo ele, a esperança é que programas como o da USP inspirem a criação de outros, para que as experiências existentes ganhem escala.

O CNPq destina hoje R$ 6,7 milhões para programas de iniciação científica no ensino médio, contemplando 109 universidades no total. Em 2012 foram concedidas 4.359 bolsas, entre convênios e acordos de cooperação. Segundo a coordenadora de Programas Acadêmicos do CNPq, Lucimar Almeida, a instituição está trabalhando no sentido de aperfeiçoar os instrumentos para avaliar e mapear os bolsistas até a graduação. Um dos problemas para a consolidação dos indicadores é a falta de atualização do Currículo Lattes, porque muitos alunos não continuam atualizando o sistema depois que terminam a iniciação científica. Outro entrave é o conjunto de deficiências que os estudantes trazem do início da vida escolar. “A situação da educação básica reflete nos resultados dos projetos de iniciação científica. É preciso fortalecer o ensino em ciência e matemática desde cedo, porque a bagagem de boa parte dos alunos é fraca”, diz.

Superação
Mas em muitos casos as dificuldades servem para fazer o jovem despertar de um falso mito que é criado em torno do ensino público: o de que os estudantes de escola pública não são capazes de se tornar alunos de uma boa universidade pública. “Uma vez ouvi de um professor que eu não tinha condições de correr atrás do tempo perdido e tentar passar numa universidade de boa qualidade. Tempo depois, lá estava eu, na minha escola, ensinando meus colegas e servindo de inspiração para que outros também seguissem o caminho da pesquisa”, conta Willian Apolinario de Paula, que em 2011 ingressou em um projeto de pré-iniciação científica da Escola Politécnica da USP, sobre automação e sustentabilidade, quando ainda cursava o colegial na Escola Estadual Anecondes Alves Ferreira, na periferia de Diadema. Hoje aluno do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia (IFSP), Willian diz ter certeza de que, não fosse a bolsa de pré-iniciação científica, não teria perspectiva de um futuro que nunca imaginou que poderia traçar. Assim que terminar a graduação, pretende engatar o mestrado na USP e seguir carreira acadêmica. O professor que orientou Willian na Poli, Diolino Santos Filho, afirmou que o principal atributo do programa é a possibilidade de multiplicação do conhecimento na escola. “O que mais me incentiva a fazer parte dessa experiência é observar o desdobramento dos conhecimentos que são aprimorados na universidade”, esclarece.

Willian de Paula: projeto da iniciação terá continuidade no mestrado

Eduardo CesarWillian de Paula: projeto da iniciação terá continuidade no mestradoEduardo Cesar

Desde 2012, o Projeto de Experiências de Turismo de Base Comunitária no Vale do Ribeira, realizado pelo Instituto de Psicologia da USP (IPUSP) em parceria com escolas técnicas dos municípios de Iguape, Registro e Peruíbe, no Vale do Ribeira, região sul do estado de São Paulo, reúne pesquisas sobre manifestações artísticas e religiosas, lazer e sociabilidade e interação com o turismo de comunidades tradicionais da região, como os quilombolas. A grande contribuição do projeto para os 50 alunos de ensino médio que estão envolvidos nele é a possibilidade de interação com bolsistas de mestrado, pós-doutorado e iniciação científica de graduação que também desenvolvem trabalhos na região. “Trata-se de uma política de focalização que aproxima ensino público superior e ensino médio, e por meio da qual são articulados processos educativos e científicos”, explica Alessandro de Oliveira dos Santos, um dos professores do IPUSP envolvidos no projeto.

Mudança de padrões
Fora do âmbito estadual, uma experiência que tem despontado é o Programa Futuro Cientista (PFC), iniciativa do campus de Sorocaba da Universidade Federal de São Carlos. Embora esteja vinculado à UFSCar, o projeto é independente e sobrevive graças a parcerias com empresas, como a Gerdau e o Grupo Objetivo. Fazem parte da esteira de colaboradores também outras universidades, como a Universidade de Sorocaba (Uniso), a Unesp de Botucatu, o Instituto de Física de São Carlos e a PUC de Sorocaba, que também recebem alunos. Segundo Fábio de Lima Leite, criador e coordenador do programa e professor do Departamento de Física, Química e Matemática da UFSCar de Sorocaba, dos 300 estudantes que passaram pelo programa, cerca de 10% desistiram de estudar por diversas razões, inclusive envolvimento com drogas. “As escolas estaduais estão em situação precária, vemos crianças indo para a escola só para poder comer. Nossa missão é mostrar a esses jovens que o ingresso na universidade é um projeto de vida.” As bolsas para ensino médio são fornecidas pelo CNPq, mas para os outros módulos, que envolvem estudantes do ensino fundamental (6º a 9º ano), os recursos são provenientes dos patrocinadores. Os alunos do ensino fundamental trabalham na forma de redes de pesquisadores e, ao ingressarem no ensino médio, são “adotados” pelo programa e iniciam o processo de formação científica na universidade, explica Ismail Barra Nova de Melo, outro coordenador do projeto.

Os programas de iniciação científica para alunos de ensino médio podem ter potencial para mudar certos padrões de ensino arraigados. “O modelo que domina as escolas é baseado no currículo, que é relativamente rígido e muito preocupado com notas. Essa crença de que o currículo define as coisas é sem fundamento”, observa o pró-reitor Marco Antonio Zago. Na avaliação dele, o sistema mais eficiente é aquele em que a sala de aula torna-se uma equipe, integrando alunos e professores, com o objetivo de resolver questões fundamentais, como acontece em pesquisas científicas.

“O foco passa a ser a resolução de múltiplos problemas, que estão relacionados com a vida na sociedade, com os seres vivos”, afirma Zago. Nesse modelo, portanto, o trabalho em grupo, a reunião livre entre alunos e professores e a liberdade para arriscar são fatores que ajudam a definir não apenas o resultado em si de uma pesquisa, mas o nível de interesse pelo ato de estudar de uma sala de aula. “Os jovens gostam de fazer tudo em grupo, como ir para a balada. Por que não aprender da mesma forma?”, conclui.

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