Imprimir PDF Republicar

Biocombustíveis

Do bagaço à inovação

Em meio à crise do setor, empresas investem em tecnologia para aumentar a produção de etanol

Centro de pesquisas da Syngenta em Itápolis, interior de São Paulo, onde a empresa realiza a multiplicação de materiais genéticos

SyngentaCentro de pesquisas da Syngenta em Itápolis, interior de São Paulo, onde a empresa realiza a multiplicação de materiais genéticosSyngenta

No início de fevereiro, a ETH Bioenergia, fundada em 2007 pela Organização Odebrecht, mudou definitivamente seu nome para Odebrecht Agroindustrial e anunciou investimentos com a finalidade de moer 30% a mais do volume de cana-de-açúcar processado na safra 2012/2013 e produzir 2 bilhões de litros de etanol – o equivalente a 8,6% da atual produção anual do país, de 23 bilhões de litros. O investimento de R$ 1 bilhão será aplicado na expansão da área de cultivo e também em pesquisas de variedades de cana e novos processos de produção de etanol. E, para isso, a área de inovação da Odebrecht Agroindustrial, criada em 2010, teve de se articular com universidades e centros de pesquisa, como o Instituto Agronômico de Campinas (IAC).

“Construímos nossa estratégia de inovação bem no momento de crise da cana no país”, diz Carlos Calmanovici, diretor de Inovação e Tecnologia da Odebrecht Agroindustrial. O exemplo da Odebrecht é um dentre outros de grandes empresas, como Syngenta, Monsanto e Granbio, que nos últimos anos ampliaram seus investimentos em pesquisa utilizando melhoramento genético para a obtenção de novas variedades de cana ou tentando encontrar alternativas para a produção de etanol a partir do bagaço que sobra da planta.

A explicação para a fase nada doce de desaceleração enfrentada pelo setor sucroenergético desde 2008 é uma combinação de diversos fatores, que passam, por exemplo, pela crise internacional de crédito, problemas climáticos em três anos consecutivos, entre 2009 e 2011, e a falta de reajustes no preço da gasolina. No entanto há certa distância entre a crise da produção de cana-de-açúcar e a situação da pesquisa realizada no setor. A diferença, conta Calmanovici, é que a pesquisa é pensada a longo prazo, e um dos exemplos dessa visão estratégica é o acordo de cooperação que a empresa firmou em 2011 com a FAPESP, resultando em 11 projetos de parceria com universidades do estado de São Paulo, como a USP, a Estadual de Campinas (Unicamp) e a Federal de São Carlos (UFSCar), para as quais foram disponibilizados R$ 20 milhões, metade desembolsada pela Fundação e a outra metade pela empresa. Boa parte dos projetos teve início no ano passado e envolve desde pesquisas para o desenvolvimento de cana-de-açúcar transgênica resistente a insetos até a identificação e seleção de plantas com genótipos (constituição genética) para as condições agroecológicas do Pontal do Paranapanema, região onde a produtividade de cana ainda não é boa.

Há cinco anos a perda de fôlego do setor sucroalcooleiro no Brasil fez muitos analistas sustentarem a hipótese da “década perdida” da indústria em relação à produção de açúcar e etanol. Os investimentos que chegaram a US$ 6,4 bilhões em 2008 foram reduzidos para US$ 250 milhões em 2012, segundo Eduardo Leão, diretor-executivo da União da Indústria de Cana-de-Açúcar (Unica).  A previsão é que a atual retomada de investimentos no setor deverá esperar por mais cinco anos, tempo necessário para a renovação completa do canavial – uma situação muito diferente do momento de grande salto dado entre 2005 e 2010, após a entrada do carro flex no país em 2003. Naquela época, os Estados Unidos e a União Europeia começaram a estabelecer diretrizes para o uso de biocombustíveis, com metas de consumo para os próximos anos. As iniciativas contribuíram para a entrada de multinacionais no setor.

A partir de 2012, começou-se a esboçar um futuro menos sombrio. A produção de etanol apresentou leve retomada e o governo federal mostrou sinais de reação à crise com uma série de incentivos, como a elevação percentual de mistura do etanol na gasolina, de 20% para 25%, e a redução de impostos (PIS e Cofins). “Não é ainda um momento rentável para o setor, mas os ganhos em produtividade com investimentos em tecnologia e a consequente redução dos custos médios de produção têm amenizado os problemas financeiros de algumas empresas”, explica Miriam Bacchi, pesquisadora do Centro de Estudos Avançados em Economia da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz da USP (Esalq/USP). Com o etanol de segunda geração, por exemplo, a estimativa de algumas empresas, como o Centro de Tecnologia Canavieira (CTC) e a Granbio, é atingir ganhos próximos de 50% com esse novo processo produtivo, que deverá entrar no mercado nacional em 2014.

Um dos possíveis marcos desse novo posicionamento de grandes empresas diante da importância da pesquisa com cana foi a compra, em novembro de 2008, das brasileiras Allelyx e CanaVialis pela multinacional Monsanto, por US$ 290 milhões. As duas empresas nasceram como start-ups de um fundo de capital de risco da Votorantim Negócios, entre 2002 e 2003, após o sequenciamento do genoma da Xylella fastidiosa, a bactéria causadora da praga do amarelinho nos laranjais, em programa financiado pela FAPESP. Para Paulo Arruda, professor do Instituto de Biologia da Unicamp e um dos fundadores da Allelyx, o processo de compra pela Monsanto fomentou o desenvolvimento dessa área de pesquisa com cana-de-açúcar e ajudou a impulsionar a biotecnologia da cana no país. “Houve um impacto positivo, inclusive em outras empresas, como o próprio CTC, que passou a modificar seu processo de gestão”, argumenta. Em 2011, o CTC deixou de ser uma Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (Oscip) para se tornar uma Sociedade Anônima (SA). “Hoje temos que ganhar dinheiro com as tecnologias que desenvolvemos aqui”, afirma Robson Cintra de Freitas, vice-presidente de negócio e novas tecnologias do CTC, que foi criado em 1969 pela Copersucar em Piracicaba, interior de São Paulo.

Por meio do melhoramento convencional, a Monsanto lançou no mercado três variedades de cana em 2012 e pretende, para este ano, colocar em circulação mais uma. A empresa não revela quanto investe em pesquisa no setor de cana, mas Gustavo Monge, gerente de biotecnologia da Monsanto no Brasil, diz que do US$ 1,4 bilhão que a empresa destina a suas pesquisas no mundo todo “uma parcela significativa vem para o país”. Segundo ele, o setor sucroenergético apresenta projeções de grande aumento de demanda no consumo de açúcar e etanol.

Estufa de cana na nova estação experimental da Granbio, em Alagoas

Michel RiosEstufa de cana na nova estação experimental da Granbio, em AlagoasMichel Rios

“No campo da pesquisa, não consigo imaginar empresas de biotecnologia sendo afetadas nem positiva nem negativamente pela crise, porque as decisões são a longo prazo e olham para uma situação de mercado em que a competitividade do etanol cresce fruto da inovação”, avalia o economista André Nassar, da consultoria Agroicone. Já para José Maria da Silveira, professor do Instituto de Economia da Unicamp, “o aumento da pesquisa aplicada é estimulado pelas instituições públicas em parcerias com a iniciativa privada”. Como exemplo, ele cita o Programa FAPESP de Pesquisa em Bioenergia (Bioen), iniciado em 2008 e que conta hoje com 12 empresas no grupo de parceiros, entre elas a Odebrecht e outras como Dedini, Oxiteno e Braskem. “Há uma evolução no número de parcerias estabelecidas entre o programa e empresas, buscando incrementos tanto do melhoramento tradicional quanto da rota transgênica”, afirma Glaucia Mendes Souza, professora do Instituto de Química da USP e uma das coordenadoras do Bioen.

Outra medida institucional que favorece a pesquisa é a exigência de que a colheita seja totalmente mecanizada no estado de São Paulo – o maior polo de produção canavieira do país, responsável por 52% da produção nacional segundo a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab). A mecanização acaba exigindo tecnologias inovadoras tanto em equipamentos quanto em novas variedades de cana mais adaptadas ao processo. Algumas das variedades produzidas pela Monsanto, por exemplo, têm como característica a fácil adaptação à colheita mecanizada. Desde 2007, o estado deixou de queimar 5,53 milhões de hectares e de lançar à atmosfera mais de 20,6 milhões de toneladas de poluentes, segundo o governo do estado.

Uma contribuição tecnológica proporcionada pela pesquisa no campo vem da nova fase do CTC. A empresa conseguiu a redução do tempo de colocação no mercado de novas variedades de cana do seu programa de melhoramento. Isso significa que o tempo para uma variedade nova ser transferida do laboratório para o mercado diminuiu seis anos no máximo. Até poucos anos atrás esse intervalo, que inclui uma série de testes e cruzamentos de plantas, era de 12 a 14 anos, e agora é de 8 anos, explica Marcos Casagrande, gerente de desenvolvimento de produtos do CTC.

Mudas de cana preparadas no laboratório do CTC em Piracicaba...

Eduardo CesarMudas de cana preparadas no laboratório do CTC em Piracicaba…Eduardo Cesar

Desde 2007, a grande expectativa do CTC é em relação ao etanol de segunda geração. Entre julho e agosto deste ano deverão começar as atividades para construção de uma planta em escala de demonstração, na Usina São Manoel, a qual terá capacidade instalada de produzir 3 milhões de litros de etanol, antes de se avançar para a etapa industrial. Em 2008, o processo desenvolvido pelo CTC para se obter etanol celulósico da cana foi patenteado, por representar uma diferença estratégica em relação aos métodos adotados por outras empresas que estão na corrida da pesquisa com etanol de segunda geração no país. O processo de hidrólise enzimática da celulose presente no bagaço e na palha será completamente integrado à estrutura existente da usina. Além de reduzir custos, essa integração se torna uma alternativa para solucionar o problema da capacidade ociosa da fermentação e da destilaria, dois setores da usina que geralmente se encontram em nível próximo de 30% de paralisação devido à flexibilidade das usinas para direcionarem a produção ora para o açúcar, ora para o etanol. “Se o etanol de segunda geração é agregado numa usina, consegue-se utilizar esse potencial para obter um combustível mais barato”, afirma Freitas. No início do ano, o Plano Conjunto BNDES-Finep de Apoio à Inovação Tecnológica Industrial dos Setores Sucroenergético e Sucroquímico (Paiss) assinou o primeiro contrato com uma empresa, no caso o CTC, que recebeu crédito de R$ 227 milhões da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), de um total de R$ 2 bilhões em recursos que serão destinados a projetos até o meio do ano.

A brasileira Granbio, fundada em 2011, também vislumbra novos horizontes para o etanol de segunda geração. Neste ano, seu centro de pesquisas de biotecnologia sintética, localizado no complexo do Techno Park, em Campinas, foi aberto para o desenvolvimento de leveduras brasileiras usadas na fermentação industrial. Além disso, a empresa inaugurou em maio uma estação experimental para a segunda geração em Alagoas, com um investimento de R$ 10 milhões. A meta é que a indústria de etanol celulósico da empresa, cujo investimento é de R$ 350 milhões, comece a operar até fevereiro de 2014, com uma estimativa de produção de aproximadamente 82 milhões de litros de etanol de segunda geração, o que representará um aumento de 20% na produção de biocombustíveis em Alagoas.

Batizada de Cana Vertix, a nova variedade de cana da Granbio está sendo obtida a partir do cruzamento genético de tipos ancestrais de cana com híbridos comerciais. “Teremos uma cana mais robusta, mais resistente a pragas e doenças e mais longeva, com teor de fibra e produtividade maiores que as plantas convencionais”, enfatiza Alan Hiltner, vice-presidente-executivo da empresa. O pesquisador da Unicamp Gonçalo Pereira, que também é vice-presidente de tecnologia da empresa, explica que a nova cana será usada apenas para consumo da própria Granbio. “A eficiência da fotossíntese da Cana Vertix vai refletir no custo da matéria-prima. No setor, quem manda no jogo é quem tem cana barata e eficiente”, afirma. Até o fim de 2013 deverão ser plantadas 200 mil mudas, com sementes vindas de bancos de germoplasmas (sementes, células) do Brasil e do mundo. Os cruzamentos são feitos hoje pelo IAC e pela Rede Interuniversitária para o Desenvolvimento do Setor Sucroenergético (Ridesa). Em 2014, esse trabalho também será realizado pela estação experimental em Alagoas. Dentre as razões para os investimentos em etanol de segunda geração a partir do bagaço e da palha de cana, Hiltner destaca o mercado dos Estados Unidos, que premia o uso do etanol celulósico e, especificamente, o da Califórnia, onde há um adicional por tonelada de carbono capturado.

... antes de irem para a estufa, de onde seguem para os viveiros em usinas

Eduardo cesar… antes de irem para a
estufa, de onde
seguem para os
viveiros em usinasEduardo cesar

O conjunto de iniciativas em torno do etanol de segunda geração tem sido capaz de movimentar uma cadeia que inclui empresas fornecedoras de enzimas utilizadas na quebra da lignina e das hemiceluloses das células da cana para se obter a celulose e, em seguida, a glicose, possibilitando, assim, a fermentação do açúcar para a obtenção do etanol. Esse é o caso da multinacional dinamarquesa Novozymes, fundada em 1923. Em 2007, a empresa realizou a primeira parceria comercial para o desenvolvimento de enzimas para a produção de etanol, no caso com o CTC.

Em 2010 a empresa passou a fornecer enzimas para a Petrobras, que também tem programa de pesquisa em etanol de segunda geração, e, em 2012, fechou contrato com a Granbio. De acordo com o presidente da Novozymes para América Latina, Pedro Fernandes, a crise do setor sucroenergético chegou a atingir a empresa, principalmente porque nesses momentos os clientes se retraem em relação à demanda para produção e ao volume de dinheiro aplicado. No entanto, as pesquisas continuaram a todo vapor. “As crises vêm e vão sempre, mas a pesquisa não. Se paramos hoje uma pesquisa, ocorre um atraso cuja recuperação leva mais tempo do que uma crise”, explica o executivo. A Novozymes investe US$ 300 milhões em P&D em todas as suas unidades de pesquisa no mundo, o que envolve também as enzimas para o etanol no Brasil. A divisão da empresa na América Latina representa 10% do faturamento global da empresa, que foi de US$ 2 bilhões em 2012. Hoje são 11 profissionais trabalhando diretamente com pesquisa no Brasil, dois doutores e os demais com mestrado. E uma parceria com a Universidade Federal do Paraná (UFPR), onde são realizados testes com enzimas. Outra empresa que se voltou mais atentamente para as pesquisas com cana-de-açúcar foi a multinacional suíça Syngenta. Até 2006, a participação do segmento de cana dentro da companhia era marginal, representada apenas pela venda de produtos químicos usados para matar pragas. A partir de 2008, uma guinada possibilitou a adoção de novas estratégias para incrementar tecnologicamente a plantação de cana, por meio, por exemplo, da construção de uma biofábrica, espaço onde são realizados os procedimentos de melhoramento da planta, inaugurada em 2012. “A demanda por cana no país, em 2020, será de aproximadamente 1,1 bilhão de toneladas. A chave do sucesso para a produção do etanol é aumentar a produtividade, o que demanda pesquisa também”, explica Adriano Vilas Boas, diretor global de cana-de-açúcar da Syngenta. A Unica estima que a produção de etanol na safra 2013/1014 seja 20% maior em relação à anterior.

Hoje a empresa tem três pilares de sustentação da pesquisa em torno da cana, dos quais um é a multiplicação de materiais genéticos, que acontece em Itápolis, no interior paulista. Lá são geradas mudas livres de doenças, por meio de multiplicação do material genético, assegurando a sanidade dos materiais, porque quando se multiplica a cana o risco de ela contrair doenças é alto. “Multiplicamos, assim, clones de uma mesma matriz de forma controlada”, acrescenta Vilas Boas. Depois, para se multiplicar em milhares de amostras, a cana é manejada em estufa e a amostragem é multiplicada, preservando o DNA, para que possa ir direto para o campo formar viveiros. Pesquisas em biotecnologia, voltadas para aumentar a capacidade de transformar variedades de cana em vegetais geneticamente modificados, já são feitas em estações de pesquisa da companhia no Brasil. A Syngenta investe mais de US$ 1,4 bilhão em pesquisa e desenvolvimento no mundo. No Brasil, o orçamento para cana-de-açúcar não é revelado pela empresa. Hoje ela tem mais de 100 agrônomos focados em assistência para cana, desenvolvendo tecnologia no campo, e uma equipe dedicada exclusivamente à pesquisa com transgênicos. As parcerias com universidades se estendem à Universidade Estadual Paulista (Unesp), à Esalq/USP, que ajudam a validar as tecnologias, e também ao IAC, na parte de variedades, por meio de um projeto conjunto para o aperfeiçoamento de metodologias para o melhoramento e a transformação da cana.

Republicar