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Literatura

Um Brasil imaginado

Ariano Suassuna forjou uma ficção de matriz popular com alta densidade estética

Suassuna na janela  de sua casa em  Recife (1996):  projeto ambicioso

Bel Pedrosa / Folhapr essSuassuna na janela de sua casa em Recife (1996): projeto ambiciosoBel Pedrosa / Folhapr ess

A ambição de criar um projeto estético sobre a cultura brasileira e o diálogo frequente entre o erudito e o popular marcaram a vida de Ariano Suassuna, segundo definição de pesquisadores que estudam sua obra. O advogado, dramaturgo, poeta, artista gráfico, professor universitário e, em três ocasiões, secretário de Educação e Cultura, morto em julho, teve uma trajetória em seus 87 anos de vida que bem poderia compor uma de suas criações literárias.

Tal como ocorre com todo grande escritor, é possível identificar a influência de outros criadores na obra de Suassuna, assinala Carlos Newton Júnior, professor da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e autor de O pai, o exílio e o reino: a poesia armorial de Ariano Suassuna (Editora UFPE, 1999) e Ariano Suassuna 80, memória: catálogo e guia de fontes (Editora Sarau, 2008). “Ariano mencionou, inúmeras vezes, as influências recebidas de autores brasileiros, como José de Alencar e Euclides da Cunha, e de estrangeiros, como Cervantes, Molière, Goldoni, Lorca, entre muitos outros”, diz. Segundo Newton, o dramaturgo reprocessou suas referências com uma abordagem poética a um só tempo particular e afeita a um projeto estético mais ambicioso, reelaborando, a médio e longo prazo, a própria ideia acerca da cultura brasileira. E sustenta, para tanto, uma poética original, que buscava condensar as propostas do erudito e do popular.

Para Newton Júnior, é nesse contexto que pode ser entendida a proposta do Movimento Armorial. Iniciado por Ariano Suassuna no início da década de 1970, tinha como traço comum a ligação da literatura de cordel com a música de viola, rabeca e pífano, e com a xilogravura que ilustrava os folhetos do romanceiro popular do Nordeste – os destaques das páginas 82 e 84 desta reportagem estão compostos com a fonte armorial, parte de um projeto gráfico desenvolvido pelo próprio Suassuna, cuja referência foram os seculares ferros de marcar boi usados no Brasil.

O Movimento Armorial é consequência do “diálogo existente da criação popular com a poética original dos cantadores e com os folhetos de cordel”, diz Idelette Muzart Fonseca dos Santos, pesquisadora francesa que leciona na Université Paris Ouest Nanterre La Défense. “Desse diálogo nasce uma obra poética, teatral e romanesca, que alimenta por sua vez uma reflexão teórica sobre estética”, afirma. Casada com um brasileiro, Idelette leu o Romance d’a pedra do reino em 1971, na França, e se propôs fazer uma dissertação de mestrado a respeito. Le roman de chevalerie et son interprétation par un écrivain brésilien contemporain: o Romance d’a pedra do reino, de Ariano Suassuna, foi defendida em 1974. Segundo ela, o livro tem elementos estruturais e temáticos da novela de cavalaria, inclusive as referências múltiplas à História de Carlos Magno e os doze pares de França. “Escrevi a Ariano e trocamos longas cartas sobre literatura medieval em geral, que ele conhecia muito bem. Só depois de iniciada minha tese de doutoramento é que conheci o Brasil e Ariano pessoalmente”, conta ela.

Ariano, sua mulher, Zélia, e o filho Dantas posam para foto com tapeçaria em Recife (1991)

bel pedrosa / folhapressAriano, sua mulher, Zélia, e o filho Dantas posam para foto com tapeçaria em Recife (1991)bel pedrosa / folhapress

Autora de Em demanda da poética popular: Ariano Suassuna e o Movimento Armorial (Editora da Unicamp, 2009), Idelette lembra que nos anos 1950, quando Ariano construiu sua estética, “havia uma enorme esperança no Brasil”. É ainda a partir desse diálogo inicial que, nos anos 1970, a voz do dramaturgo redundaria no movimento, quando a união entre os universos erudito e popular determinou o tom da poética armorial.

Arte e diálogo
Para Newton Júnior, a poética armorial pode ser entendida como “a procura de uma arte erudita brasileira a partir da cultura popular, da arte rupestre e do diálogo com as artes dos países do Terceiro Mundo”. Ele ressalva que a poética do movimento esteve longe de ser consenso. “Em arte, unanimidade é algo que não existe. Mas a maior parte da crítica que de fato estudou o Movimento Armorial reconhece a qualidade de muitas obras realizadas pelos artistas armoriais.” A poética armorial proposta por Ariano Suassuna influenciou não somente artistas plásticos, músicos, escritores e realizadores, como também acadêmicos e pensadores da cultura brasileira. Isso pode ser destacado da própria atuação de Suassuna como professor da UFPE. A partir de meados da década de 1950, logo depois de largar a advocacia, o escritor dedicou-se por 30 anos à carreira acadêmica, tornando-se professor de estética. Uma vez na universidade, ele se notabilizou por ministrar aulas-espetáculo. Era nesses encontros que a assinatura de Suassuna como intelectual público se ajustava à disposição de falar ao homem comum.

Antônio Nóbrega, um dos herdeiros da poética armorial defendida pelo dramaturgo, diz que o carisma de Suassuna como contador de histórias parecia, às vezes, ocultar uma compreensão mais profunda do seu projeto estético. “O carisma de Ariano como contador de histórias – homem de prodigiosa memória – me parece às vezes ofuscar o intelectual e pensador extremamente preocupado com as grandes questões gerais do mundo atual e com as questões brasileiras particulares”, diz o artista pernambucano, que escreve, atua, dirige, compõe, canta e toca. Ao resgatar as primeiras memórias sobre o surgimento do Armorial ainda na década de 1970, Nóbrega – criador do Espaço Brincante, em São Paulo, onde leva adiante os pressupostos estéticos forjados por Suassuna – observa que as reações foram sobretudo extremadas. “Havia quem abraçasse de modo irrestrito aquelas ideias e os que as negavam radicalmente”, conta.

Cena do ensaio de A pedra do reino e teatralização de Antunes Filho, em São Paulo (2006)

Karime Xavier / FolhapressCena do ensaio de A pedra do reino e teatralização de Antunes Filho, em São Paulo (2006)Karime Xavier / Folhapress

Assassinato do pai
A vida do escritor não está, obviamente, desvinculada de sua obra. “Quem teve a oportunidade de assistir a alguma das aulas-espetáculo muito provavelmente escutou o dramaturgo falar a respeito de seu pai, João Suassuna, assassinado em 1930, quando Ariano tinha apenas três anos de idade”, diz Eduardo Dimitrov, autor de O Brasil dos espertos – uma análise da construção social de Ariano Suassuna (Alameda/FAPESP, 2009). Para Dimitrov, que foi orientado em sua pesquisa na Universidade de São Paulo (USP) por Lilia Moritz Schwarcz, é possível atribuir novos sentidos aos textos do autor de Auto da Compadecida quando se conhece sua biografia.

Decorrente das disputas políticas pelo controle do estado da Paraíba, a morte de João Suassuna, num contexto de vinganças sistemáticas, marcou profundamente as opções estéticas de Suassuna. “Em determinado momento, houve uma cisão no interior da oligarquia Pessoa durante o governo de João Suassuna, que foi acirrada no governo de seu sucessor, João Pessoa”, conta Dimitrov. “No momento mais tenso da disputa, João Dantas, um parente de Ariano, assassinou João Pessoa, que foi o estopim para a Revolução de 1930. Como revide, os aliados de João Pessoa mataram o assassino e também João Suassuna.” Rita de Cássia, mulher de João, residia com os oito filhos em Paulista, cidade próxima de Recife. Três anos depois da morte de João Suassuna a família foi para Taperoá, no sertão paraibano. Em 1942, a família passou a viver em Recife. Lá, Ariano estudou direito na UFPE e fundou com Hermilo Barbosa Filho o Teatro do Estudante de Pernambuco, em 1946.

O episódio do assassinato do pai teve grande impacto na obra de Suassuna, diz Dimitrov. “A forma que Ariano encontrou de manter o pai vivo, se não de vingá-lo, foi escrevendo seu teatro e outras obras literárias nas quais há inúmeras referências a um universo sertanejo que, discursivamente, ele associa como elemento identitário de sua parentela”, destaca o pesquisador. O universo ficcional do autor, nesse contexto, obedece a uma dinâmica criativa de natureza biográfica. “A forma como Ariano narra a disputa política segue o mesmo princípio estruturador de suas peças. É nesse sentido que a narrativa biográfica e a narrativa ficcional se confundem”, observa o pesquisador.

Representação da peça Auto da Compadecida, no Rio (1957)

ARQUIVO / Agência Estado / aeRepresentação da peça Auto da Compadecida, no Rio (1957)ARQUIVO / Agência Estado / ae

A maneira como Ariano Suassuna pensava o Brasil está presente, ainda, no modo como suas narrativas demonstravam a representação do embate entre o Brasil real e o Brasil oficial. “O Brasil oficial seria aquele das elites, já o real, o do povo. Ariano reconhecia sua condição de oriundo do Brasil oficial, pertencente a uma elite; no entanto, argumentava que tinha extrema sensibilidade para o Brasil real e que buscava compreender o ponto de vista do povo.” Essa compreensão está esboçada nas tramas do escritor, cujas comédias se organizavam em torno do povo do Brasil real.

“Em Auto da Compadecida, peça escrita em 1955, por exemplo, todos os personagens giram em torno das ações de João Grilo e Chicó. São os dois protagonistas pobres que ditam as regras do jogo. O padre, o bispo, o padeiro e sua mulher, o coronel, o cangaceiro e até mesmo o demônio, o Cristo e a Compadecida são envolvidos nas artimanhas do personagem sertanejo pobre e esperto”, explica.  De acordo com essa dinâmica, diz o pesquisador, esse Brasil dos espertos – ou seja, dos pobres que sobrevivem apesar das dificuldades – suplanta o Brasil oficial, dos poderosos.

Para além da literatura e da dramaturgia, nota-se a presença de Ariano como um pensador sensível dos mecanismos internos que constituem os traços nem sempre visíveis da identidade nacional. Dessa forma, se, por um lado, existe um autor que, como secretário municipal de Educação e Cultura de Recife (1975-1978) e estadual de Cultura de Pernambuco (1994-1998 e 2007-2010), esforçou-se para mostrar que a cultura do país é muito mais forte, rica e original do que comumente se imagina, como observa Carlos Newton Júnior, por outro lado, nota-se o formulador de manifestações genuinamente brasileiras, com vistas a proteger a cultura nacional da indústria cultural e urbana.

Antônio Nóbrega durante apresentação: compreensão mais equilibrada da obra de Suassuna

Dudu SchnaiderAntônio Nóbrega durante apresentação: compreensão mais equilibrada da obra de SuassunaDudu Schnaider

Ciente da importância de Ariano Suassuna para o seu trabalho como artista, Antônio Nóbrega também observa que a percepção do escritor pernambucano como um defensor ferrenho da cultura brasileira pode, em certa medida, prejudicar o entendimento do que ele tinha a dizer sobre essa própria cultura. “A visão que se tem de Ariano como um radical da cultura brasileira acho que emperra a compreensão mais equilibrada do seu legado.” Sobre isso, Newton Júnior diz que existem aspectos ainda pouco citados da obra do autor de Romance d’a pedra do reino, publicado originalmente em 1971. “A poesia é um deles; outro, ainda menos conhecido, é o trabalho de Ariano no campo das artes plásticas. A obra de Ariano nos campos do teatro e do romance causou um sombreamento sobre sua poesia”, diz o professor, que também é poeta e organizador da reunião dos poemas de Suassuna em livro (Poemas, Editora UFPE, 1999, esgotado).

Ao observar os trabalhos de Ariano Suassuna, com peças de teatro (Uma mulher vestida de sol, de 1947; A pena e a lei, de 1959; A farsa da boa preguiça, de 1960), romances (A história do amor de Fernando e Isaura, de 1956; História do rei degolado nas caatingas do sertão, de 1977), poemas (Ode, de 1955; Sonetos com mote alheio, de 1980), ensaios e ações públicas em defesa da cultura brasileira, nota-se, segundo seus estudiosos, que, para além de criador, ele buscava forjar no imaginário do público um Brasil ideal, onde as vicissitudes das diferenças sociais eram dirimidas graças à fabulação e ao ardil do povo do Brasil real. Em certa medida, pode-se assinalar que essa estratégia representa uma metáfora de um pensador da cultura brasileira preocupado com o esvaziamento da cultura nacional – para evitar esse colapso, forjou uma ficção de matriz popular, mas com alta densidade estética e representativa do povo brasileiro.

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