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Ensino

Arquitetura do saber

Exposição e livro mostram os antigos grupos escolares como a materialização de um projeto republicano de educação

Escolas Reunidas de Dois Córregos, em Piracicaba, 1924

Coleção Washington Luís / Acervo MRCI/MP/USP Escolas Reunidas de Dois Córregos, em Piracicaba, 1924Coleção Washington Luís / Acervo MRCI/MP/USP

Criados no início da República, os antigos grupos escolares ocupavam casarões ou prédios monumentais, muitas vezes cercados por jardins amplos, com salas de aulas grandes, janelas altas e largas, pátios imensos. Correspondentes ao antigo primário e às atuais cinco primeiras séries do ensino fundamental, eram o símbolo da escola pública de qualidade. Sua arquitetura e modo de funcionamento expressavam os ideais dos homens que haviam derrubado a monarquia e queriam um país moderno. “Os grupos eram a materialização do projeto republicano de educação”, sintetizou Maria Aparecida de Menezes Borrego, historiadora do Museu Paulista da Universidade de São Paulo (USP). Eram tão importantes que, diz ela, “no departamento de obras do estado havia uma área especializada na construção de escolas, dirigida por Ramos de Azevedo e outros grandes nomes da arquitetura da época”.

Maria Aparecida organizou uma exposição sobre grupos escolares no Museu Republicano Convenção de Itu, uma extensão do Museu Paulista, com base no acervo de 4.884 fotografias do presidente Washington Luís, que governou o país de 1926 a 1930. A primeira parte da mostra, aberta em novembro de 2014, ressaltou a arquitetura de escolas que Washington Luís visitou ou inaugurou quando era vereador, deputado estadual, prefeito ou governador em São Paulo. A segunda parte começa em abril, apresentando livros didáticos, de matrículas e de aprovação de alunos do início do século passado.

Os republicanos paulistas – Prudente de Morais, Bernardino de Campos, Jorge Tibiriçá, Cesário Motta, Caetano de Campos, Rangel Pestana e outros – empenharam-se na renovação do ensino “como uma obra eminentemente republicana”, afirma Rosa de Fátima Souza, da Universidade Estadual Paulista (Unesp) de Araraquara. Há mais de 20 anos ela examina a formação dos grupos escolares e dos ginásios, atuais sexto ao nono ano, criados como reflexo da política de expansão de vagas adotadas na Era Vargas. “A expansão do curso ginasial foi mais rápida em São Paulo. Mesmo assim, não havia ginásio em todos os municípios”, ela comenta. Até 1930 só havia três ginásios no estado, nas cidades de São Paulo, Campinas e Ribeirão Preto. Em um livro publicado em 2014, O ginásio da morada do sol (Editora Unesp), Rosa e suas colegas Vera Valdemarin e Maria Cristina Zancul contam a história do primeiro ginásio de Araraquara, criado em 1934 por meio da incorporação de uma escola privada, hoje chamada Escola Estadual Bento de Abreu.

Primeiro, os professores
Os grupos resultavam da reforma escolar de 1893, iniciada com a criação de cursos para professores. “Os republicanos paulistas apostaram na formação dos professores para desenvolver a instrução pública, a chamada educação popular, considerada fundamental para a consolidação do novo regime e para a formação do cidadão republicano”, comenta Rosa. Logo se viu, porém, que manter as chamadas escolas normais, para formação de professores, era caro. “Durante a Primeira República”, ela observa, “foram criadas e mantidas pelo estado apenas 11 escolas normais oficiais, em cidades importantes como Campinas, Casa Branca, Itapetininga, São Carlos, Botucatu e São Paulo”. A primeira a ser criada foi a Escola Normal Caetano de Campos, que ocupou um prédio na praça da República, no centro da cidade de São Paulo, e serviu de referência para os professores de todo o estado.

Grupo Escolar Convenção de Itu, inaugurado em 1927

Sétimo Catherini/ Acervo MRCI/MP/USP Grupo Escolar Convenção de Itu, inaugurado em 1927Sétimo Catherini/ Acervo MRCI/MP/USP

Para resolver a escassez de professores, o governo adotou uma estratégia paliativa a partir de 1895: os cursos complementares, inicialmente com quatro anos de duração, após o primário. “O curso complementar passou a servir como curso de formação de professores e não mais segunda etapa do curso primário”, comenta Rosa. “Em decorrência dessa medida foram estabelecidas no estado de São Paulo duas modalidades de formação de professores: os normalistas, formados pelas escolas normais, e os complementaristas, das escolas complementares. Evidentemente, os professores normalistas possuíam uma formação mais longa e mais completa enquanto os complementaristas tiveram uma formação mais rápida.”

Os grupos escolares foram criados a partir da reunião de quatro a dez unidades menores, as escolas isoladas. Numa etapa seguinte, antecipando as inovações planejadas, as chamadas escolas reunidas aplicavam os princípios que regeriam o ensino durante as primeiras décadas da República, como a classificação de alunos por idade, várias salas de aula em um mesmo prédio, uma professora para cada série e classes separadas para meninos e meninas.

“As escolas criadas no início da República representavam a educação regeneradora em uma população ainda com uma alta taxa de analfabetos”, disse Maria Aparecida. As novas estratégias de ensino trouxeram mais crianças para as escolas – o número de alunos matriculados no estado passou de 31 mil em 1900 para 338 mil em 1929. Em um artigo na Revista de Educação Pública, Rosa escreveu que o governo do estado e os órgãos ligados ao ensino em São Paulo procuravam dar visibilidade às realizações por meio de artigos em jornais, relatórios oficiais, pomposas inaugurações de escolas, festas e conferências. Mesmo assim, em 1940 ainda havia quase 70% de analfabetos entre os então 41 milhões de brasileiros.

Caderno de Geografia de Helena de Oliveira Machado

Coleção Helena e Verico Pinheiro / Acervo MRCI/MP/USP Caderno de Geografia de Helena de Oliveira MachadoColeção Helena e Verico Pinheiro / Acervo MRCI/MP/USP

As escolas públicas permaneceram como símbolos de en—sino de qualidade durante décadas. Um símbolo frágil, na visão de Rosa Souza. “Sou particularmente contrária ao uso que se faz da história da educação para reiterar visões nostálgicas e idílicas de um passado glorioso onde a escola pública era de boa qualidade e funcionava maravilhosamente bem”, afirma. Examinando arquivos escolares, relatórios de professores, diretores e inspetores de escolas paulistas ao longo do século XX, ela tem encontrado relatos de “inúmeras dificuldades enfrentadas cotidianamente, seja em relação às condições de infraestrutura e materiais das escolas, seja em relação às condições de trabalho, de salários e de aprendizagem dos alunos”.

Segundo ela, em 1960 mais de 40% das crianças estavam fora da escola no Brasil por falta de vagas. Além disso, os índices de promoção eram baixos: quase metade das crianças era reprovada na primeira série. “Manter as crianças na escola era muito difícil para um número muito grande de famílias, especialmente para a população rural”, observa Rosa. A reforma de ensi–no, por sinal, privilegiou as cidades, deixando de lado a zona rural, ainda que a maior par——te da população do estado de São Paulo ainda estivesse no campo, observam Rosa e Virgínia Ávila, da Universidade de Pernambuco, em um artigo na revista História da Educação. As escolas rurais continuaram enfrentando a falta de professores, a precariedade das instalações e a alta taxa de abandono de alunos, requisitados para o trabalho no campo.

Quem tinha mais dinheiro e não queria ver os filhos misturados com as crianças das escolas públicas recorria às escolas particulares, normalmente religiosas. O Colégio Nossa Senhora do Patrocínio de Itu acolhia apenas meninas. Uma delas, Helena de Oliveira Machado, passou por lá na década de 1910, e seus cadernos e desenhos, preservados por uma neta, foram expostos no Centro de Estudos, próximo ao Museu Republicano, complementando a mostra da arquitetura dos grupos escolares.

As escolas públicas começaram a perder prestígio com as sucessivas reformas educacionais, que implicaram o fim das aulas de latim e depois das de francês. Na década de 1970 os grupos escolares e os ginásios foram transformados em escolas estaduais de primeiro grau e os professores sofreram um forte achatamento salarial, que resultou em greves como a de 1979. “Como no passado, há desafios a serem enfrentados no âmbito político e no exercício do magistério”, disse Rosa. “Os republicanos do início do século XX deixaram essa lição, ou seja, a defesa da escola pública e da formação de professores e a iniciativa do poder público no sentido de modernizar e disseminar o ensino.”

Projeto
História da escola primária rural no estado de São Paulo (1931-1968): Circulação de referenciais estrangeiros, iniciativas do poder público e cultura escolar (nº 12/08203-5); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisadora responsável Rosa de Fátima Souza (Unesp); Investimento R$ 69.621,09 (FAPESP).

Artigos científicos
ÁVILA, V. P. S. e SOUZA, R. F. As disputas em torno do ensino primário rural (São Paulo, 1931-1947). História da Educação. v. 18, n. 43, p. 13-32. 2014.
SOUZA, R. F. O bandeirismo paulista no ensino e a modernização da escola primária no Brasil. Revista de Educação Pública. v. 20, n. 42, p. 123-43. 2011.

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