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ECONOMIA

As boas-novas da cana-de-açúcar

Além dos benefícios ambientais, o aumento da produção de etanol ajudou a melhorar os indicadores sociais no campo

Colheita mecanizada de cana-de-açúcar em Piracicaba (SP), em 2007: melhores condições de trabalho

Ricardo Azoury / olhar imagemColheita mecanizada de cana-de-açúcar em Piracicaba (SP), em 2007: melhores condições de trabalhoRicardo Azoury / olhar imagem

Criado em 1975 para reduzir os gastos com a importação de petróleo, o Programa Nacional do Álcool (Proálcool) alterou profundamente a matriz energética brasileira, reduzindo a poluição e a emissão de gases de efeito estufa. Mas, além dos benefícios ambientais, a expansão recente da agroindústria canavieira também provocou impactos positivos nos indicadores sociais do país, aponta o estudo Socio-economic impacts of Brazilian sugarcane industry (Impactos socioeconômicos da indústria brasileira de cana-de-açúcar), publicado no número 16 da revista Environmental Development (dezembro de 2015).

Subsidiados por extenso levantamento bibliográfico, Márcia Azanha Ferraz Dias Moraes, da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz da Universidade de São Paulo (Esalq-USP), Fabíola Cristina Ribeiro de Oliveira, do curso de Ciências Econômicas da Universidade Metodista de Piracicaba (Unimep), e Rocio A. Diaz-Chavez, do Centro de Política Ambiental do Imperial College, de Londres, utilizaram dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) e da Relação Anual de Informações Sociais (Rais) para comparar a situação dos empregados no cultivo da cana-de-açúcar com a dos trabalhadores nos demais segmentos agrícolas. Também compararam indicadores sociais dos descendentes dos empregados da lavoura canavieira com os de outras culturas, procurando verificar se as condições dos pais influenciariam as dos filhos.

O estudo mostrou que os trabalhadores envolvidos com a cana-de açúcar recebem salários maiores, são mais escolarizados e têm uma proporção maior de emprego formal quando comparados com a média desses indicadores para as outras culturas analisadas. Foi possível ainda verificar que os descendentes dos empregados da lavoura canavieira apresentam indicadores socioeconômicos melhores, além de terem uma mobilidade maior para outros setores fora do agrícola: “Podemos dizer que a expansão canavieira verificada a partir de 2008 contribuiu para a melhoria dos indicadores sociais agrícolas”, afirma Márcia. Mas essas conquistas são relativamente recentes, adverte a professora. “Quando surgiu o Proálcool, o foco principal era buscar alternativas ao petróleo e naquele momento as questões ambientais ou sociais eram secundárias.” Na época, a prioridade era diminuir a todo custo a dependência em relação ao petróleo importado, que respondia por mais de 80% do consumo nacional.

Esse objetivo econômico foi alcançado: a produção de cana-de-açúcar aumentou de 88,9 milhões de toneladas, em 1975, para 588,5 milhões, em 2013, o que permitiu que a produção de etanol crescesse de 555 milhões de litros para 23,2 bilhões de litros no mesmo período. Isso contribuiu para que a dependência do petróleo importado caísse para 18% do consumo nacional em 2013. O Proálcool trouxe outros benefícios diretos. Como demonstrou o estudo Social externalities of fuels (Externalidades sociais dos combustíveis), de 2011, elaborado por Márcia, Fabíola e outros autores, a expansão do complexo sucroalcooleiro criou empregos e aumentou a renda em vastas regiões do interior do país, enquanto as plantas dedicadas ao refino de petróleo sempre se concentraram em poucas cidades litorâneas.

Cana-de-açúcar é recebida para o início do processo de produção de etanol em Nova Europa (SP): benefícios econômicos, ambientais e sociais

EDUARDO CESARCana-de-açúcar é recebida para o início do processo de produção de etanol em Nova Europa (SP): benefícios econômicos, ambientais e sociaisEDUARDO CESAR

Dois tempos
Contudo, do ponto de vista social, a situação não era satisfatória. “Quando se olha a literatura produzida nos anos 1980 sobre o assunto, verifica-se que as condições de trabalho no setor da cana eram ruins; havia uma informalidade grande e até mesmo trabalho infantil”, diz Márcia. No plano ambiental, o quadro geral não era melhor: as queimadas produziam grandes nuvens de fumaça. De acordo com Márcia, esses problemas estavam ligados ao processo de colheita manual da cana, com a utilização do trabalho de migrantes que vinham para São Paulo: “As condições de trabalho e dos alojamentos eram problemáticas e havia a atuação dos ‘gatos’ [intermediários na contratação da mão de obra]. Com as pesquisas desenvolvidas no nosso grupo de estudo, conseguimos verificar que houve uma mudança importante nas condições de trabalho. São dois períodos completamente diversos. Atualmente não faz mais sentido falar em trabalho escravo na cultura canavieira”.

Outros estudos citados por Márcia já apontavam nessa direção. A tese Indicadores socioeconômicos em estados produtores de cana-de-açúcar: análise comparativa entre municípios, de Janaina Garcia de Oliveira, defendida na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) em 2011, concluiu que o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) dos municípios produtores de cana apresentou uma evolução favorável de 1970 a 2000: “Os municípios canavieiros em todos os estados apresentam melhores indicadores de distribuição de renda e de acesso aos serviços de infraestrutura, principalmente acesso a instalações sanitárias”.

Os avanços nas condições de trabalho se intensificaram desde então. Que fatores contribuíram para essa mudança? “O primeiro motivo foi uma ação muito rigorosa do Ministério Público do Trabalho ao exigir o efetivo cumprimento das normas”, diz a autora. A fiscalização estatal foi reforçada pelo interesse internacional, que ganhou importância à medida que o país ampliou suas exportações de açúcar e álcool. A intensa concorrência entre os produtores dessas commodities no mercado mundial, bem como a preocupação das empresas compradoras de açúcar e etanol, que passaram a exercer uma auditoria mais rigorosa sobre as práticas sociais e ambientais dos fornecedores brasileiros, também contribuíram para a adoção de práticas mais sustentáveis.

Colheita manual em Olímpia (SP):  trabalho extenuante que se encontra em processo de extinção

EDUARDO CESARColheita manual em Olímpia (SP): trabalho extenuante que se encontra em processo de extinçãoEDUARDO CESAR

Mecanização 
O afluxo de investidores estrangeiros para o setor, a partir do ano 2000, contribuiu para a adoção de uma administração mais responsável porque essas empresas trouxeram novos padrões gerenciais e trabalhistas. Segundo Márcia, nem todas as empresas nacionais tinham práticas reprováveis, mas as estrangeiras ajudaram a erguer o patamar das condições sociais e trabalhistas.

Contudo, a principal explicação para a mudança no campo está, segundo a autora, na mecanização da colheita. O processo se acelerou com a eliminação gradativa da queima da cana no estado de São Paulo, determinada pela assinatura do Protocolo Agroambiental do Setor Sucroenergético, de 2007, e pela legislação estadual que disciplina o tema. Isso trouxe enormes benefícios ambientais ao acabar com os problemas causados pelas queimadas, além de permitir o aproveitamento da palha da cana na geração de energia elétrica (tal como já era feito com o bagaço).

Por outro lado, a mecanização teve um efeito perverso ao inviabilizar a colheita manual da cana, provocando redução de postos de trabalhos. “A mecanização exige menos trabalhadores”, diz a pesquisadora. “Uma colheitadeira substitui, em média, 80 cortadores.” De 2000 a 2012, o número de trabalhadores com carteira assinada em todo o complexo sucroalcooleiro passou de 642.848 para 1.091.575 – um incremento global de 69,8%. Desagregando os dados, constata-se que o volume de empregos com carteira cresceu 205,2% nas destilarias de álcool e 153,93% nas usinas de açúcar. Mas o número de trabalhadores com carteira na cultura da cana-de-açúcar caiu 7,4%, de 356.986 para 330.710 empregados.

A regressão setorial no emprego tem um aspecto positivo. “Cortar cana manualmente é um trabalho extenuante”, diz Márcia. O caráter penoso é ressaltado por outros pesquisadores. Segundo Maria Aparecida de Moraes Silva, professora aposentada da Universidade Estadual Paulista (Unesp), campus de Araraquara, “a vida útil de um cortador de cana não ultrapassa 15 anos: o trabalho acaba com a coluna, os punhos, os braços”.

E, como observa Francisco Alves, professor associado do Departamento de Engenharia de Produção da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), a mecanização não eliminou totalmente o corte manual. “Na realidade, o modelo de mecanização posto em prática na cana requer a combinação do corte mecanizado com o corte manual de elevada produtividade: os trabalhadores empregados no corte da cana têm de ter elevada produtividade, que hoje passa das 14 toneladas por homem por dia de trabalho”, diz Alves. Isso acarreta um aumento das doenças de trabalho.

A diminuição gradativa da demanda por cortadores manuais foi compensada, ao menos em parte, pela criação de vagas de tratoristas, motoristas, mecânicos, condutores de colheitadeiras e técnicos em eletrônica, apontou Márcia em seu estudo O mercado de trabalho da agroindústria canavieira: Desafios e oportunidades, de 2007. Para atenuar o problema do desemprego gerado pela mecanização, as federações patronais e de trabalhadores de São Paulo têm providenciado, de acordo com o último estudo da autora, cursos de treinamento e requalificação para 3 mil trabalhadores a cada ano. Também houve uma absorção de parte desses trabalhadores em obras de infraestrutura nas regiões Norte e Nordeste do país.

Centro de Tecnologia Canavieira em Piracicaba (SP): avanços melhoraram condições, mas diminuíram postos de trabalho

EDUARDO CESARCentro de Tecnologia Canavieira em Piracicaba (SP): avanços melhoraram condições, mas diminuíram postos de trabalhoEDUARDO CESAR

Gerações
Para avaliar melhor o alcance das transformações, Márcia, Fabíola e Rocio utilizaram dados de fontes governamentais (Pnad e Rais) que permitem comparar as condições de trabalho e os níveis de escolaridade entre duas gerações de trabalhadores. Para evitar distorções na comparação com os demais setores agrícolas, não foram levados em conta os dados referentes aos empregados nas destilarias de álcool e usinas de açúcar.

O cruzamento das informações revela que a renda média do chefe de família (a pessoa de referência na família, na denominação atual das estatísticas oficiais) no cultivo da cana era 46,5% maior que a renda média dos demais setores agrícolas. A escolaridade média é de cinco anos de estudo no ramo dos trabalhadores da cana, diante de quatro anos nos demais. Em comparação com seus pais, os filhos desses trabalhadores têm uma escolaridade média mais alta: 8,4 anos, no caso dos empregados na cana, e 8,1 anos, no restante do setor agrícola. Contudo, todos possuem uma renda menor que a auferida pelos pais (no caso da cana 14,2% menor, e para a agricultura em geral, 3,2% menor). Vários fatores influenciam os rendimentos dos trabalhadores, o que pode explicar por que os filhos, apesar de maior escolaridade, ainda ganham em média menos que os pais.

Considerando os chefes de família, é possível notar ainda que, no setor da cana, 86,98% têm carteira assinada, ante apenas 34,23% nos demais setores agrícolas. Quando se comparam os descendentes, constata-se que 70,05% dos descendentes dos trabalhadores da cana têm carteira, em relação aos 49,31% dos filhos de trabalhadores dos demais setores. Observa-se portanto a influência dos pais nas condições de trabalho dos filhos, ou seja, o fato de a maioria dos trabalhadores da cana terem carteira assinada deve ter influenciado as escolhas dos seus descendentes. No caso dos filhos de trabalhadores agrícolas em geral, 43,2% seguem na agricultura; no dos filhos dos trabalhadores da cana, o percentual cai para 29,3%, indicando uma maior mobilidade para outros setores.

A maior parte dos descendentes dos empregados no setor canavieiro encontra emprego no setor de serviços (35,3%). A indústria de transformação absorve 20,9%, a construção civil, 8,1% e a administração pública, 4,9%. Essa maior mobilidade social resulta provavelmente da influência do contexto familiar. “As condições da família influenciam muito as escolhas dos filhos”, explica Márcia. “As melhores condições de trabalho dos pais abrem a possibilidade de um emprego melhor para os filhos.”

Artigo científico
MORAES, M.A.D. et al. Socio-economic impacts of Brazilian sugarcane industry. Environmental Development. v. 16, p. 31-43, dez. 2015.

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