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paleontologia

Na água com o espinossauro

Estudo reforça hipótese de que o maior dinossauro carnívoro também vivia em ambientes semiaquáticos

No imaginário popular, o Tyrannosaurus rex, com seus 13 metros de comprimento e 7 toneladas, é a representação máxima da ferocidade dos dinossauros. Mas, nos últimos anos, estudos sucessivos têm se dedicado a caracterizar melhor os atributos anatômicos e em especial o modo de vida de um grupo de dinossauros, igualmente carnívoros, cujos maiores exemplares ultrapassavam as medidas do “rei dos lagartos tiranos”: os espinossauros, gigantes de esqueleto alongado como crocodilos, dotados de uma sequência de vértebras no dorso com formato parecido ao de uma vela náutica. No filme Jurassic Park III, de 2001, um desses “lagartos-espinhos”, que podiam chegar a 15 metros de comprimento e talvez 20 toneladas, vence uma batalha contra um T. rex. A rivalidade entre ambos não passa de ficção. Os dois grupos de dinossauros não coexistiram no tempo ou no espaço.

Não foi apenas por suas medidas superlativas que os espinossauros se tornaram recentemente um interessante objeto de estudo. Alguns trabalhos desta década, como um artigo de pesquisadores da Universidade de Chicago publicado na revista Science em setembro de 2014, indicam que eles parecem ser os únicos representantes de uma linhagem de dinossauros adaptada tanto à vida terrestre como ao meio aquático, nos arredores da costa, de rios ou de lagos. Certos traços ósseos da espécie Spinosaurus aegyptiacus, como o focinho de crocodilo, os dentes cônicos e os pés em formato de pá, e restos de peixe encontrados em seu intestino sugerem que essa família de dinossauros podia nadar e caçar no ambiente aquático. Um estudo recente de paleontólogos da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) corrobora essa ideia por meio de um outro tipo de evidência.

... e ao aquático do Cretáceo

Durbed/Wikimedia Commons Espinossauro: Algumas formas do maior dinossauro carnívoro eram adaptadas ao ambiente terrestre e ao aquático do CretáceoDurbed/Wikimedia Commons

Cálculos estatísticos sugerem que a chance de um “lagarto-espinho” ter habitado ambientes aquáticos era significativamente maior do que a de um abelissauro ou de um carcarodontossauro, duas famílias de grandes dinossauros carnívoros, de hábitos sabidamente terrestres, mais ou menos contemporâneas aos espinossauros. “De acordo com nossos testes estatísticos, apenas os espinossauros apresentaram uma correlação positiva com ambientes costeiros do passado”, afirma César Schultz, da UFRGS, um dos autores do estudo, cujos resultados saíram em 1º de fevereiro na revista Plos One. “Mas eles não devem ter sido exclusivos das áreas com água. Devem também ter habitado zonas terrestres, a exemplo dos abelissauros e carcarodontossauros.” Os três grupos de dinossauros alcançaram seu auge em distintos intervalos de tempo do período Cretáceo, entre 145 e 66 milhões de anos atrás, e habitaram terras do antigo supercontinente austral Gondwana, hoje equivalentes ao norte da África e à América do Sul, inclusive o Nordeste do Brasil.

Para fazer o trabalho, os pesquisadores coletaram dados sobre as ocorrências de fósseis das três famílias de dinossauros disponíveis até o final de 2014 no Paleobiology Database, um banco de dados internacional que reúne mais de 58 mil referências sobre achados paleontológicos. Depois de separarem os registros mais duvidosos, chegaram a um total de 198 lugares no globo onde foram encontrados vestígios razoavelmente confiáveis de, ao menos, um exemplar de espinossauro, abelissauro ou carcarodontossauro. “As localidades podiam apresentar desde apenas um fóssil de uma das famílias até vários representantes dos três grupos de dinossauros”, diz Marcos Sales, principal autor do trabalho, que faz doutorado sob orientação de Schultz.

Carcarodontossauro Grupo de carnívoros com dentes afiados, similares aos do tubarão, tinha hábitos terrestres. Abaixo, ilustração da espécie Concavenator corcovatus

Emily Willoughby / Wikimedia Commons Carcarodontossauro: Grupo de carnívoros com dentes afiados, similares aos do tubarão, tinha hábitos terrestres. Acima, ilustração da espécie Concavenator corcovatusEmily Willoughby / Wikimedia Commons

Os espinossauros foram os campeões de ocorrência, com 81 registros. A seguir vieram os abelissauros (72) e os carcarondotossauros (66). Dos lugares conhecidos com fósseis de espinossauros, 16 estavam em camadas geológicas que representavam ambientes costeiros do Cretáceo e 65 em registros associados a hábitats terrestres, situados na parte mais interna dos antigos continentes. O banco de dados também reúne informações sobre fósseis de abelissauros e de carcarondotossauros achados em sedimentos de origem costeira, ainda que em menor número do que no caso dos espinossauros (três registros para o primeiro grupo de dinossauros e 10 para o segundo). “Mas, segundo nossos testes estatísticos, as ocorrências de fósseis dessas duas famílias em paleoambientes costeiros se deve provavelmente ao acaso, a algum fator aleatório”, afirma Sales.

Teste do qui-quadrado
Encontrar fósseis de espinossauros, ou de qualquer dinossauro ou vertebrado, em sedimentos associados a antigos lagos ou áreas litorâneas não quer dizer necessariamente que esse tipo de lugar era um de seus nichos ecológicos. Os animais podem ter vivido e morrido no interior dos continentes e seus fósseis simplesmente transportados para uma região costeira. Em tese, processos sedimentares e o acaso — e não a hipótese de que realmente viveram perto ou dentro da água — podem ser os responsáveis por haver um certo número de vestígios de espinossauros em camadas geológicas representativas de zonas de vida aquática do Cretáceo. É esperado que haja um número bem maior de registros fósseis de dinossauros associados a antigos ambientes terrestres do que ligados a áreas de vida aquática. O processo de sedimentação, necessário para a formação de fósseis, é muito mais comum nas regiões internas de um continente, distantes dos grandes corpos de água, do que em suas zonas costeiras ou fluviais. “Há muito mais espaço no interior do que na costa e isso, com certeza, deve enviesar o registro de muitos grupos de animais terrestres”, diz Sales.

Abelissauro Reconstituição do esqueleto de um Majungasaurus crenatissimus, espécie desse grupo de bípedes carnívoros terrestres com pequenos membros anteriores

Kumiko / Wikimedia Commons Abelissauro: Reconstituição do esqueleto de um Majungasaurus crenatissimus, espécie desse grupo de bípedes carnívoros terrestres com pequenos membros anterioresKumiko / Wikimedia Commons

Uma forma de contornar esse problema é usar métodos estatísticos que permitem uma análise mais criteriosa dos dados. No estudo com os dinossauros, os paleontólogos da UFRGS usaram uma ferramenta matemática denominada teste do qui-quadrado. Grosso modo, essa abordagem visa determinar se as variáveis de um conjunto de dados são independentes — ou seja, se seus valores variam aleatoriamente, de maneira fortuita — ou apresentam alguma associação, um nexo causal, entre si. No caso dos dinossauros, o objetivo era averiguar se a quantidade de fósseis de cada grupo encontrada em depósitos que representam ambientes costeiros (e terrestres) do Cretáceo pode ser interpretada como uma evidência de que algum desses répteis realmente habitou esses lugares ou deve ser encarada como um capricho da natureza. Para ambientes costeiros, apenas o conjunto de ocorrências dos espinossauros apresentou a robustez necessária para passar no teste. Abelissauros e carcarodontossauros exibiram afinidades estatísticas com hábitats exclusivamente terrestres.

O trabalho de Sales e Schultz fornece mais um tipo de indício de que os “lagartos-espinhos” podem ter exibido hábitos semiaquáticos durante o Cretáceo. “O estudo é interessante e corrobora essa ideia”, afirma Alexander Kellner, paleontólogo do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). “Mas o tema é extremamente polêmico.” Segundo Kellner, que descobriu espécies de espinossauros, como o Angaturama limae e o Oxalaia quilombensis, na bacia do Araripe em sedimentos do Cretáceo, as camadas geológicas em que são encontrados muitos fósseis dessa família de dinossauros nem sempre estão bem delimitadas. Por isso pode ser difícil associá-las com precisão a ambientes marinhos do passado remoto.

Crocodilo com orelhas
Forma extinta e terrestre do réptil que viveu no interior paulista pode ter tido um grande pavilhão auditivo externo

Jacaré-do-papo-amarelo tem um “tampão” de tecido mole onde no passado haveria orelhas

Lauro Sirgado / Wikimedia CommonsJacaré-do-papo-amarelo tem um “tampão” de tecido mole onde no passado haveria orelhasLauro Sirgado / Wikimedia Commons

Um grupo extinto de crocodilos carnívoros típicos da América do Sul, os baurusuquídeos, tinha provavelmente orelhas similares às dos mamíferos de hoje e um sistema auditivo mais refinado do que os pesquisadores da área imaginavam. A ideia é proposta por pesquisadores da Universidade Estadual Paulista (Unesp) e da Universidade McGill (Canadá) em um trabalho publicado em 4 de fevereiro no Journal of Anatomy. Segundo os autores do estudo, esses répteis, que viveram em ambientes terrestres no período Cretáceo Superior, entre 100 e 66 milhões de anos atrás, apresentavam um ouvido externo avantajado, bem maior do que o de seus antecessores e do que o encontrado nos atuais jacarés e crocodilos. “Ter a capacidade de ouvir sons no ar deve ter sido importante para a origem e evolução dos crocodiliformes”, afirma o paleontólogo Felipe Montefeltro, professor do Departamento de Biologia e Zootecnia do campus de Ilha Solteira da Unesp, autor principal do estudo. “Naquela época, alguns deles viviam fora da água.” Uma boa audição facilita, por exemplo, a localização de presas em terra firme.

À medida que os crocodilos foram deixando os ambientes secos e migrando para o entorno do meio aquático, seu pavilhão auditivo teria sofrido modificações anatômicas e assumido outras funções. “O aparecimento de novas formas de crocodiliformes esteve associada a uma dramática alteração no ouvido externo”, diz o biólogo Hans Larsson, da universidade canadense. No lugar das antigas orelhas, os répteis, ao se tornarem anfíbios, teriam passado a exibir uma espécie de tampão composto de tecidos moles, um traço anatômico muito mais funcional em seu novo hábitat aquático. Hoje todas as espécies de crocodilos e jacarés vivem perto da água. A maioria é encontrada à beira de rios, embora existam formas marinhas.

Para embasar as conclusões do estudo, Montefeltro analisou coleções de fósseis de baurusuquídeos, abundantes no estado de São Paulo, e de outras formas extintas de crocodilos e dissecou exemplares de jacarés pertencentes a espécies viventes, como o jacaré-do-papo-amarelo (Caiman latirostris). A estrutura anatômica analisada mais detalhadamente pelos pesquisadores foi a câmara meatal, nome técnico da caixa de ressonância que constitui o ouvido externo desses répteis. O trabalho foi feito no âmbito de um projeto temático sobre a origem e evolução dos dinossauros e outros répteis, coordenado por Max Langer, da Universidade de São Paulo (USP), campus de Ribeirão Preto.

Projeto
A origem e irradiação dos dinossauros no Gondwana (Neotriássico – Eojurássico) (nº 2014/03825-3); Modalidade Projeto Temático; Pesquisador responsável Max Langer (USP-Ribeirão Preto); Investimento R$ 1.706.876,45 (para todo o projeto).

Artigos científicos
SALES, M. A. F. et al. The “χ” of the matter: Testing the relationship between paleoenvironments and three theropod clades. PLoS One. 1° fev. 2016.
MONTEFELTRO, F. C. et al. The evolution of the meatal chamber in crocodyliforms. Journal of Anatomy. 4 fev. 2016.

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