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pesquisa empresarial

O remédio é inovar

Cristália abre caminho para desenvolvimento de novos fármacos e processos de produção

Diretores e pesquisadores da empresa em Itapira, a partir da esquerda: Edson Lima, Eduardo Gottardo, Danielle Cavalcante, Kesley de Oliveira, Marcos Alegria, Ney Leite e German Wassermann

Léo Ramos Diretores e pesquisadores da empresa em Itapira, a partir da esquerda: Edson Lima, Eduardo Gottardo, Danielle Cavalcante, Kesley de Oliveira, Marcos Alegria, Ney Leite e German WassermannLéo Ramos

Uma pomada que contém a enzima colagenase usada no tratamento de feridas e queimaduras foi apresentada em junho na BIO International Convention 2016, importante feira e conferência mundial na área de biotecnologia, realizada em São Francisco, Estados Unidos. Formulado pela empresa farmacêutica Cristália, com sede em Itapira (SP), o fármaco não traz exatamente uma novidade em relação à molécula ou ao tratamento, mas sim na forma de produzi-lo. O princípio ativo do medicamento, uma enzima, era produzido apenas em meio de cultura contendo proteínas animais pela bactéria Clostridium histolyticum. Agora as proteínas passam a ser produzidas na Cristália em meio vegetal. “Isso garante que não existam possíveis contaminações com proteínas animais”, explica o médico Ogari Pacheco, presidente do conselho de administração e sócio-fundador da empresa. Outra vantagem é que o princípio ativo era importado e agora passa a ser produzido no país. “A colagenase proporciona um tratamento indolor e o nosso centro de biotecnologia conseguiu desenvolver o princípio ativo com alta pureza, de forma mais segura para o paciente, que nos abre a porta do mercado internacional.”

“Esse foi o primeiro produto biotecnológico a partir de microrganismos aprovado pela Anvisa [Agência Nacional de Vigilância Sanitária], em abril deste ano, proveniente da biodiversidade brasileira. Tivemos boa acolhida na Bio Convention e agora pretendemos colocar a colagenase no mercado interno e externo”, anuncia o químico Marcos Alegria, diretor de Biotecnologia da empresa e ex-pesquisador da Alellyx, empresa de biotecnologia da área de cana e laranja, uma spin-off do Projeto Genoma da bactéria Xyllela fastidiosa, finalizado em 2000. “Também participei do sequenciamento do genoma da bactéria Xanthomonas citri, causadora do cancro cítrico, quando fazia doutorado na USP, entre 1999 e 2004.”

Empresa
Cristália
Centro de P&D
Itapira, SP
Nº de funcionários
3.186 em toda a empresa
Principais produtos
Medicamentos anestésicos, antipsicóticos, contra disfunção erétil, para cicatrização e queimaduras

A colagenase é uma investida da Cristália para se tornar um representante da indústria farmacêutica brasileira que não apenas faz medicamentos genéricos ou trabalha com fitoterápicos, mas inova ao colocar no mercado tecnologias de processos e princípios ativos inéditos. O caminho inovador começou em 2007, quando a empresa, depois de sete anos de estudos, concebeu o primeiro fármaco brasileiro formulado a partir de um princípio ativo inédito, passando por todos os níveis de estudos clínicos e de produção até chegar ao medicamento Helleva, então um dos quatro medicamentos do mundo para tratamento de disfunção erétil.

Pacheco, que é médico-cirurgião, diz que a empresa sempre esteve voltada para a inovação. A Cristália foi fundada em 1972 para produzir medicamentos para as clínicas psiquiátricas de Itapira, cidade que reúne vários estabelecimentos desse tipo. Ele era sócio de uma dessas clínicas, chamada Cristália, e passou a produzir também produtos essencialmente de uso hospitalar, como anestésicos. Segundo dados da empresa, a Cristália está presente em 95% dos hospitais brasileiros, além de exportar para 30 países da América Latina, África e Oriente Médio. O faturamento foi de R$ 1,7 bilhão em 2015, com investimento de 7% em pesquisa, desenvolvimento e inovação. “Desse faturamento, 18% são oriundos de medicamentos que desenvolvemos aqui”, informa Pacheco. A empresa tem 3.186 funcionários, sendo 31 doutores e 18 mestres na área de pesquisa.

Síntese química para produção de insumo farmacêutico no laboratório de pesquisa e desenvolvimento

léo ramosSíntese química para produção de insumo farmacêutico no laboratório de pesquisa e desenvolvimentoléo ramos

“Buscamos produtos mais difíceis de ser produzidos. Não é só fazer uma cópia”, revela o sócio da empresa. Para seguir esse caminho, a Cristália começou a se abrir e a buscar nas universidades e institutos de pesquisa ideias que pudessem ser concretizadas. Em 2004, foi criado o conselho científico da empresa, com a colaboração de uma ex-colega de Pacheco na faculdade de medicina, a médica Regina Scivoletto, presidente do conselho e professora aposentada do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da USP. “Hoje, são dezenas de universidades e institutos que apresentam ao conselho resultados de pesquisas ou são parceiros em desenvolvimento”, conta Regina. A orientação é buscar na academia ideias para produzir medicamentos. No conselho, pesquisadores internos e externos apresentam o projeto, que é analisado em todos os aspectos como o de patentes, exigências regulatórias e de síntese de moléculas. O conselho é multidisciplinar e reúne pesquisadores da USP e das universidades Estadual de Campinas (Unicamp), federais do Rio de Janeiro (UFRJ), do Amazonas (Ufam) e de São Paulo (Unifesp). Às vezes, na universidade o efeito da molécula é muito bom nos requisitos terapêuticos, passa no conselho, mas ao ser testado nos nossos laboratórios apresenta toxicidade.

Desde 2004, foram elaboradas 89 patentes de moléculas, de novos usos de fármacos e de processos, muitas de abrangência internacional. O Centro de Pesquisa, Desenvolvimento e Inovação da Cristália, inaugurado em 2009, é composto pelos departamentos de Desenvolvimento de Novos Produtos (DNP) e Pesquisa e Inovação (P&I), que utilizam a mesma estrutura física de laboratórios. Um dos produtos que está em desenvolvimento no P&I é a sílica mesoporosa nanoestruturada, uma substância adjuvante que pode ser usada como meio de transporte de vacinas orais. Vacinas como a de hepatite, hoje injetáveis, poderão ter em alguns anos versões em gotas, o que baratearia a aplicação. Esse tipo de sílica começou a ganhar forma com os estudos da física Márcia Carvalho de Abreu Fantini, do Laboratório de Cristalografia do Instituto de Física da USP, e de Osvaldo Augusto Sant’Anna, pesquisador do Laboratório de Imunoquímica do Instituto Butantan, que idealizou a substância para a vacina contra a hepatite B. Em 2005, a empresa e o Butantan firmaram parceria para desenvolver o adjuvante para vacinas.

Análise de culturas de bactérias em estudo para novos fármacos

léo ramosAnálise de culturas de bactérias em estudo para novos fármacosléo ramos

A sílica mesoporosa também se mostrou capaz de ampliar a população protegida com vacinas. Grande parte delas não imuniza 100% das pessoas, pode ser 90%, por exemplo. “Isso já foi mostrado em animais”, explica a biomédica Danielle Cavalcante, coordenadora do departamento de P&I. “Nossos estudos mostram que essa sílica é uma plataforma que pode ser usada em outros produtos. As partículas se aderem à superfície não só do antígeno das vacinas, mas também nas moléculas de outras drogas”, diz Danielle. O produto está em testes clínicos. Ela avalia que em dois anos a sílica mesoporosa poderá entrar no mercado.

Sem efeito tóxico
Outro medicamento desenvolvido na Cristália, este disponível no mercado, é o Novabupi (cloridrato de bupivacaína), um anestésico local. “Modificamos a estrutura química dessa substância, eliminando a parte que tem efeito tóxico, o que tornou o medicamento injetável mais aceitável e com menos efeitos colaterais”, explica o farmacologista Edson Lima, diretor da Divisão de Farmoquímica da Cristália, área que produz 53% dos princípios ativos utilizados pela empresa. Lima é ex-professor do Instituto de Química da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IQ-UFRJ) e ex-pesquisador do Instituto de Tecnologia em Fármacos (Farmanguinhos), também no Rio de Janeiro. As modificações e rearranjos de moléculas são uma linha em que a Cristália investe cada vez mais, junto com a formulação de novos princípios ativos. Um dos profissionais que trabalham nessa área é a física Kesley Moraes de Oliveira, responsável pela triagem e simulação computacional de novas moléculas. Ela trabalhou no projeto do Helleva e diz que a equipe já estudou mais de 180 moléculas, muitas ainda em análise.

Reator calométrico no laboratório

léo ramosReator calométrico no laboratórioléo ramos

Para se posicionar melhor no mercado nacional, a empresa também se concentrou na infraestrutura de fabricação de insumos. Em 2013, inaugurou um centro de biotecnologia no mesmo complexo industrial instalado ao lado da estrada que liga Itapira a Lindóia. Lá estão sendo produzidos três medicamentos que estão em fase de testes clínicos: o anticorpo monoclonal genérico trastuzumabe para tratamento de câncer de mama; a proteína etanercept, também genérico, para tratamento de artrite e psoríase; e somatropina, hormônio de crescimento humano produzido com tecnologia de DNA recombinante, baseada na clonagem do gene codificador do hormônio.

Em outra fábrica, a de biotecnologia anaeróbica, é produzida a colagenase. Todos esses empreendimentos tiveram a consultoria de Spartaco Astolfi Filho, hoje professor da Ufam, e Josef Ernst Thiemann, dois ex-pesquisadores da Biobras, empresa mineira que desenvolveu tecnologia para produção de insulina humana no final dos anos 1970. A empresa foi comprada pela dinamarquesa Novo Nordisk em 2001. Os dois também têm incentivado os pesquisadores da Cristália a buscar novas moléculas na biodiversidade brasileira, inclusive para a produção de novos antibióticos.

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