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Bioquímica

A faxina do Plasmodium

Parasita causador da malária se livra de compostos tóxicos de duas maneiras no interior dos glóbulos vermelhos

063_Malaria_245O Plasmodium falciparum, causador da forma mais agressiva de malária, é um parasita versátil. No organismo hospedeiro, o protozoário se instala inicialmente nas células da pele e do fígado, onde amadurece e se multiplica, antes de ganhar a corrente sanguínea e invadir os glóbulos vermelhos do sangue (hemácias). É dentro das hemácias, no entanto, que o parasita executa proezas que lhe permitem se manter vivo e se livrar do lixo tóxico que ele próprio produz ao se nutrir. Em um artigo publicado no final de fevereiro na revista Scientific Reports, pesquisadores ingleses e brasileiros coordenados pela bioquímica Célia Garcia, do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (IB-USP), descreveram uma nova estratégia bioquímica usada pelo parasita para eliminar esses resíduos e, assim, sobreviver e amadurecer no interior das hemácias. Segundo eles, o mecanismo identificado agora, além de outro já conhecido há algum tempo, pode ampliar as perspectivas de se desenvolverem novas estratégias de combate à malária.

A equipe de Célia investiga, há pelo menos duas décadas, o que acontece com o plasmódio depois que ele se instala nos glóbulos vermelhos. Nesse período, ela e sua equipe verificaram que um dos segredos que possibilitam ao parasita sobreviver dentro das hemácias está relacionado ao modo como ele as invade. Em vez de perfurar a membrana, o plasmódio apenas a empurra. Como é elástica, a membrana se deforma e o envolve, criando ao seu redor uma bolsa em que a concentração de cálcio é mais elevada do que no interior da célula e mimetiza a do plasma sanguíneo — o cálcio é um elemento importante para a sobrevivência do parasita. O Plasmodium então se multiplica e passa por três fases de desenvolvimento. Após 48 horas, milhares de cópias do protozoário atingem o mesmo grau de maturidade entre si e rompem os glóbulos vermelhos, partindo para a invasão das hemácias sadias. Em estudos anteriores, o grupo da bioquímica também havia constatado que o ritmo de amadurecimento do parasita era regulado por um hormônio produzido pelo organismo do hospedeiro, a melatonina, que nos mamíferos controla os ciclos de sono e vigília (ver Pesquisa FAPESP nº 153).

O protozoário sobrevive no interior das hemácias se alimentando da hemoglobina, a proteína responsável pelo transporte de oxigênio e que dá a cor vermelha ao sangue. Há algum tempo se sabe que para isso o parasita produz uma enzima que quebra essa molécula em partes menores, os aminoácidos. Desse processo, explica Célia, resulta uma molécula chamada heme, que, se não for eliminada, pode atingir concentrações tóxicas e lesar as células e o próprio parasita que a produziu.

Na década de 1980, pesquisadores constataram que ao longo de sua evolução o P. falciparum desenvolveu ao menos uma forma de se proteger dessa substância tóxica, transformando-a em um polímero inofensivo, a hemozoína. Esse mecanismo é hoje o principal alvo da cloroquina, o antimalárico mais usado no mundo. Ao impedir a formação desse polímero, a cloroquina inibe o crescimento e a reprodução do parasita no interior das hemácias. O problema é que nas últimas décadas o medicamento vem perdendo eficácia contra o plasmódio, sobretudo na América do Sul e no Sudeste Asiático.

Em 2010, o grupo de Célia observou que outro mecanismo – comum no organismo de mamíferos, mas até então desconhecido em Plasmodium – também permite ao protozoário neutralizar o grupo heme. Em um estudo publicado na revista Cell Biology International, os pesquisadores da USP verificaram que o parasita produz uma enzima chamada heme-oxigenase, que converte o heme em biliverdina, molécula que não é tóxica em baixas concentrações. A partir de certos níveis, porém, a biliverdina pode se tornar nociva para o protozoário. “Converter o heme em biliverdina, em vez de transformá-lo em um polímero, pode representar um risco à sobrevivência do parasita dentro dos glóbulos vermelhos”, diz Célia. Os pesquisadores não sabem em que circunstâncias o plasmódio age por uma ou outra via para neutralizar os compostos tóxicos. Uma hipótese, segundo Célia, é que a segunda estratégia desaceleraria o ciclo de vida do parasita, reduzindo seu metabolismo e a produção dessas substâncias nocivas.

No estudo publicado agora na Scientific Reports, os pesquisadores investigaram o papel da biliverdina no ciclo de vida do parasita, que infecta por ano 250 milhões de pessoas no mundo (e mata quase 1 milhão, a maioria crianças), sobretudo na África, na Ásia e na América Latina. Em colaboração com Rita Tewari, da Universidade de Nottingham, na Inglaterra, o grupo de Célia interrompeu em parasitas da espécie P. berghei a expressão do gene envolvido na produção da heme-oxigenase, impedindo que eles produzissem biliverdina. Apesar de não ser a principal via usada para neutralizar substâncias tóxicas, sua produção parece ser importante para a vida do parasita. “Ao anularmos a expressão do gene que produz a heme-oxigenase, o parasita morreu”, conta Célia, que se surpreendeu com o resultado. “Mostramos que o P. berghei, que infecta roedores, é incapaz de se desenvolver dentro das hemácias se não consegue produzir a heme-oxigenase”, ela afirma. Ainda é preciso verificar se o mesmo acontece no caso do P. falciparum. Segundo ela, esse pode ser um caminho para se criar novas estratégias de combate ao parasita.

Ao que tudo indica, a biliverdina impede o amadurecimento do protozoário nas hemácias. No estudo, os pesquisadores fizeram uma série de ensaios em laboratório nos quais observaram que a biliverdina se liga à enolase, enzima usada pelo parasita para produzir energia. A descoberta os surpreendeu porque a enolase participa de outra via bioquímica do plasmódio e porque, em princípio, não deveria se unir à biliverdina. Célia e seus colaboradores, entre eles Glaucius Oliva e Rafael Guido, ambos da USP de São Carlos, concluíram que, ao se ligar à enolase, a biliverdina reduz a taxa de multiplicação do plasmódio. “A biliverdina funcionaria como uma molécula de comunicação, e a enolase, como um sensor que detecta a biliverdina”, sugere Célia.

Projeto
Genômica funcional em Plasmodium (nº 2011/51295-5); Modalidade Auxílio à Pesquisa — Temático; Pesquisadora responsável Célia Regina da Silva Garcia (IB-USP); Investimento R$ 2.068.020.

Artigos científicos
ALVES, E. et al. Biliverdin targets enolase and eukaryotic initiation factor 2 (eIF2α) to reduce the growth of intraerythrocytic development of the malaria parasite Plasmodium falciparum. Scientific Reports. v. 6, n. 22093, p. 1-12. fev. 2016.
SARTORELLO, R. et al. In vivo uptake of a haem analogue Zn protoporphyrin IX by the human malaria parasite P. falciparum-infected red blood cells. Cell Biology International. v. 34, n. 8. p. 859-65. ago. 2010.

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