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Saúde

A vez da chikungunya

Altamente debilitante, infecção viral se espalha pelo país

Podcast: Rivaldo Venancio

 
     
Enquanto as atenções se voltavam para o vírus zika e sua ação devastadora sobre o cérebro dos bebês, outro agente infeccioso, causador de uma enfermidade bem mais dolorosa e debilitante para a maioria das pessoas, alastrava-se pelo país de maneira discreta. Em meados de 2014, duas variedades do vírus chikungunya alcançaram quase ao mesmo tempo duas regiões brasileiras: uma linhagem originária da África chegou no final de maio a Feira de Santana, na Bahia, e outra, proveniente da Ásia e associada à epidemia de chikungunya nas Américas, aportou no município de Oiapoque, no Amapá. Era o início de uma invasão lenta e gradual, que se acelerou muito neste ano (ver gráfico).

Até dezembro de 2014, oito cidades, além de Brasília, registravam 3.657 casos suspeitos de febre chikungunya. De lá para cá, esse número se multiplicou e o problema avançou por todo o país. Em 2015 houve 38.332 prováveis casos, distribuídos por 696 municípios, e já começa a surgir o receio de que a infecção possa comprometer a capacidade de atendimento do sistema de saúde brasileiro. Só no primeiro semestre deste ano ocorreram 138 mil registros de chikungunya em 2.054 cidades. Em abril, os casos suspeitos dessa febre (64 mil) já superavam em 36% as infecções por zika no Nordeste.

“Em abril estive no Hospital Giselda Trigueiro, em Natal, para conhecer melhor os sintomas da zika, mas só havia casos de chikungunya”, relata o infectologista Marcos Boulos, professor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FM-USP). Boulos, que atualmente chefia a Coordenadoria de Controle de Doenças da Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo, naquela manhã, em pouco mais de uma hora e meia, testemunhou o atendimento de três pessoas com chikungunya. “Elas chegavam curvadas pelas dores articulares e tinham os dedos tão inchados que não conseguiam fechar as mãos”, conta o médico.

A infecção por chikungunya lembra a causada pelo vírus da febre zika e pelo da dengue, razão pela qual o diagnóstico correto só é possível por meio de testes moleculares (PCR) e imunológicos, que já existem, mas não estão disponíveis no sistema público de saúde. Transmitidas pela picada de mosquitos do gênero Aedes – em especial, o A. aegypti, abundante em todo o país –, as três enfermidades costumam causar febre, manchas vermelhas pelo corpo e dores de cabeça, além das musculares e articulares (ver Pesquisa FAPESP nº 239).

Em geral são o inchaço das articulações e a intensidade das dores nas juntas, possivelmente associados à multiplicação do vírus, que fazem os médicos suspeitarem de chikungunya, palavra da língua makonde, falada por grupos da Tanzânia e de Moçambique, que significa “aqueles que se dobram”. É uma referência ao modo como as pessoas infectadas pelo vírus passam a caminhar: com o corpo encolhido e curvado para a frente, na tentativa de reduzir o desconforto.

O primeiro surto confirmado dessa febre ocorreu na Tanzânia em 1952, embora exista a suspeita de que o vírus, que integra a família Togaviridae e o gênero Alphavirus, já circulasse pela África dois séculos antes. Por muito tempo, a doença foi considerada um problema de saúde pública no Oriente, por permanecer restrita à parte leste do continente africano, ao Sudeste da Ásia e à região banhada pelo oceano Índico. Só nos últimos 10 anos, com a intensificação dos surtos naquela região e a chegada do vírus ao Caribe, a chikungunya tornou-se uma preocupação global.

Já era tarde. Após a notificação dos primeiros casos transmitidos internamente na ilha de Saint Martin no final de 2013, a linhagem do vírus originária da Ásia espalhou-se rapidamente pelas Américas. Em pouco mais de um ano o vírus estava em 43 países e territórios do continente e havia infectado 1,4 milhão de pessoas. Foi essa variedade que entrou no Amapá, provavelmente via Guiana Francesa, e provocou casos em municípios da região Norte.

Em maio de 2014, um brasileiro que veio de Angola para visitar a família na Bahia pode ter sido o responsável por introduzir no país a variedade do vírus que circula no leste da África e já se espalhou por boa parte do Brasil. Ele esteve em Feira de Santana, a segunda maior cidade do estado, e em 28 de maio procurou um pronto-socorro com febre alta e dores nas articulações. A suspeita inicial de dengue foi descartada por exames laboratoriais. Mais tarde análises genéticas feitas pela equipe do virologista Pedro Vasconcelos, do Instituto Evandro Chagas, no Pará, confirmaram que o problema havia sido causado pela variedade africana de chikungunya, distinta da que circulava no Amapá.

Chikungunya_Gráfico_246Nas semanas seguintes à visita, vários familiares desse homem, picados por mosquitos infectados, apresentaram sinais de chikungunya, que se espalhou pela cidade. Desde o início do surto, pesquisadores da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) na Bahia e da Universidade Estadual de Feira de Santana, trabalhando com colegas da Universidade de Oxford, na Inglaterra, identificaram duas ondas de transmissão da doença. Em um primeiro momento, de junho a dezembro de 2014, quando a presença de mosquito é menor, os casos se concentraram no bairro George Américo, onde vivia a primeira família infectada. A segunda onda ocorreu entre janeiro e setembro de 2015 e acompanhou a disseminação de dengue e zika na cidade, relataram os pesquisadores em um artigo publicado neste ano na PLoS Currents Outbreaks. Segundo eles, a fase de estabelecimento do vírus passou. Agora há focos de transmissão em vários bairros e o risco de que a infecção se torne endêmica na região.

Dores crônicas
Até o início deste ano, 5.363 casos suspeitos de chikungunya haviam sido identificados em Feira de Santana, o que deixou o sistema público de saúde da cidade próximo do colapso. “Estamos acompanhando dezenas de pessoas que ainda têm dores nas articulações de quatro a seis meses depois de terem adoecido”, conta o infectologista Rivaldo Venâncio da Cunha, da Fiocruz em Mato Grosso do Sul.

Desde o início do surto na Bahia, Cunha vai a Feira de Santana e Riachão do Jacuípe, outra cidade baiana muito afetada, para analisar os casos. Segundo ele, de modo geral, quem tem chikungunya usa a rede de saúde com mais frequência que pessoas com zika ou dengue. “Após um surto ou epidemia de dengue, a rede assistencial desafoga aos poucos”, explica. Com a chikungunya, não. “Por causa das dores e da inflamação as pessoas voltam para consultas quase toda semana, por meses. Isso desestrutura qualquer sistema de saúde.”

Estudos internacionais indicam que as dores nas articulações são mais intensas no início da infecção e costumam se tornar crônicas nas pessoas com mais de 45 anos. Em uma proporção variável delas, o problema pode persistir por um ano ou mais. Um trabalho dos anos 1980 já mostrou que 12% das pessoas que tiveram chikungunya continuavam a apresentar seus sintomas três anos mais tarde. Em outra avaliação, de 2009, pesquisadores acompanharam por 15 meses a saúde de 147 moradores das ilhas Reunião, no oceano Índico, que haviam tido chikungunya. O resultado? Seis de cada 10 ainda relatavam sentir dores mesmo tanto tempo depois da infecção.

“No Brasil, os casos de chikungunya parecem ser mais frequentes nas regiões mais pobres”, avalia o virologista Renato Pereira de Souza, do Instituto Adolfo Lutz, em São Paulo. “Quando a infecção atinge o provedor da família, gera um problema econômico importante.” Souza esteve em um encontro internacional de virologia, realizado no início de junho em São José do Rio Preto, e conta que vários especialistas se mostraram preocupados com o risco de a chikungunya se tornar o problema do próximo verão.

Há razões para a suspeita. O vírus já está em um terço dos municípios brasileiros – inclusive em São Paulo e no Rio de Janeiro, os mais populosos; o Aedes voa e procria por quase todo o país; e a população nunca teve contato com o vírus (aparentemente após a infecção se desenvolve imunidade duradoura).

Outra característica do surto brasileiro reforça o receio de que a situação possa se agravar. Apesar da aceleração observada neste ano, o vírus ainda se espalha mais lentamente do que em outros países. “Os surtos de chikungunya costumam ser explosivos”, conta o infectologista Benedito Lopes da Fonseca, da USP em Ribeirão Preto. Há cerca de um ano e meio, ele preparou seu laboratório para identificar a infecção e diagnosticou dois casos, ambos importados, no início de 2015. “Eu esperava que fosse chegar antes do zika”, diz Fonseca, que trabalha com a Secretaria da Saúde do município na montagem de um sistema de vigilância contra a chikungunya.

“Estamos notando que, devagar, há um aumento no número de casos em outras regiões do país”, afirma Souza, do Adolfo Lutz. “O inverno é um momento de suspense, mas importante para unir forças e recursos para combater o mosquito.” Cunha, da Fiocruz, completa: “Esta é a época para organizar a rede de saúde para atender os doentes, já que poucas coisas são tão previsíveis quanto a infestação por Aedes a cada verão.”

Ainda não há vacina contra o vírus e o tratamento é paliativo, à base de analgésicos e outras medicações. Para os especialistas, é preciso treinar os médicos para fazerem o diagnóstico correto, em especial dos casos graves. “No Nordeste temos visto muitos casos de miocardite e uma taxa de óbitos exageradamente alta”, afirma o infectologista Kleber Luz, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Luz é consultor do Ministério da Saúde para a assistência a doentes e, em 2013, acompanhou na Martinica um surto de chikungunya que lhe pareceu uma versão mais branda da doença que circula no país. Ele suspeita de que parte das mortes decorrem do manejo inadequado dos pacientes e do uso de anti-inflamatórios, que devem ser evitados na fase aguda. “É preciso investigar o que está acontecendo”, afirma.

Representação artística do vírus zika, que pode prejudicar o desenvolvimento cerebral de fetos em formação e causar microcefalia

adaptado de Manuel Almagro Rivas/wikimedia commons Representação artística do vírus zika, que pode prejudicar o desenvolvimento cerebral de fetos em formação e causar microcefaliaadaptado de Manuel Almagro Rivas/wikimedia commons

Vacinas protegem macacos contra o zika

Três formulações candidatas a se tornar vacina contra o vírus zika se mostraram eficazes e seguras em testes com macacos. Essa foi a segunda bateria de experimentos em animais à qual duas delas foram submetidas com sucesso. No final de junho, pesquisadores brasileiros e norte-americanos haviam relatado em um artigo publicado na revista Nature o efeito protetor em camundongos de duas classes de vacinas: um imunizante produzido com o vírus inativado e outro obtido a partir de dois genes do zika, a chamada vacina de DNA (ver Pesquisa FAPESP nº 245). Agora, o mesmo grupo apresentou na edição de 4 de agosto da revista Science os resultados da etapa seguinte, a última antes dos testes em seres humanos, previstos para começarem nos próximos meses.

“Esses resultados são importantes porque mostram que é possível gerar proteção contra o zika em macacos, animais com o sistema de defesa muito mais semelhante ao do ser humano do que os camundongos”, conta o imunologista brasileiro Rafael Larocca, pesquisador do Centro de Virologia e Pesquisa em Vacina (CVVR) da Escola Médica Harvard, nos Estados Unidos. Larocca integra a equipe de Dan Barouch e, ao lado do colega Peter Abbink, é um dos principais autores dos dois estudos.

Nos testes mais recentes, os pesquisadores vacinaram macacos rhesus, com dose única ou uma dose inicial seguida de reforço, usando uma destas três formulações: a de vírus inativado, a vacina de DNA ou uma terceira possibilidade, uma formulação que usa adenovírus recombinante para expressar os genes do zika. Todas elas se mostraram igualmente capazes de impedir a infecção posterior por zika.

A formulação de vírus inativado gerou uma proteção bastante ampla. Macacos tratados com ela e depois infectados com zika não apresentaram vírus no sangue, na urina, no líquido cefalorraquidiano nem na secreção vaginal. “Esse tipo de proteção é relevante por causa do risco de transmissão sexual”, conta o neuroimunologista Jean Pierre Peron, pesquisador da Universidade de São Paulo (USP). Ele e o virologista Paolo Zanotto, também da USP, colaboraram nos artigos e participam da Rede Zika, o consórcio de pesquisadores de São Paulo que investigam o vírus com apoio da FAPESP.

Artigos científicos
FARIA, N. R. et alEpidemiology of chikungunya virus in Bahia, Brazil, 2014-2015. PLoS Currents Outbreaks. 1 fev. 2016.
TEIXEIRA, M. G. et al. East/Central/South African genotype chikungunya virus, Brazil, 2014. Emerging Infectious Diseases. Mai. 2015.
MORRISON, C. R.; PLANTE, K. S. e HEISE, M. T. Chikungunya virus: Current perspectives on a reemerging virus. Microbiology Spectrum. 13 mai. 2016.
ABBINK, P. et al. Protective efficacy of multiple vaccine platforms against zika virus challenge in rhesus monkeys. Science. 4 de ago. 2016.

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