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PALEONTOLOGIA

Por dentro dos fósseis

Tomografia por computador se torna mais disseminada e permite análises detalhadas de ossos de animais extintos

Podcast: Sérgio Alex Azevedo

 
     
Enxergar dentro de um ovo era a grande inquietação do paleontólogo Sérgio Alex Azevedo, pesquisador do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), no início dos anos 1990. Nessa época ele estudava um suposto ovo intacto da coleção do museu, posto por uma espécie ancestral de tartaruga há mais de 65 milhões de anos, encontrado no interior paulista e transformado em rocha sólida. Serrar a peça raríssima para estudá-la era impensável. Ele tirou uma radiografia, mas a mancha disforme da chapa fotográfica não ajudou muito. Com ajuda de colegas, conseguiu acesso a uma máquina de tomografia computadorizada do Hospital São Lucas da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS), em Porto Alegre, que combina imagens de raios X de várias seções de um corpo e gera um mapa tridimensional de suas partes e cavidades interiores. Nas imagens do tomógrafo, era possível distinguir os contornos gerais da cabeça, do dorso e da vértebra do embrião com menos de 5 centímetros de comprimento. “Só me convenci do que eu via quando mostrei as imagens a um médico radiologista”, conta Azevedo. Seu trabalho, publicado em 2000 nos Anais da Academia Brasileira de Ciências, foi um dos primeiros no Brasil a aplicar a tomografia computadorizada à paleontologia.

Se há 20 anos essa técnica ainda era uma novidade mesmo entre paleontólogos no exterior, hoje é mais acessível, principalmente com o desenvolvimento de microtomógrafos e com o aumento da resolução dos equipamentos. As imagens são agora geradas a partir de raios X com poder de penetração maior do que o dos tomógrafos médicos, e computadores combinam centenas de imagens. Os pesquisadores conseguem identificar detalhes micrométricos do interior de ossos fósseis sem precisar quebrá-los ou extraí-los completamente do bloco de rocha em que foram encontrados. Além de preservar os fósseis, o escaneamento do material gera informações que podem ser usadas para criar modelos tridimensionais e animações em computador que ajudam a entender melhor a estrutura e os movimentos de animais extintos. No Brasil, as máquinas desse tipo para uso em paleontologia não chegam a uma dezena, fazendo com que os pesquisadores recorram às de instituições da área médica, de engenharia, geociências ou física, já que é muito difícil sair do país com fósseis. Mas cada vez mais museus e universidades nacionais investem na compra de suas próprias máquinas de microtomografia computadorizada, a despeito do custo: apenas a licença de uso do programa de computador para o equipamento pode custar cerca de R$ 50 mil.

“A microtomografia ainda é cara, mas já virou praxe na área”, afirma a paleontóloga Gabriela Sobral, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Em 2012, durante o doutorado, ela usou o microtomógrafo do Museu de História Natural de Berlim para reconstituir a história da evolução do ouvido interno dos arcossauros, grupo de animais que inclui os crocodilos, os dinossauros e os descendentes diretos do único subgrupo não extinto de dinossauros, as aves (ver Pesquisa FAPESP nº 202). “Antes da tomografia só era possível acessar estruturas internas do crânio, como as do ouvido interno, se o fóssil estivesse quebrado”, conta ela.

A tomografia do crânio detalha as cavidades do ouvido interno e reforça a hipótese sobre sua agilidade

Gabriela Sobral A tomografia do crânio detalha as cavidades do ouvido interno e reforça a hipótese sobre sua agilidadeGabriela Sobral

Em um artigo publicado em julho deste ano na revista Royal Society Open Science, Gabriela e outros especialistas da Alemanha, do Reino Unido, dos Estados Unidos e da África do Sul apresentaram as tomografias do ouvido interno de Euparkeria capensis, réptil do tamanho de um gato, extinto há 245 milhões de anos. As imagens revelaram o formato das cavidades ósseas que abrigavam os três canais semicirculares do ouvido interno, estruturas relacionadas à capacidade do animal de manter o equilíbrio do corpo quando em movimento. “Os resultados confirmam a hipótese de que Euparkeria era um animal mais ativo e ágil que a maioria dos répteis da época.” Os pesquisadores sugerem que essa espécie, descoberta na África do Sul em 1913, seja a que mais se aproxima do ancestral comum de todos os arcossauros. Entender a anatomia de Euparkeria, portanto, ajuda a desvendar como os arcossauros teriam se definido como um grupo evolutivamente único, a partir dos demais grupos de répteis.

Gabriela explica que operar um microtomógrafo não é trivial – os pesquisadores do museu de Berlim levaram três anos até conseguir usar a máquina com correção. “Os ajustes dos raios X do scanner têm parâmetros similares aos de uma máquina fotográfica profissional, como tempo de exposição e intensidade do flash”, diz ela. “Cada fóssil exige uma análise diferente”, reitera Azevedo, da UFRJ. Desde 2002, seu grupo utiliza os tomógrafos de uma clínica médica particular e do hospital da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e os microtomógrafos da UFRJ e da PUC do Rio de Janeiro para estudar materiais fósseis e arqueológicos, como múmias egípcias (ver Pesquisa FAPESP nº 215).

“Os estudantes estão querendo cada vez mais usar essa técnica”, observa Alexander Kellner, paleontólogo do Museu Nacional. Enquanto não chega o aparelho do próprio museu, um de seus alunos de mestrado, Arthur Brum, usou um tomógrafo do Centro de Pesquisas da Petrobras para analisar fragmentos de ossos de um abelissauro, tipo de dinossauro encontrado no interior de São Paulo que lembra um tiranossauro, com apenas 3 metros de comprimento. As imagens, publicadas em maio deste ano na Cretaceous Research, confirmaram que os abelissauros possuíam ossos porosos, semelhantes aos das aves.

Paleontologia_Info_246Mordidas de 237 milhões de anos
Em colaboração com Kellner, o biólogo Voltaire Paes Neto, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), identificou as mordidas mais antigas já registradas, feitas por insetos com mandíbulas em um osso de um animal do grupo dos dicinodontes, herbívoros do porte de rinocerontes, há 237 milhões de anos. Paes Neto usou um aparelho de tomografia do Hospital das Clínicas de Porto Alegre.

Paes Neto demorou quatro anos para caracterizar as marcas nos fósseis, desde que encontrou perfurações que ninguém sabia explicar em um osso de arcossauro que recebeu para limpar ao chegar ao laboratório de paleontologia coordenado por Marina Bento Soares, na UFRGS, em 2011. Como os orifícios de 4 milímetros de diâmetro eram perfeitos, ele descartou a possibilidade de resultarem de alguma doença óssea, que dificilmente deixaria marcas tão regulares, e, por fim, concluiu que os tubos e as trilhas de mandíbulas deveriam ter sido feitos por insetos semelhantes a besouros e cupins atuais, que ainda hoje se alimentam de ossos e restos de animais em decomposição.

Uma das marcas, uma trilha deixada por mandíbulas, foi por enquanto registrada apenas em osso de cinodontes – animais que deram origem aos mamíferos – do atual sul do Brasil e ganhou o nome de Osteocallis infestans. As marcas dos insetos nos ossos têm nome científico, com gênero e espécie, que indicam o comportamento dos animais extintos que as fizeram. No período geológico conhecido como Triássico, entre 252 milhões e 201 milhões de anos, os besouros haviam apenas começado a se diversificar, a conquistar novos ambientes e a formar um grupo com cerca de 350 mil espécies. “Creio que é possível encontrar marcas semelhantes em fósseis ainda mais antigos do que esses”, diz Kellner.

“Como as imagens tridimensionais exigem computadores com alta capacidade de processamento, a tomografia transformou a paleontologia, antes relativamente barata, em uma ciência cara”, observa Felipe Montefeltro, paleontólogo da Universidade Estadual Paulista (Unesp) de Ilha Solteira, que estuda a evolução do ouvido interno de crocodilos e já utilizou microtomógrafos de instituições de pesquisa do Canadá e do Reino Unido. Do mesmo modo, a bióloga Tiana Kohlsdorf, da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Riberão Preto (FFCLRP) da Universidade de São Paulo (USP), analisa espécies de répteis e anfíbios atuais usando o microtomógrafo do Instituto de Biociências (IB) da USP, em colaboração com o zoólogo Gabriel Marroig, também do IB (ver Pesquisa FAPESP nº 230).

Muito além da poeira
Gabriela Sobral se prepara para começar em setembro um projeto de pós-doutorado valendo-se do microtomógrafo do Museu de Zoologia (MZ) da USP, adquirido em 2015, idêntico ao que usava em Berlim. Ela pretende registrar as etapas do desenvolvimento de embriões de jacaré-do-pantanal, em colaboração com o zootecnista Willer Girardi, utilizando corantes especiais que permitem distinguir músculos e vísceras nas imagens do tomógrafo. “A microtomografia também está sendo muito usada na biologia comparativa”, diz Hussam Zaher, zoólogo especialista em serpentes que coordena o projeto de compra e instalação da nova máquina do MZ. Agora, ele ressalta, um pesquisador interessado em conhecer a estrutura interna de uma espécie não precisa necessariamente dissecar o corpo intacto de um animal conservado em álcool no museu. “A técnica ajuda a preservar as coleções.” Kellner, da UFRJ, reforça: “Esqueça aquela imagem do paleontólogo apenas assoprando poeira dos fósseis. A paleontologia está cada vez mais sofisticada, com a tecnologia nos permitindo investigar questões cada vez mais complexas sobre animais que viveram há milhões de anos”.

Artigos científicos
AZEVEDO, S. A. et al. A possible chelonian egg from the Brazilian Late Cretaceous. Anais da Academia Brasileira de Ciências. v. 72, n. 2, p. 187-93. 2000.
SOBRAL, G. et al. New information on the braincase and inner ear of Euparkeria capensis Broom: implications for diapsid and archosaur evolution. Royal Society Open Science. 13 jul. 2016.
BRUM, A.S. et al. Morphology and internal structure of two new abelisaurid remains (Theropoda, Dinosauria) from the Adamantina Formation (Turonian – Maastrichtian), Bauru Group, Paraná Basin, Brazil. Cretaceous Research. v. 60, p. 287-96. 2016.
PAES NETO, V. D. et al. Oldest evidence of osteophagic behavior by insects from the Triassic of Brazil. Palaeogeography, Palaeoclimatology, Palaeoecology. v. 453, p. 30-41. 2016.

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