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ARTE

Caipiras transnacionais

Tese defende que Almeida Júnior criou suas célebres figuras de caipiras em diálogo com a pintura naturalista produzida na Europa

Podcast: Fernanda Pitta

 
     
O paulista de Itu José Ferraz de Almeida Júnior (1859-1899) foi o criador, no final do século XIX, do gênero de pinturas que retratam caipiras. Embora a temática seja genuinamente nacional, a técnica utilizada deve muito a procedimentos aprendidos no exterior, durante estadas na França e em diálogo com a produção europeia. Essa foi a ideia defendida pela historiadora Fernanda Mendonça Pitta, curadora da Pinacoteca de São Paulo, na tese de doutorado “Um povo pacato e bucólico: Costume e história na obra de Almeida Júnior”, desenvolvida entre 2010 e 2013 no Departamento de Artes Visuais da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP). A pesquisadora contesta a concepção tradicional – baseada nas análises de críticos como os modernistas Mário de Andrade e Oswald de Andrade, e também de José Bento Monteiro Lobato – que associava a produção do artista ao fato de ele ser interiorano, compreendendo sua pintura como reflexo de suas experiências e memórias.

O historiador da arte Rodrigo Naves, doutor em estética pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, explica que, tradicionalmente, a crítica valorizou a obra de Almeida Júnior por considerá-la representativa da identidade brasileira, e que a tese de Fernanda confronta essa ótica mais chauvinista. Embora outros pesquisadores tenham analisado a pintura do artista de uma perspectiva mais artística e menos ideológica – entre eles Aracy Amaral, professora de história da arte na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da USP –, Naves afirma que o estudo de Fernanda é o primeiro a oferecer uma visão aprofundada sobre as relações de Almeida Júnior com a pintura europeia.

Amolação interrompida (1894): ênfase nos pequenos gestos

ACERvo da pinacoteca do estado de são Paulo Amolação interrompida (1894): ênfase nos pequenos gestosACERvo da pinacoteca do estado de são Paulo

Percival Tirapeli, professor do Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista (Unesp), afirma que até meados da década de 1980 as pesquisas sobre o pintor eram em geral panorâmicas. Muitas delas relacionavam vida e obra. A partir dos anos 1990, os estudos acadêmicos passaram a se concentrar em obras específicas, o que permitiu um aprofundamento nas questões estéticas. Para o historiador da arte Tadeu Chiarelli, diretor da Pinacoteca, professor da ECA-USP e orientador da tese, o mérito do estudo de Fernanda é reavaliar a posição de Almeida Júnior no contexto geral da arte brasileira: de artista infenso às influências estrangeiras e “autenticamente” brasileiro passa a ser compreendido como um pintor atento ao contexto internacional. “As contextualizações ancoradas na pesquisa do meio artístico europeu representam uma novidade se comparadas aos estudos prévios sobre o pintor”, diz.

Durante algum tempo, Almeida Júnior foi um dos poucos pintores em atividade no interior de São Paulo – residia e mantinha um ateliê em Itu. Em 1888, mudou-se para a cidade de São Paulo, montando um novo ateliê. Na época, artistas de todo o país procuravam se estabelecer no Rio de Janeiro, sede da Academia Imperial de Belas Artes, que facilitava o contato com a corte. Por causa da suposta fidelidade do pintor paulista ao seu meio, os modernistas o situaram no centro do debate sobre a necessidade de inventar uma identidade artística genuinamente nacional. “Esses críticos procuraram isolar Almeida Júnior dos contatos com técnicas e temas europeus e sustentar que ele não se deixou influenciar por elementos estrangeiros”, explica Fernanda.

A historiadora estudou quatro obras criadas pelo artista entre 1888 e 1897: Caipiras negaceando (pertencente ao acervo do Museu Nacional de Belas Artes, no Rio), Caipira picando fumo, Amolação interrompida (ambas da Pinacoteca) e Partida da monção (da coleção do Museu Paulista da USP). Ela partiu da dissertação de mestrado “Revendo Almeida Júnior”, de Maria Cecília França Lourenço, professora na FAU-USP, que entre 1973 e 1981 fez o primeiro levantamento da produção do artista e da fortuna crítica – conjunto de estudos publicados sobre ele. Em 1983, Maria Cecília assumiu a diretoria da Pinacoteca, coordenando a execução de outro projeto, dessa vez para ampliar a catalogação da obra do pintor.

Caipira picando fumo (1893): figura cara aos modernistas e a Monteiro Lobato

ACERvo da pinacoteca do estado de são Paulo Caipira picando fumo (1893): figura cara aos modernistas e a Monteiro LobatoACERvo da pinacoteca do estado de são Paulo

Os estudos da hoje docente da FAU já contestavam a visão dos modernistas, que sabiam que o pintor tinha estudado na França, mas argumentavam que ele havia deliberadamente se protegido dos estrangeirismos. “No entanto, as cores aquareladas de quadros como Partida da monção não eram adotadas por outros pintores brasileiros”, afirma Maria Cecília. Segundo ela, Almeida Júnior buscou manter a claridade das telas e evitar o que se chamava de sobreacabamento, caracterizado por uma aparência lisa que ocultava a pincelada. O efeito sem brilho, diz Maria Cecília, era comum na pintura mural e na decorativa, predominante na Europa, das quais o estilo de Almeida Júnior se aproximou.

Além dos estudos de Maria Cecília, Fernanda se apoiou nos trabalhos de Chiarelli. Ele sustenta que, como parte de uma tendência renovadora geral estimulada pela crítica, a pintura histórica brasileira de artistas como Victor Meirelles e Pedro Américo deu lugar, no final do século XIX, a figuras e costumes da cultura popular brasileira

Fernanda mostrou que, em Caipira picando fumo e Amolação interrompida, o artista adotou técnicas pictóricas do naturalismo francês, que consistiam em esfregar o pigmento quase seco sobre a tela para que ele impregnasse diretamente o tecido. Isso fez com que os brancos saltassem à vista, dando a sensação de tridimensionalidade das figuras e ressaltando a rusticidade e a materialidade da pintura. O procedimento tradicional na época era espalhar camadas de tinta semitransparentes e sobrepostas que ocultavam as pinceladas e ajudavam a simular a profundidade.

A pesquisadora sustenta que essas técnicas foram aprendidas pelo pintor durante sua estada na Europa, entre 1876 e 1882, quando estudou na École de Beaux Arts de Paris com uma bolsa oferecida pelo imperador dom Pedro II e nas subsequentes visitas do artista ao continente. Em sua formação no Brasil, o artista havia aprendido apenas os procedimentos do ensino da academia, como a cópia de telas de mestres do Renascimento ou Barroco, além de um tratamento convencional de temas religiosos e históricos.

Caipiras negaceando (1888): fundo escuro antes do contato com a pintura europeia

Escola nacional de belas artes ibrem/minc – almeida Jr. 1888 / foto jaime acioli Caipiras negaceando (1888): fundo escuro antes do contato com a pintura europeiaEscola nacional de belas artes ibrem/minc – almeida Jr. 1888 / foto jaime acioli

Pintura muda
Em Partida da monção, Fernanda constatou que Almeida Júnior radicalizou o uso dos métodos absorvidos na Europa e aproximou sua obra da pintura decorativa do francês Puvis de Chavannes (1828-1894). Os pontos de convergência envolvem questões técnicas e a forma de arranjo dos personagens nas telas. A exemplo do francês, Almeida Júnior adotou cores claras e sem efeitos de contraste e escolheu composições sem protagonistas evidentes: os grupos de pessoas são dispostos de modo a voltar a atenção para as pequenas histórias e não para gestos grandiosos. Outro elemento de aproximação com Chavannes é o fato de haver figuras apenas esboçadas por um contorno, sem muita definição das fisionomias ou dos detalhes. “A pintura de Almeida Júnior é uma pintura muda, como se dizia também das obras de Chavannes”, compara a historiadora.

A pesquisadora questiona a ideia de que os críticos e o público se sentiam fascinados pelos camponeses do artista no final do século XIX porque os personagens seriam a figuração da “alma paulista”. Para Fernanda, a atração por essas figuras decorria do fato de elas, por um lado, representarem a cultura regional, e, por outro, tenderem a desaparecer. “Para a ideologia da época, a figura do caipira é símbolo de um passado que deve ser superado, mas sua memória precisa ser preservada para a criação de uma identidade”, destaca. Para construir esse argumento, Fernanda se baseou em estudos sobre a obra do pintor francês Jean-François Milliet (1814-1875) segundo os quais os camponeses retratados pelo artista seriam a representação da essência da França, da mesma forma que, no Brasil, os camponeses de Almeida Júnior eram considerados a figuração da alma paulista.

Projeto
Um povo pacato e bucólico: Costume e história na pintura de Almeida Júnior (n° 2010/09282-0); Modalidade Bolsa de Doutorado; Pesquisador responsável Domingos Tadeu Chiarelli (ECA-USP); Investimento R$ 117.819,00.

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