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PLANEJAMENTO FAMILIAR

Leis do feminino

Estudo da atuação de uma clínica de assistência à mulher recupera a história dos direitos reprodutivos no Brasil

Podcast: Andrea Moraes Alves

 
     
Um período de cerca de 35 anos separa as primeiras articulações de setores da sociedade brasileira em favor de políticas relacionadas à regulação da fecundidade e os dias de hoje, em que as reivindicações se efetivaram, pelo menos parcialmente, na forma de leis e serviços oferecidos pelas redes públicas de saúde. “Houve um avanço notável nessas quase quatro décadas”, diz a psicóloga Margareth Arilha, pesquisadora do Núcleo de Estudos de População (Nepo) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). A primeira reivindicação atendida, segundo a antropóloga Andrea Moraes Alves, professora da Escola de Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), foi a criação, em 1983, do Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher (Paism).

Uma importante inflexão do período foi a Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) instaurada no Congresso em 1992 e encerrada em 1993, para investigar denúncias de esterilização em massa de mulheres no Brasil que teriam sido promovidas, entre outras instituições, pelo Centro de Pesquisas de Assistência Integrada à Mulher e à Criança (CPAIMC), entidade privada do Rio de Janeiro. O inquérito terminou inconcluso quanto a essas acusações, mas teria marcado uma guinada histórica que influenciou o teor da Lei de Planejamento Familiar (1996), de acordo com Andrea.

“A denúncia contra o CPAIMC, capitaneada por parlamentares, entidades feministas e especialistas na área da saúde e de estudos populacionais, contribuiu para a promoção do conceito de direito reprodutivo das mulheres, então discutido na sociedade, mas ainda não estabelecido legalmente”, afirma a pesquisadora, que analisou o desenrolar da CPMI na pesquisa “A trajetória do CPAIMC: A introdução da esterilização feminina no Brasil”. Além do acompanhamento das sessões parlamentares e seu contexto, o estudo percorreu a trajetória do fundador e diretor do centro, o médico Helio Aguinaga, entrevistado por Andrea em 2013, aos 97 anos. Ele morreu dois anos depois.

O CPAIMC foi criado em 1974 por um grupo de médicos, enfermeiros e assistentes sociais do Hospital São Francisco de Assis, no Rio, e registrado no ano seguinte como “sociedade civil sem fins lucrativos”. Os recursos financeiros vieram, de início, do Fundo da População das Nações Unidas e em seguida da agência do governo norte-americano para ajuda internacional (USAID) e de várias organizações internacionais, sobretudo dos Estados Unidos. Nessa época, o grande debate internacional sobre controle da natalidade tinha como motor a preocupação com a então chamada “bomba populacional” – a ideia, baseada em projeções estatísticas, de que o crescimento do número de habitantes do planeta superaria a capacidade de geração de alimentos para todos.

No Brasil, o pensamento nas fileiras do regime militar se dividia entre os que abraçavam essa ideia e os que consideravam as grandes taxas de fecundidade locais oportunas para fazer a ocupação do território nacional. Nos órgãos de representação da comunidade médica das instituições privadas, segundo Andrea, havia uma forte tendência de privilegiar a perspectiva da saúde pública, com o argumento de que o controle da natalidade contribuiria para o bem-estar da população, principalmente das mulheres, que deveriam ter filhos apenas quando quisessem. Para a Igreja católica, então mais influente do que hoje, é responsabilidade dos casais regular a fertilidade por meios “naturais”, para não terem filhos sem condições de criá-los, mas considerava contrário à natureza qualquer método de contracepção artificial.

Segundo Andrea, a presença estrangeira – bastante explorada na CPMI como “ingerência externa” – tinha como principal motivação o interesse em desarmar a “bomba populacional” onde parecia mais perigosa, os países em desenvolvimento (na Europa, as taxas de fecundidade estavam caindo), e o temor, em tempos de Guerra Fria, de que o aumento do número de miseráveis viesse a dar sustentação a movimentos de insurgência de orientação comunista. O objetivo declarado das doações de entidades internacionais era humanitário: promover o controle da natalidade para favorecer a qualidade de vida da população. Um dado objetivo ajudou a mudar o foco da discussão: a queda abrupta da taxa de fecundidade no Brasil, que passou de 5,8 filhos por mulher, em 1970, para 4,4, em 1980, e 2,9, em 1990. As práticas de esterilização, entretanto, continuaram.

“Com a expansão das atividades do CPAIMC em favelas da cidade do Rio de Janeiro, começaram a surgir denúncias de ações praticadas nos postos comunitários”, conta Andrea. A atuação do centro se apoiava em convênios com as administrações municipais e na criação de polos autônomos nas comunidades pobres. Em 1984, o jornal O Globo noticiou o fechamento de uma unidade da instituição que funcionava dentro de uma escola municipal no bairro de Acari, por incompatibilidade entre a atividade médica e a educacional. Uma moradora de baixa renda do bairro se disse coagida a submeter-se à cirurgia de esterilização. Na ocasião, Aguinaga declarou ao jornal: “O que nós queremos é trazer melhorias para essas pessoas que vivem mal, em condições sub-humanas.” Em 1986, o Ministério da Saúde suspendeu os testes do anticoncepcional Norplant realizados pelo centro entre mulheres pobres.

Durante os debates para a redação da Constituição de 1988, Aguinaga se dedicou a uma campanha pessoal pela inclusão do planejamento familiar no texto constitucional. As argumentações públicas do médico, que continuavam vinculando o tema às condições de desenvolvimento do país, começaram a ser abertamente contestadas pelos defensores da perspectiva individual dos direitos de reprodução. Essa era a orientação unânime das organizações feministas, que tiveram uma vitória com a aprovação do texto do artigo 226 da nova Constituição, segundo o qual o planejamento familiar é “de livre decisão do casal” e fica “vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas”. Três anos depois, a Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro abriu uma CPI sobre esterilização de mulheres no estado, e Aguinaga foi convidado a depor. Ainda em 1991, isolado e sem apoio financeiro, o CPAIMC fechou suas portas.

Omissão do Estado
Nas investigações parlamentares foi levantada a suspeita de que as atividades do CPAIMC se orientavam por propósitos eugenistas, dados os indícios de que a “esterilização em massa” visava prioritariamente às mulheres negras. A CPI estadual recomendou, em seu relatório final, a abertura de inquérito parlamentar em âmbito federal, que foi solicitada pela deputada federal Benedita da Silva e pelo senador Eduardo Suplicy, ambos do PT. Benedita, identificada com o feminismo e o movimento negro, assumiu a presidência da comissão mista. Disputas acerca de metodologia estatística sobre a proporção de mulheres negras entre as esterilizadas deixaram em aberto as conclusões relacionadas às acusações de eugenia. O relatório final da CPMI constatou alta incidência (44%) de esterilizações cirúrgicas “em detrimento de alternativas contraceptivas menos invasivas” e apontou “omissão do governo brasileiro” por não investigar as iniciativas privadas de controle da natalidade.

Margareth Arilha, que esteve presente a algumas das etapas cruciais de mudança de perspectivas, como a Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento, em 1994 no Cairo, localiza as origens da construção do conceito de planejamento familiar como direito individual no crescimento dos movimentos feministas no Brasil no final dos anos 1970, período de distensão da ditadura militar. “Muitas feministas voltaram do exílio trazendo um debate em torno da máxima ‘nosso corpo nos pertence’”, diz Margareth. Outro marco importante, segundo a pesquisadora, foi a criação do Conselho da Condição Feminina em São Paulo, na gestão de André Franco Montoro, o primeiro governador eleito por voto direto, em 1982, desde a instalação do regime militar.

Duas conferências internacionais sobre população são destacadas como momentos históricos por Cristiane da Silva Cabral, docente do Departamento de Saúde Materno-Infantil da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP) e colaboradora do Nepo. “A conferência de Bucareste, em 1974, concluiu que o melhor contraceptivo é o desenvolvimento, e a do Cairo, em 1994, definiu a reprodução como direito humano fundamental”, diz ela.

A Constituição de 1988 e a Lei de Planejamento Familiar de 1996 seriam consolidações dessas iniciativas. Para a aprovação da lei, houve uma negociação com os setores mais conservadores do Congresso e da sociedade, o que resultou em restrições ao acesso à esterilização cirúrgica, entre elas a condição de que a mulher tenha mais de 25 anos ou dois filhos e a necessidade da autorização do cônjuge. “Mesmo assim, a lei é satisfatória ao garantir acesso amplo e legal a métodos contraceptivos”, afirma Cristiane.

Artigo científico
ALVES, A. M. A trajetória do Centro de Pesquisas e Atenção Integrada à Mulher e à Criança (1975-1992). Século XXI, Revista de Ciências Sociais. v. 4, p. 180-216. jul./dez. 2014.

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