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FOTÔNICA

Um laser nada convencional

Luz de intensidade variável revela conexões inesperadas entre áreas da física e promete imagens microscópicas mais nítidas

Laser convencional (verde) incide sobre material que o converte em laser aleatório (vermelho), capaz de se propagar em várias direções

Diederik Wiersma / LENS – FlorençaLaser convencional (verde) incide sobre material que o converte em laser aleatório (vermelho), capaz de se propagar em várias direçõesDiederik Wiersma / LENS – Florença

O físico Cid Araújo, da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), gosta de dizer em suas palestras que realiza experiências astrofísicas bem em cima de sua bancada de trabalho. Nas mesas de seu laboratório de óptica, ele e seus colegas exploram as propriedades de alguns materiais fazendo-os emitir uma forma de laser diferente da convencional. São os chamados lasers aleatórios, que podem ser emitidos naturalmente por objetos no espaço interestelar e cuja produção começa agora a ser mais bem compreendida por causa de resultados recentes obtidos por grupos como o da UFPE.

O laser convencional é gerado ao se aprisionar um feixe de luz entre dois espelhos e fazê-lo atravessar um cristal que emite luz com eficiência. O vaivém da luz entre os espelhos estimula os átomos do cristal a emitirem ainda mais luz (ver infográfico). Ao escapar por um dos espelhos, que é semitransparente, essa luz sai com grande intensidade. Suas ondas eletromagnéticas oscilam em sincronia, na mesma frequência, e se propagam na mesma direção. É uma luz completamente ordenada, bem diferente da emitida por uma lâmpada incandescente, cujas ondas apresentam diferentes frequências e viajam em diferentes direções.

Já a produção do laser aleatório não utiliza espelhos. Para criá-lo, os pesquisadores da UFPE usam um laser comum para iluminar um material com propriedades ópticas especiais, em geral um pó ou coloide contendo partículas capazes de absorver, emitir e espalhar luz de maneira desordenada. Entre os materiais usados estão nanopartículas contendo íons de neodímio ou óxido de titânio, como as preparadas e caracterizadas pelo físico Lauro Maia, da Universidade Federal de Goiás, integrante da equipe da UFPE. Iluminadas por um laser comum, essas nanopartículas, misturadas a outros materiais no estado sólido ou líquido, podem gerar laser aleatório.

“O laser aleatório é uma fonte de luz com propriedades intermediárias entre as de uma lâmpada incandescente, cujas ondas eletromagnéticas são emitidas ao acaso, e um laser convencional, cujas ondas estão em sincronia e condensadas em um feixe unidirecional”, explica Araújo.

No laser convencional, as ondulações da luz são ordenadas e adquirem um comportamento extremamente bem organizado. Já no laser aleatório, a radiação oscila de maneira desordenada, como em uma das raras fontes naturais de laser já descobertas no Universo: as nuvens ao redor da estrela gigante Eta Carinae, situada a 7.500 anos-luz da Terra. Além da semelhança com as emissões de laser do meio interestelar, os lasers aleatórios acabam de revelar similaridades inesperadas com fenômenos naturais totalmente distintos.

Uma das propriedades dos lasers aleatórios é que, cada vez que um pulso é disparado, sua intensidade varia ao acaso. Em um artigo publicado em agosto deste ano na revista Optics Letters e em outro publicado em junho na Scientific Reports, a equipe coordenada por Araújo e pelos físicos Anderson Gomes e Ernesto Raposo, ambos da UFPE, mostrou como explicar e caracterizar as propriedades estatísticas dessas intensidades aleatórias a partir das propriedades dos materiais emissores de laser.

Raposo, que é físico teórico, explica que em geral a intensidade dos diferentes tipos de luz varia seguindo dois padrões: um regido pela chamada distribuição estatística gaussiana e outro pela distribuição estatística de Lévy. No primeiro caso, as flutuações estatísticas são bem menos intensas do que no segundo. É o que acontece com a intensidade da luz comum e a do laser convencional, que apresentam flutuações gaussianas. Já a intensidade dos lasers aleatórios também segue a estatística gaussiana, mas, sob certas condições, ela pode se ampliar e se comportar segundo a estatística de Lévy.

“Eles encontraram uma maneira simples de investigar a transição da estatística gaussiana, mais comum, para a do tipo de Lévy nas flutuações”, diz o físico Diederik Wiersma, especialista em emissões de laser aleatório da Universidade de Florença, na Itália.

A distribuição estatística de Lévy é a mesma que Raposo e outros colegas já haviam mostrado estar por trás da flutuação nas distâncias que aves pescadoras, como o albatroz, percorrem em suas excursões em busca de alimento. Em um artigo publicado na Nature, em 1999, eles haviam demonstrado que o albatroz voa em direções aleatórias, na maioria das vezes não indo muito longe de seu ponto de partida, quando sai atrás de peixes. De vez em quando, porém, ele percorre distâncias bem maiores.

Laser_247Nos experimentos realizados na UFPE, os pesquisadores verificaram que o aumento repentino na variação de intensidade do laser depende de uma súbita e complexa mudança no comportamento óptico influenciado pelas nanopartículas. À medida que a luz atravessa o material, as ondas eletromagnéticas interagem e se somam em alguns trechos e se aniquilam em outros. Quando as flutuações aumentam, as propriedades das ondas eletromagnéticas mudam de um padrão mais ordenado para outro, mais desordenado, que lembra aos físicos a estrutura microscópica de certos materiais, como o vidro.

Essa mudança segue um comportamento previsto por um modelo matemático conhecido como teoria dos vidros de spin, usado para entender diversos fenômenos que envolvem muitas partes interagindo entre si de forma complexa: do comportamento coletivo dos átomos em um material magnético desordenado à dinâmica das redes de neurônios em um cérebro. “Uma das vantagens dos lasers aleatórios é que eles servem de plataforma para estudar problemas multidisciplinares”, comenta o físico Anderson Gomes, que participou dos experimentos ao lado de André Moura, físico atualmente na Universidade Federal de Alagoas e de doutorandos do Departamento de Física da UFPE.

A conexão das flutuações na intensidade do laser com a teoria dos vidros de spin investigada pelos pesquisadores da UFPE pode ainda ajudar a desenvolver fontes de laser com a aleatoriedade variável, que poderia ser adequada a diferentes usos tecnológicos. Uma possível aplicação é na transmissão de dados por fibra óptica. Em 2007, Araújo, Gomes e colaboradores preencheram fibras ópticas com um líquido capaz de emitir radiação laser aleatória. A fibra preenchida transmitiu sinais luminosos com eficiência 100 vezes maior que a convencional.

Os físicos da UFPE e de outras instituições também investigam as propriedades do laser aleatório por sua potencial aplicação na detecção de substâncias químicas ou em diagnósticos médicos. Em 2004, o grupo do físico Randal Polson, da Universidade de Utah, nos Estados Unidos, verificou que tecidos contendo células cancerígenas tingidos com corantes especiais, quando iluminados por um laser convencional, emitem uma luz laser mais aleatória do que a produzida por tecidos de células sadias. Mais recentemente, em 2012, um estudo coordenado pela física Hui Cao, da Universidade Yale, nos Estados Unidos, demonstrou que objetos microscópicos iluminados com laser aleatório produzem imagens mais nítidas (com resolução espacial maior) do que as de um objeto iluminado por led ou laser convencional. Isso porque, ao incidir sobre um objeto, o laser convencional cria ilusões de óptica na forma de uma nuvem de pontos luminosos que embaçam a imagem captada por uma câmera. A desordem das ondas do laser aleatório atenua esse efeito. Em princípio, explica Araújo, quanto mais as amplitudes do laser variarem aleatoriamente, mais nítida será a imagem gerada.

A pesquisa com lasers aleatórios deslanchou em 1994, quando físicos da Universidade Brown, Estados Unidos, reportaram na Nature a criação do primeiro laser aleatório de alta eficiência. Gomes participou desse estudo, que demonstrou pela primeira vez de modo inequívoco a possibilidade de gerar laser a partir da emissão e do espalhamento desordenado de luz no interior de um material, como proposto em 1966 por físicos russos liderados por Nicolay Basov, um dos ganhadores do Prêmio Nobel de Física de 1964 pela invenção do laser convencional.

Um dos colegas de Basov, o físico Vladilen Letokhov, propôs logo em seguida que a emissão de laser aleatório poderia explicar por que a luz emitida em certas frequências por algumas nuvens interestelares era mais intensa do que o esperado teoricamente. A teoria ajudou o astrônomo brasileiro Augusto Damineli, da Universidade de São Paulo, a explicar a origem de algumas das emissões de luz infravermelha vindas de uma região nebulosa próxima à estrela Eta Carinae. Essas emissões vez ou outra se apagam, um fenômeno que a teoria dos lasers ajuda a entender. Damineli e Letokhov trabalharam nesse problema juntos em 2005.

Artigos científicos
GOMES, A. S. L. et al. Observation of Lévy distribution and replica symmetry breaking in random lasers from a single set of measurements. Scientific Reports. 13 jun. 2016.
PINCHEIRA, P. I. R. et al. Observation of photonic paramagnetic to spin-glass transition in a specially designed TiO2 particle-based dye-colloidal random laser. Optics Letters. v. 41 (15). 1º ago. 2016.

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