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Oftalmologia

Olho no celular

Aparelhos portáteis para exames oculares podem ajudar em diagnósticos feitos a distância

Podcast: Flávio Pascoal Vieira

 
     
Existem no mundo 45 milhões de cegos, sendo 1,2 milhão no Brasil. Cerca de 75% dos casos poderiam ser tratados ou evitados se toda a população recebesse atendimento que permitisse diagnósticos e tratamentos. Essa dificuldade pode ser minimizada com dispositivos portáteis acoplados a smartphones, facilitando o acesso das populações mais pobres e desatendidas a exames oculares. Dois dispositivos desse tipo foram desenvolvidos por empresas formadas por pesquisadores brasileiros recém-saídos da universidade. Uma delas foi criada em São Carlos (SP) e outra em Boston, nos Estados Unidos.

A Phelcom foi fundada por três ex-alunos da Universidade de São Paulo (USP), em São Carlos, e desenvolve há dois anos o Smart Retinal Camera (SRC), um retinógrafo portátil que é conectado e controlado por meio de um smartphone. Ele é capaz de fazer fotos do fundo do olho em alta resolução. “O equipamento é composto por um sistema óptico e eletrônico que se acopla ao celular, e um aplicativo que realiza todo o seu controle”, explica o engenheiro da computação José Augusto Stuchi, um dos autores do projeto e cofundador da empresa. Os retinógrafos são equipamentos oftalmológicos utilizados para capturar imagens do fundo do olho, para diagnóstico e acompanhamento de doenças da retina.

Fila no Peru, para uso do kit de aparelhos portáteis da EyeNetra

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O SRC está sendo projetado para realizar três tipos de exames: retinografia colorida (color) e anerítra (red-free) e angiografia fluoresceínica (FA). Com os dois primeiros é possível verificar o fundo do olho, produzindo imagens em alta resolução de alterações na retina e no nervo ótico, fundamentais para acompanhamento médico de lesões ou doenças degenerativas. As angiografias são realizadas depois de uma injeção endovenosa (geralmente por meio da punção de uma veia do braço ou do dorso da mão) de um produto de contraste chamado fluoresceína. “Trata-se de uma molécula não tóxica e altamente fluorescente”, explica Diego Lencione, outro sócio-fundador da Phelcom, junto com Stuchi e Flavio Vieira. “Com isso, é possível estudar as características do fluxo sanguíneo nos vasos da retina e da coroide [membrana atrás da retina], registrar detalhes da circulação local e avaliar sua integridade funcional.”

Por meio desses três tipos de exames é possível diagnosticar e acompanhar a evolução de doenças como retinopatia diabética, glaucoma, degenerescência macular relacionada à idade, também conhecida como DMRI, retinoblastoma e outros problemas oculares, como descolamento de retina, edema e buraco macular. Normalmente, para esses exames é necessário o uso dos tradicionais retinógrafos, equipamentos grandes e caros. “Esses aparelhos são viáveis economicamente apenas em grande escala, em centros de especialidade em oftalmologia, que só existem nas grandes cidades”, diz Stuchi. “Por isso, nosso SRC pode substituí-los com algumas vantagens.” Entre elas, ele cita a possibilidade de atendimentos em municípios sem serviço de oftalmologia, com a consequente redução de custos de deslocamento de pacientes.

...e consultas na África

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Stuchi diz ainda que o SRC também facilita testes em crianças, pacientes acamados ou com mobilidade reduzida e idosos. “Um dos diferenciais de nosso dispositivo é a capacidade de gerar imagens panorâmicas em alta resolução da retina, facilitando o diagnóstico”, acrescenta Stuchi. “Além disso, é possível realizar remotamente laudos, avaliações e estudos de caso, evitando que o médico especialista tenha que se deslocar, porque o exame pode ser feito por um técnico.” Como desvantagens, ele cita o fato de o SRC ser um produto novo no mercado médico, o que pode gerar resistências à sua aquisição, e a concorrência indireta com marcas tradicionais e pioneiras no mercado de oftalmologia.

Ele conta que uma das motivações do projeto do SRC surgiu da vivência pessoal de um dos sócios, Lencione, que tem um irmão com problemas visuais causados por distúrbios da retina. Para colocar a ideia em prática, eles fizeram uma pesquisa de mercado, encontraram uma oportunidade de negócio e partiram para o desenvolvimento técnico do projeto. No fim de 2015, foi concluída a prova de conceito do SRC. “Isso criou condições para pleitear um financiamento do Pipe [Programa Fapesp Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas]”, diz Stuchi. “O resultado é que nossa ideia se transformou em algo muito maior: saímos de nossos empregos e fundamos a Phelcom em abril de 2016. Atualmente estamos desenvolvendo o Produto Mínimo Viável (MVP) do SRC para iniciar os primeiros testes clínicos.”

Aparelho mostra qual é o grau dos óculos e...

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A expectativa é de que o produto chegue ao mercado em 2018, depois de receber a certificação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). O preço do sistema poderá ser cerca de 10 vezes menor do que um retinógrafo tradicional, que é maior, difícil de transportar e possui outras funcionalidades. Dependendo da marca e do modelo, pode custar mais de R$ 100 mil.

Para Paulo Schor, professor do Departamento de Oftalmologia da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), dispositivos que usam smartphones para a realização de exames oculares não são o futuro, mas o presente. “Eles são acessíveis, ou seja, fáceis de operar e baratos”, diz. “Por isso, são uma tendência tecnológica mundial contra a qual não é possível brigar.” Apesar disso, ele diz que há uma resistência natural muito grande da sociedade e dos próprios oftalmologistas em relação a esses equipamentos. “Isso sempre ocorre em relação ao novo, àquilo que mexe com o que estamos acostumados”, explica. “Hoje o padrão é o paciente ir ao consultório ou clínica realizar os exames. Mas a tendência de agora em diante é de que eles próprios façam os testes e levem os resultados para um médico avaliar.”

... outro faz teste de visão indicando o grau de miopia, astigmatismo ou hipermetropia

eyenetra… outro faz teste de visão indicando o grau de miopia, astigmatismo ou hipermetropiaeyenetra

Schor aponta que os dispositivos de celulares não têm o mesmo desempenho de um retinógrafo tradicional. “Na versão de mesa, há funcionalidades específicas como filtros, usados para fazer angiofluoresceinografia, exame que detecta pequenos vazamentos em artérias e veias ou edemas intrarretinianos”, explica. “Aos aparelhos tradicionais também é possível acoplar outros equipamentos que não são o foco da tecnologia móvel, como, por exemplo, tomógrafos de coerência óptica (OCT, na sigla em inglês), que avaliam em profundidade as estruturas da retina até a caroide.” Mesmo assim, ele não descarta os dispositivos de smartphones. “Depende do que queremos”, diz. “Se eles tiverem um desempenho 50% pior, mas forem 400% mais baratos e chegarem a um número 1.000% maior de pessoas, então são melhores. Eles podem fazer a triagem de um número muito maior de pacientes do que os equipamentos tradicionais, indicando para exames mais detalhados apenas aqueles que realmente precisam disso.”

Um indicador de que o SRC é um equipamento promissor é o primeiro lugar que conquistou, em setembro, na etapa brasileira do Falling Walls Lab, um concurso internacional realizado pela entidade sem fins lucrativos The Falling Walls Foundation, da Alemanha. São premiados projetos inovadores apresentados por estudantes, pesquisadores e profissionais.

Olho_249_INFORealidade virtual
Os negócios da EyeNetra, fundada pelo cientista da computação catarinense Vitor Pamplona, em 2011, em Boston, nos Estados Unidos, estão mais adiantados. Ele desenvolveu um kit com quatro produtos, dois dos quais para celulares (ver Pesquisa FAPESP nº 184). A aplicação é diferente em relação ao SRC da Phelcom. “O primeiro deles é um teste de visão para a prescrição de óculos”, explica. “É um jogo, instalado no celular, que usa realidade virtual, para determinar o grau de miopia, astigmatismo e hipermetropia, prescrevendo os óculos adequados. As atividades do game duram de dois a três minutos. Ao final, haverá a prescrição dos óculos, que precisa ser avalizada por um oftalmologista.”

O segundo produto é destinado a quem já usa óculos e quer saber se o que está usando é o indicado. O terceiro é um aparelho com um conjunto de lentes físicas para verificar se os resultados dos primeiros testes estão corretos. “Com esses três produtos, a pessoa pode verificar como seria sua visão com as correções prescritas”, explica Pamplona. O quarto produto é um conjunto de softwares que coletam e armazenam as informações dos três anteriores e as disponibilizam para os médicos. Até agora, a EyeNetra já vendeu cerca de 2.700 kits, ao preço de US$ 3 mil cada, para 57 países. Pamplona conta que a empresa foi fundada por ele, pelo indiano Ramesh Raskar, seu então professor no Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), e por David Schafran, pesquisador da mesma instituição.

Na Inglaterra, o pesquisador e médico oftalmologista Andrew Bastawrous, da Escola de Higiene e Medicina Tropical de Londres, desenvolveu o Portable Eye Examination Kit (kit portátil de exame de olhos), mais conhecido como Peek Retina. Com o mesmo próposito em relação ao SRC da Phelcom, esse dispositivo usa a câmera de um smartphone para realizar testes oculares, que podem detectar catarata ou doenças da retina. O kit realiza exames em qualquer lugar e as informações são enviadas para um médico, por e-mail ou mensagem pelo celular, para que ele faça o diagnóstico e prescreva o tratamento. O dispositivo está sendo testado em alguns países da África.

Projeto
Equipamento portátil para diagnóstico em retina controlado por smartphone (nº 2016/00985-5); Modalidade Programa Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas (Pipe); Pesquisador responsável Flavio Pascoal Vieira (Phelcom); Investimento R$ 225.351,29 e US$ 29.389,58.

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