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Eduardo Franco

Eduardo Franco: Um pé na ciência, outro no ativismo

Epidemiologista concilia atuação em campanhas de vacinação contra o HPV e uma intensa atividade científica sobre câncer de colo de útero

026_Entrevista_EduardoFranco_252_01Léo Ramos ChavesEm 2009, o epidemiologista brasileiro Eduardo Franco entrou em um debate público sobre a necessidade de vacinar meninas contra o vírus do papiloma humano (HPV), causador do câncer de colo de útero, também em escolas católicas da cidade de Calgary, na província de Alberta, no Canadá – nas protestantes não houve problemas. Um ano antes o bispo local havia baixado um decreto eclesiástico proibindo a vacinação, alegando que essa medida incentivaria a promiscuidade sexual. Franco decidiu entrar na briga depois de uma colega insistir para ele defender publicamente seus argumentos em vez de apenas apresentar suas ideias e estudos em artigos científicos. Por fim, a pressão de pesquisadores, funcionários de órgãos de saúde e dos pais das estudantes levou o bispo a retirar a proibição. Dois anos depois, Franco criticou as estratégias brasileiras de prevenção. Desde o mês passado, a vacinação contra HPV faz parte do calendário nacional e inclui inicialmente meninos de 12 e 13 anos.

Franco e Luisa Villa – então no Instituto Ludwig de Pesquisas sobre o Câncer, atualmente no Instituto do Câncer do Estado de São Paulo (Icesp) – fizeram um estudo pioneiro em São Paulo com 2.528 mulheres, acompanhadas durante 10 anos, que mostrou uma associação clara entre a infecção persistente por HPV e o câncer de colo de útero. Realizado nos anos 1980 e 1990, o trabalho resultou em 46 artigos publicados desde 1999; um dos mais recentes, de março de 2016 na BMC Infectious Diseases, mostra como a inflamação do útero poderia aumentar o risco de infecção por HPV.

Franco é chefe do Departamento de Oncologia e diretor da Divisão de Epidemiologia do Câncer da Universidade McGill, em Montreal, no Canadá, onde vive desde 1989. Ele veio a São Paulo em novembro de 2016 para uma reunião do conselho consultivo científico do A.C.Camargo Cancer Center e concedeu a primeira parte desta entrevista, que continuou depois via skype.

Casado três vezes, com quatro filhos e três netos, Franco se lembrou de pessoas que considera como exemplos de engajamento, liderança e generosidade e foram importantes em sua formação, como os médicos Ricardo Brentani (1937-2011; ver Pesquisa FAPESP nº 190), Sidney Arcifa (1938-2015), Antonio Carlos Corsini (1946-1984) e Humberto Torloni (1924-; ver Pesquisa FAPESP nº 216). Ele contou também sobre suas pesquisas em andamento, como a avaliação de um gel produzido a partir de carragena, um polissacarídeo extraído de algas. Se funcionar como esperado, poderia se tornar uma estratégia de baixo custo e amplo alcance contra as infecções causadas pelo HPV que podem levar ao câncer de colo de útero.

Idade
63 anos
Especialidade
Epidemiologia e prevenção do câncer
Formação
Graduação em biologia na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) em 1975; mestrado e doutorado na Universidade da Carolina do Norte em Chapel Hill, Estados Unidos (1981-1984)
Instituição
Universidade McGill, em Montreal, Canadá
Produção científica
441 artigos (índice h, 71), 2 livros sobre epidemiologia do câncer, 59 capítulos de livros, 73 orientações de estudantes de pós-graduação e 28 supervisões de pós-doutorado

Como você passou de um cientista fechado no mundo da ciência a um militante pela prevenção do câncer de colo de útero?
Sempre digo para os alunos que a ciência sozinha não é suficiente para mudar nada. Temos de fazer advocacy e defender nosso trabalho diante dos gestores de saúde se de fato quisermos mudar alguma coisa. Mas durante muitos anos acreditei que o trabalho de cientista deveria estar dissociado do papel de advogado dos resultados, que caberia a outras pessoas. Eu achava que perderia a idoneidade científica se fosse o defensor de meu próprio trabalho. Quem mudou minha visão sobre o papel do cientista foi uma colega bioeticista da Universidade de Calgary, Juliet Guichon, em 2009. Ela pediu ajuda porque o bispo da província de Alberta, Frederick Henry, que liderava o Comitê Distrital das Escolas Católicas de Calgary, tinha feito um decreto proibindo as enfermeiras do sistema público de saúde de vacinar as meninas das escolas católicas contra o vírus HPV.

Por quê?
Henry, como bispo com autoridade sobre as escolas públicas católicas, alegou que a vacina contra o HPV iria causar promiscuidade e que a melhor maneira de não causar a infecção pelo HPV seria simplesmente não ter relações sexuais antes do casamento. Dei alguns conselhos para Juliet, mas sem trabalhar com ela. Um dia, ao telefone, ela me deu uma bronca: “Pare de me dar conhecimento e aja um pouco! Você tem de enfrentar as feras comigo!”.

O que você fez?
Escrevi um artigo com ela e com Ian Mitchell, também da Universidade de Calgary, que saiu no jornal Calgary Herald, e participei de um programa de rádio com o bispo. Ele estava no estúdio e eu, por causa de outros compromissos, falei por telefone de um hotel em Banff, a uns 100 quilômetros de Calgary. Argumentei que, se o bispo proibisse as meninas de ser vacinadas, algumas poderiam desenvolver câncer de colo de útero 20 anos depois. Se soubessem que a proibição contra a vacinação tinha sido a causa da doença delas, poderiam processar judicialmente os sucessores do bispo. Ele ficou muito irritado e disse que a província de Quebec, onde eu moro, não deveria se intrometer nos assuntos de Calgary. Depois pedi para Juliet escrever um artigo para a revista Preventive Medicine, da qual sou editor. Ela também foi às escolas e conversou com os pais, que se convenceram de que o bispo era apenas uma autoridade eclesiástica e não tinha nada a ver com saúde pública. Juliet e outros pesquisadores da Universidade de Calgary também promoveram debates públicos, fizeram uma carta com a assinatura de mais de 50 médicos enviada ao comitê liderado pelo bispo e publicaram artigos em jornais, que por fim também estavam defendendo a retirada da proibição à vacinação. O bispo, com toda essa pressão, cancelou a proibição e a vacinação nas escolas protestantes e católicas teve uma distribuição equilibrada.

Como foram suas críticas dirigidas ao Brasil?
Durante um congresso no Rio de Janeiro, em 2011, argumentei que a política de combate ao câncer de colo de útero adotada pelo Ministério da Saúde estava completamente errada. O ministério alegou que não adotaria a vacinação contra HPV por ser muito cara. A premissa era falsa porque, por meio de uma compra centralizada, o governo não iria pagar o custo privado da vacina. O ministério também dizia que não havia provas de que essa estratégia de prevenção poderia ser eficiente. De fato, nenhum ensaio clínico realizado em vários países tinha sido longo o suficiente para demonstrar essa redução, porque o câncer de útero demora 20 anos até começar a aparecer, mas demonstravam que a vacina previne a infecção e a lesão precursora do câncer. Depois o governo mudou a estratégia e adotou a vacinação contra HPV. Começou bem, atingindo mais de 90% das meninas na primeira campanha com a primeira dose, porque a vacinação foi feita nas escolas. Depois resolveram dar a segunda dose nos postos de saúde, imagino que para reduzir os custos, e a cobertura caiu muito.

Como é a prevenção no Canadá?
A vacinação começou em 2007, logo após a vacina ser aprovada. A equipe de saúde da província de Quebec adotou a estratégia de vacinar as meninas mais jovens, com 9 a 10 anos, na pré-adolêscencia e não na adolescência, acreditando que conseguiria dar a mesma proteção com duas doses em vez de três, e deu certo. A maior parte das províncias adotou a vacinação também para meninos usando a mesma política de vacinação escolar, o que garante uma alta cobertura, de 80% ou mais, com duas doses.

Em 2011, você também criticou o sistema público de saúde no Brasil por manter o método citológico, o Papanicolau, para detectar casos novos de câncer de colo de útero. Por quê?
O Papanicolau, apesar de ter feito um inegável bem para a humanidade, é hoje obsoleto e pouco preciso, em comparação com os métodos moleculares, por meio de PCR [reação em cadeia de polimerase], que identifica o DNA do vírus. O Papanicolau apresenta um número alto de resultados falsos negativos. As mulheres têm de fazer o teste todos os anos exatamente porque há muito falso negativo, para aumentar as chances de encontrar alguma lesão indicativa de câncer de colo de útero. Pelo PCR não é necessário fazer os testes todos os anos.

Franco no laboratório dos CDC, em Atlanta, Estados Unidos, em 1983

arquivo pessoal Franco no laboratório dos CDC, em Atlanta, Estados Unidos, em 1983arquivo pessoal

Por que você fez a graduação em biologia?
Eu queria ser cientista e achava que fazer biologia seria a melhor maneira. Para satisfazer meus pais, fiz vestibular para medicina, passei em Santos, mas bati o pé e entrei em biologia na Unicamp em 1972. Meus pais queriam que eu entrasse na Unicamp para facilitar a vida deles, porque me manter fora de Campinas, onde nasci e morávamos, seria bem difícil. Em 1973 o médico hematologista Sidney Arcifa me ofereceu um estágio no laboratório clínico PrevLab, que tinha concessão para fazer os exames laboratoriais de um hospital de crianças, o Álvaro Ribeiro, e do Centro Médico de Campinas. Um ano depois eu estava empregado como plantonista noturno e estudava de dia. Havia uma epidemia de meningite e eu corria de um hospital para outro com a kombi da PrevLab. Mal chegava e olhava a amostra de líquor para examinar e já sabia que a situação da criança internada era grave. O líquor normal é transparente como água, e o que via era leitoso e purulento. Eu fazia os testes, corria para o hospital com o laudo para o médico e quando chegava a criança já tinha morrido. Foi um período muito triste, morreram muitas crianças.

E depois?
Terminei a graduação em 1975 e comecei o mestrado em ecologia, mas tinha de trabalhar à noite como plantonista. Já era casado e minha mulher me fez escolher: ou estuda ou trabalha. Abandonei o mestrado, continuei o plantão e comecei a trabalhar durante o dia. A concessão do laboratório do Centro Médico passou para o médico Vitor Ramos de Souza e fui promovido para diretor-assistente. Vitor me permitiu voltar a estudar na Unicamp e comecei um estágio com o imunologista Antonio Carlos Corsini. Com ele, durante três dias da semana, eu fazia experimentos para estudar a evolução da infecção pelo Toxoplasma gondii em camundongos e desenvolver imunoensaios [técnica para detecção de antígenos ou anticorpos], e nos outros dias aplicava o que aprendia no laboratório do Centro Médico. O Toxoplasma foi importante em minha vida.

Por quê?
No microscópio eu via uma fluorescência polar, porque o Toxoplasma tem uma morfologia de meia lua. Comecei a ler sobre fluorescência polar e encontrei os trabalhos de Alexander Sulzer, pesquisador dos CDC [Centros de Controle e Prevenção de Doenças] em Atlanta, nos Estados Unidos. Com a ajuda de Vitor, já que eu não escrevia bem em inglês, escrevi para Sulzer, que respondeu, muito simpático, fez sugestões de experimentos e deu conselhos para minha carreira. Trocamos cartas por vários anos, até 1979. Um dia perguntei sobre um possível estágio e ele me convidou para ser pesquisador nos CDC. Já tinha casado de novo, minha esposa era médica e também queria passar um tempo no exterior. Começamos então a economizar dinheiro para vivermos nos Estados Unidos. Para não pagar aluguel, aceitei o convite de meu pai para morar em cima da loja dele, de acessórios para automóveis, num bairro industrial de Campinas. Depois de quase três anos, economizamos US$ 14 mil, uma fortuna, o que nos permitiria sobreviver por pelo menos um ano nos Estados Unidos. E no dia 3 de março de 1980 fomos para Atlanta.

Como foi a vida lá?
Fiquei imerso nos CDC e minha mulher no hospital da Universidade de Emory. Nessa época os CDC tinha acabado de fazer estudos importantes, entre eles a identificação da bactéria responsável pela doença dos legionários. Começamos a fazer muitos testes sorológicos para Toxoplasma em amostras de sangue de homens homossexuais de São Francisco. Era o início da Aids, que ninguém sabia o que poderia causar. Aprendi muito sobre doenças infecciosas e surgiu a oportunidade de fazer mestrado na Universidade da Carolina do Norte. O problema é que o dinheiro estava acabando.

Não tinha bolsa?
Não tinha conseguido nenhuma bolsa no Brasil porque eu era um pesquisador independente em um laboratório clínico particular, sem vínculo com universidade. Mas tive sorte. Fui ao congresso de medicina tropical de 1980 lá mesmo em Atlanta com meu colega José Mauro Peralta, que na época era estagiário dos CDC, como eu, e hoje é professor na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Lá no congresso ele encontrou Renato Gusmão, um médico goiano que ele conhecia e me ajudou muito. Esse médico teve compaixão de minha situação, terminando o estágio, sem ter como fazer mestrado. Ele disse que eu precisava de uma bolsa para me manter e propôs: “Vou te apresentar ao dr. Paulo Machado”. Era Paulo de Almeida Machado, que trabalhava com medicina tropical e parasitologia, tinha sido ministro da Saúde [de 1974 a 1979] e estava lá. Ele foi muito simpático, me ouviu e orientou: “Escreva seu plano de trabalho, mande para mim e faça sua inscrição normal no CNPq [Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico]”. Sulzer me ajudou a preparar o dossiê e consegui uma bolsa do CNPq para o mestrado na Universidade da Carolina do Norte. Ainda me lembro do dia em que coloquei a mudança em um trailer atrás do carro e fui muito contente com minha mulher para Chapel Hill, a 500 quilômetros de Atlanta, sabendo que estava começando uma nova etapa de minha vida. De maio a setembro eu voltava aos CDC para fazer os experimentos. Logo depois fiz o doutorado sobre malária, que terminei em julho de 1984.

Já era hora de voltar ao Brasil?
Eu tinha recebido uma proposta para trabalhar no Instituto de Medicina Tropical de São Paulo e outra para um pós-doutorado no Walter Reed, um instituto de pesquisa do Exército dos Estados Unidos, mas não fiz nada disso. Eu estava em um congresso no Texas, em dezembro de 1983, quando recebi um telefonema de Sulzer dizendo que um funcionário do Ministério da Saúde havia ligado querendo saber sobre um Eduardo Franco que fazia pesquisa com câncer. Como eu não entendia nada sobre câncer, achei que devia ter sido um engano. Mas depois fui atrás e houve de fato um telefonema, que veio de uma solicitação de Ricardo Brentani. Ele procurava um epidemiologista para trabalhar na unidade do Instituto Ludwig de Pesquisa sobre o Câncer, recém-inaugurada em São Paulo, da qual ele era o primeiro diretor. Humberto Torloni, que havia contratado Brentani, tinha pedido ao ministério indicações de pesquisadores com treinamento em epidemiologia. Deram meu nome por causa da bolsa do CNPq. Conversei de Atlanta com Torloni e contei que não entendia nada de câncer. Ele disse: “Não tem problema. Você trabalha com doenças infecciosas. Sabia que um tipo de câncer, o de colo de útero, pode ser causado por um vírus?”. Respondi: “Não faço a menor ideia”. Mas queriam me entrevistar, pagaram a passagem e fui, no começo de 1984, pensando que aí veriam que eu não era a pessoa que procuravam. Dei um seminário sobre doenças infecciosas para os chefes das unidades e notei que alguns cochilavam enquanto falava, aquilo devia estar muito chato para eles. Voltei para Atlanta achando que não ia dar em nada, mas Brentani me ligou para fazer uma oferta de emprego. “Gostei de sua seriedade, experiência e ambição. Tenho um bom olfato para escolher gente e é você quem eu quero”, ele disse. O salário era muito bom e o contrato incluía uma cláusula, também difícil de ser recusada, de que eu teria de me submeter a um pós-doutorado fora do Brasil, pago por eles, para aprender sobre câncer. Terminei o doutorado e comecei os estágios, o primeiro na Universidade do Estado da Lousiana, em Nova Orleans, o segundo no Instituto Nacional do Câncer, em Bethesda, também nos Estados Unidos, e o terceiro na Agência Internacional de Pesquisa em Câncer em Lion, na França. Voltei para São Paulo com minha mulher em novembro de 1984 e comecei a planejar o que fazer.

Ricardo Brentani, Lourdes Marques e Franco no Instituto Ludwig de São Paulo em 1990

arquivo pessoal Ricardo Brentani, Lourdes Marques e Franco no Instituto Ludwig de São Paulo em 1990arquivo pessoal

Como se tornou especialista em HPV?
Trabalhei em câncer de cabeça e pescoço e o infantil, mas o de colo de útero era um problema especialmente sério. Trabalhei com Manuel Carvalho, chefe do registro de câncer de Recife, e fiquei assombrado com a incidência no Nordeste, mais de 100 casos novos para cada 100 mil mulheres por ano. O risco acumulado durante a vida era de 10% de qualquer mulher nascida em Recife desenvolver câncer de colo de útero. Luisa Villa, que já trabalhava com vírus no Luwig, e eu fizemos uma série de estudos para ver a prevalência de mulheres com HPV em João Pessoa, Goiânia e Recife. Não havia ainda nenhuma certeza de que esse vírus causasse o câncer, apenas suspeita. Ainda se pensava que o vírus do herpes é que poderia causar esse tipo de câncer. O estudo em várias capitais do Brasil só foi possível porque Torloni nos apresentava aos diretores de hospitas das cidades que visitávamos. Em 1988, depois de mostrar os resultados preliminares em Montreal, me contaram de uma vaga na Universidade de Quebec, minha mulher gostou dessa possibilidade porque não gostava de viver em São Paulo, me inscrevi, fui aceito e nos mudamos, mas continuei a colaboração com Luisa Villa, que tem sido uma colega espetacular até hoje. Planejamos um estudo para ver a persistência da infecção por HPV ao longo dos anos, inicialmente com recursos apenas do Ludwig e depois dos NIH [Institutos Nacionais de Saúde dos Estados Unidos]. O estudo Ludwig-McGill, que ainda não tinha esse nome, começou em novembro de 1993, quando recrutamos a primeira mulher, no Hospital Vila Nova Cachoeirinha, em São Paulo, e a última entrou em 1997. O trabalho terminou em 2004, com 2.528 pacientes de 18 a 60 anos, que seguimos por quase 10 anos. Foi um dos primeiros estudos de longa duração no mundo que mostrou a infecção persistente do HPV como razão primária do câncer de colo de útero. Até hoje tiramos proveito desse estudo, já que guardamos as amostras de células e vírus coletadas.

O que tem feito no Canadá atualmente?
Participo das campanhas para convencer as diferentes províncias a adotar o método molecular de rastreamento do câncer de colo de útero. Também estou escrevendo para o grande público. Um exemplo: depois de muitas horas para acertar um texto sobre prevenção com a editora do blog Health Debate, o resultado foi maravilhoso. Depois fui chamado, reuni outros 14 líderes canadenses nessa área e fizemos um documento de quase 30 mil palavras com argumentos para mudar os métodos de rastreamento, que enviamos para os departamentos de saúde de cada província. Já me reuni com as equipes de saúde da província de Ontário e de Quebec. Estou em uma fase de pragmatismo, de priorizar as pesquisas aplicadas sobre novos métodos de controle de câncer para a maior parte da população. Uma delas é a autocoleta: as próprias mulheres recolhem amostras de células do colo de útero para exames, em vez de terem de ir ao centro de saúde.

Isso já é possível?
Um de nossos estudos, o CASSIS, que quer dizer Cervical and Self-Sample In Screening, veio de uma proposta de uma engenheira talentosa de Toronto, Jessica Ching, que desenhou um dispositivo, o HerSwab, para coletar amostras de células do colo de útero para exames. É um envelope com um dispositivo anatomicamente adequado que a mulher leva para casa, insere na vagina, gira a ponta para coletar as células, coloca de novo no envelope, põe no correio e manda para exame. Avaliamos em mais de mil mulheres e vimos que a autocoleta funciona muito melhor que o Papanicolau. Outro exemplo de pesquisa aplicada é o gel, porque a vacina, apesar de boa, ainda é cara e só previne contra alguns tipos de HPV.

De que é feito o gel?
É feito com carragena, um polissacarídeo extraído de algas vermelhas. Esse trabalho veio de uma apresentação a que assisti em 2006 de John Schiller, um cientista dos NIH que tinha visto que a carragena, in vitro, se ligava ao receptor da superfície do HPV, que, por sua vez, se liga à célula hospedeira, mesmo em baixas concentrações. Veio daí a pergunta: será que poderia inibir a ligação do vírus com as células epiteliais? Desenhamos o estudo CATCH, sigla de Carrageenangel against Transmission of Cervical HPV, mas demoramos dois anos para começar porque tivemos de provar que o uso era seguro. O CATCH é um estudo clínico randomizado, com 500 mulheres. Metade vai usar um gel com carragena e outra metade outro gel, como placebo. Os dois grupos usam antes de ter relação sexual e voltam periodicamente para vermos se adquirem menos HPV. Devemos apresentar os resultados em um congresso sobre HPV na África do Sul no final de fevereiro. Se houver um impacto, será ótimo, porque a carragena é uma matéria-prima abundante, o método de produção não está mais sob a proteção de patentes e o custo final deve ser muito baixo. Também estamos avaliando a eficácia do gel em homossexuais com e sem HPV, em vários centros de pesquisa. O impacto pode ser muito relevante, imagine: um gel simples, que previne contra todos os tipos de HPV, embora não tenha ação contra o HIV.

E as suas batalhas contra as revistas predatórias?
Nos últimos anos dei vários cursos, inclusive no Brasil, sobre boas práticas de publicação em revistas científicas. A partir de 2000 o acesso aberto ampliou o acesso às publicações científicas, mas criou um monstro, as revistas predatórias, sem nenhuma ética profissional, com nomes atraentes e endereços falsos nos Estados Unidos ou na Inglaterra. Elas convidam os autores incautos para publicar e, evidentemente, cobram por isso. Não há nenhum controle de qualidade. O sucesso das revistas predatórias se estendeu às pseudoconferências científicas, que atraem pesquisadores ávidos por mostrar o trabalho, mas depois, quando aceitam os convites adulatórios, veem que têm de pagar para ir. A decepção maior vem depois, quando chegam na conferência e encontram dois ou três gatos pingados que também caíram na armadilha. Temos de fazer um boicote às publicações desonestas para evitar que uma informação inconsistente passe por fato científico. No início de janeiro, distribuí um e-mail para a equipe do meu departamento alertando contra as revistas predatórias e recomendando: “Protejam seu nome e sua reputação”. Outra cruzada é o combate a armas de fogo. Organizei uma edição especial da revista Preventive Medicine, dedicada a meu pai, que levou dois tiros em um assalto à loja dele e morreu em 1998. Essa edição saiu em setembro de 2015, com artigos ótimos sobre o alcance da violência causada por armas de fogo, que ninguém conhecia direito. Um dos artigos indica que haveria um redução de 15% no suicídio causado por armas de fogo se o controle sobre as armas fosse maior nos Estados Unidos, onde se estima que cerca de 10 milhões de pessoas tenham armas de fogo em casa. Ainda não conseguimos nos organizar para ajudar a resolver o problema das armas de fogo. A criminalidade é também um problema de saúde pública.

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