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IMUNOLOGIA

Dengue pode atenuar zika

Estudos sugerem que a infecção prévia pelo primeiro vírus ameniza o quadro da segunda enfermidade

Podcast: Maurício Lacerda Nogueira

 
     
Quem já teve dengue e é infectado pelo vírus zika aparentemente não desenvolve uma enfermidade mais severa do que pessoas sem contato prévio com o primeiro vírus, como se cogitou anteriormente. É até mesmo possível que apresente um quadro mais leve e transitório de zika. A perspectiva de que uma infecção anterior por dengue exerça um efeito amenizador contra o outro vírus emerge de dois estudos recentes, um publicado em 20 de junho na revista Clinical Infectious Diseases e outra no dia 23 na Nature Communications.

Os dois trabalhos, o primeiro realizado com seres humanos no Brasil e o segundo com macacos em Porto Rico, apresentam as primeiras evidências de que uma infecção por dengue seguida de outra por zika desencadeia no organismo dos primatas uma resposta imune diferente da observada em experimentos com roedores ou com células cultivadas em laboratório. Antes dos trabalhos publicados em junho, modelos experimentais usando células in vitro ou camundongos com o sistema imune debilitado indicavam que, após uma infecção por dengue, o vírus zika conseguiria driblar com mais facilidade as defesas do organismo e se multiplicar mais. A consequência seria um quadro mais grave de zika. Alguns grupos de pesquisa se baseavam nessa hipótese para tentar explicar por que o número de casos de microcefalia ligado ao zika foi muito maior no Brasil, onde a dengue é endêmica, do que em outras regiões do mundo.

“Nossos resultados indicam que esse agravamento não ocorre ou, se ocorrer, é muito raro e não pode ser detectado em um estudo como o que fizemos”, afirma o virologista Maurício Lacerda Nogueira, professor da Faculdade de Medicina de São José do Rio Preto (Famerp). Ele coordenou o estudo publicado na Clinical Infectious Diseases, o primeiro a indicar que, em seres humanos, uma infecção prévia por dengue não leva necessariamente a um quadro mais grave de zika. Ambos os vírus são transmitidos pelo mosquito Aedes aegypti.

O grupo de Nogueira coletou sangue de 65 moradores de São José do Rio Preto que, entre janeiro e julho de 2016, no auge da epidemia de zika, buscaram atendimento médico com sintomas que lembravam dengue ou zika (febre, dores musculares e de cabeça, além de manchas pelo corpo). Situada na região norte do estado de São Paulo, a 450 quilômetros da capital, São José do Rio Preto encontra-se em uma área em que a dengue é endêmica e pela qual o zika se espalhou no ano passado.

A análise do sangue dos participantes revelou que, na época, 45 apresentavam infecção por zika e 20 por dengue. Os testes indicaram ainda que 78% dos que tinham zika (35 pessoas) e 70% daqueles com dengue (14) já haviam sido infectadas pelo vírus da dengue anteriormente.

Gravidade semelhante
Nesse estudo, realizado em parceria com pesquisadores de duas instituições norte-americanas e outras três paulistas – a Universidade de São Paulo (USP), a Universidade Estadual Paulista (Unesp) e o Instituto Butantan –, Nogueira e sua equipe examinaram também a quantidade de cópias do zika no sangue de pessoas infectadas anteriormente com dengue e compararam com a encontrada no sangue daquelas jamais expostas a esse vírus. Se a infecção prévia por dengue facilitasse a multiplicação do zika, a quantidade deste vírus deveria ser bem mais elevada no organismo do primeiro grupo de pacientes. Não foi o que observaram. A concentração de vírus foi semelhante em ambos.

“Nosso estudo tinha poder estatístico suficiente para detectar uma diferença muito pequena, de apenas 10 vezes, na concentração do vírus”, conta Nogueira, que integra a Rede de Pesquisa sobre Zika Vírus em São Paulo (Rede Zika), apoiada pela FAPESP. Seria esperado encontrar dezenas de milhares de vezes mais cópias de zika no sangue de quem já teve dengue, caso o fenômeno observado em roedores e em células in vitro também ocorresse em seres humanos.

Pouco após a disseminação dos casos de zika no Brasil – um estudo publicado em junho na revista Lancet informa que o Ministério da Saúde registrou quase 310 mil casos em 2015 e 2016 –, começou-se a suspeitar de que a infecção prévia por dengue pudesse gerar quadros de zika mais graves, semelhantes aos que ocorrem na dengue hemorrágica. Marcada por sangramentos e, quando mais severa, por queda importante de pressão arterial, a dengue hemorrágica costuma ocorrer em pessoas que já haviam tido a doença e são infectadas por um subtipo diferente do vírus (há quatro no Brasil). O problema é que os anticorpos que o sistema imune produz contra um nem sempre neutralizam o outro de modo eficiente, gerando imunidade parcial.

Segundo uma hipótese chamada incremento dependente de anticorpos (ADE), a imunização incompleta poderia facilitar a entrada do vírus nas células do sistema de defesa em que ele consegue se reproduzir, aumentando o número de suas cópias no organismo e a gravidade da infecção. Como os vírus da dengue e da febre zika são muito próximos evolutivamente (integram a família dos flavivírus), imaginava-se que a imunização parcial que favorece o agravamento da dengue também pudesse tornar mais severos os quadros de zika.

Essa suspeita ganhou força em meados de 2016 quando surgiram os primeiros estudos mostrando que os anticorpos que protegem da dengue também atuam contra o vírus zika, mas não os neutralizam totalmente. Em março deste ano, pesquisadores dos Estados Unidos verificaram que essa imunização parcial aumentava a multiplicação do zika em camundongos com o sistema imune debilitado. Os resultados apresentados agora na Clinical Infectious Diseases indicam que o que se passa com células in vitro e com roedores não necessariamente ocorre com seres humanos.

“Esses resultados não excluem totalmente a possibilidade de que a ADE ocorra, mas são um indício importante de que ter tido dengue não leva a uma infecção mais grave por zika”, conta o imunologista Jorge Kalil, professor da USP e coautor da pesquisa. “Na realidade, há relatos não publicados de que pessoas que já tiveram dengue apresentaram uma forma mais branda de infecção ao contrair zika.”

A possibilidade de que a infecção prévia por dengue possa levar a uma forma mais amena de zika recentemente ganhou um reforço importante. No artigo publicado em 23 de junho na Nature Communications, o grupo do virologista Carlos Sariol, da Universidade de Porto Rico, apresentou indícios de que, em macacos, animais com um sistema de defesa mais parecido com o do ser humano, a imunidade desenvolvida contra o vírus da dengue pode atenuar a infecção por zika. Os pesquisadores contaminaram com zika oito macacos do Centro Caribenho de Pesquisa em Primatas e, em seguida, acompanharam a resposta imunológica dos animais ao longo de 60 dias. Metade dos macacos já havia sido infectada por dengue cerca de três anos antes, enquanto a outra metade jamais havia tido contato com o vírus.

Léo ramos chaves Tela de computador mostra a detecção do vírus zika (curva ascendente) feita por meio do teste de reação em cadeia da polimerase (PCR)Léo ramos chaves

Infecção mais amena
Nos testes in vitro feitos com o sangue dos animais, os anticorpos contra a dengue imunizaram apenas parcialmente contra o vírus zika, facilitando a sua multiplicação e corroborando o resultado dos estudos com roedores. Nos macacos, porém, foi diferente. Em vez de agravar o quadro, os anticorpos contra a dengue ajudaram a reduzir mais rapidamente a concentração de zika no sangue, abreviando a infecção. “Recomendamos cautela no uso de modelos de camundongos imunodeficientes para compreender a patogênese da infecção por vírus zika em pessoas”, escrevem os pesquisadores no artigo da Nature Communications.

Com base nesses resultados, o grupo coordenado por Sariol levantou a hipótese de que grávidas já expostas ao vírus da dengue talvez apresentem uma probabilidade menor de transmitir o zika ao feto, o que reduziria o risco de ocorrer danos no sistema nervoso central da criança. É que a transmissão da gestante para o bebê parece depender de uma infecção por zika mais duradoura e da presença de uma maior quantidade de vírus.

“Se o incremento mediado por anticorpos causado pela dengue levasse à microcefalia, deveríamos ter identificado centenas de casos em Rio Preto e em Ribeirão Preto”, explica Nogueira. “Não detectamos nenhum.” A equipe do virologista também acompanhou em Rio Preto 55 mulheres que tiveram zika durante a gestação. Todas deram à luz filhos sem microcefalia – algumas das crianças apresentaram danos neurológicos, mas bem mais leves do que os registrados no Nordeste.

“Sem dúvida, esse artigo [da Clinical Infectious Diseases] tem implicações de longo alcance, tanto epidemiológicas quanto para o desenvolvimento de vacinas”, afirma o pesquisador Nikos Vasilakis, da Universidade do Texas, coautor do estudo. “Esses dados sugerem que outros fatores podem ser os responsáveis pela síndrome congênita do zika.”

As evidências de que a infecção por dengue levaria a uma febre zika mais severa levantaram uma preocupação com respeito ao desenvolvimento de vacinas, em especial  a vacina da dengue, em teste no Brasil. “Houve o temor de que vacinar a população contra a dengue pudesse levar a casos mais severos de zika”, conta Kalil. “Os resultados indicam que esse problema não deve existir.”

Projeto
Estudo epidemiológico da dengue (sorotipos 1 a 4) em coorte prospectiva de São José do Rio Preto, São Paulo, Brasil, durante 2014 a 2018 (nº 13/21719-3); Modalidade Projeto Temático; Pesquisador responsável Maurício Lacerda Nogueira (Famerp); Investimento R$ 2.306.387,68.

Artigos científicos
TERZIAN, A. C. B. et al. Viral load and cytokine response profile does not support antibody-dependent enhancement in dengue-primed Zika-infected patients. Clinical Infectious Diseases. 20 jun. 2017.
PANTOJA, P. et al. Zika virus pathogenesis in rhesus macaques is unaffected by pre-existing immunity to dengue vírus. Nature Communications. 23 jun. 2017.

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