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literatura

Lima Barreto como intérprete do Brasil pós-Abolição

Antropóloga escreve biografia do escritor carioca em um momento de retomada do gênero na academia

divulgação companhia das letras Caricatura feita por Hugo Pires, em 1919divulgação companhia das letras

Ancorada no campo de estudos sobre o período pós-Abolição, a antropóloga Lilia Moritz Schwarcz biografou Lima Barreto (1881-1922) a partir de um olhar permeado pelas questões raciais. O livro Triste visionário (Companhia das Letras) mostra como foi a vida de um intelectual negro após a Abolição oficial da escravidão, em maio de 1888, e traz à luz o modo como o autor utilizava a cor da pele como marcador de diferença social em seus personagens. “Barreto se afirmava como intelectual negro, algo incomum à época, e procurava se integrar na cena literária brasileira a partir de uma postura de oposição”, afirma a pesquisadora, que trabalha com a questão racial há mais de 30 anos e é docente da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP) e professora visitante na Universidade de Princeton, nos Estados Unidos.

Na biografia, Lilia procura mostrar como Barreto reafirmava sua origem afrodescendente por meio da literatura, construindo protagonistas negros que iam além dos estereótipos. Esses personagens eram descritos com seus diferentes tons de pele: “pardos”, “pardas”, “pardos claros”, “escuros”, “morenos”, “morenas”, “caboclos”, “caboclas”, “azeitonados” e “morenos pálidos” foram algumas denominações utilizadas pelo escritor para mostrar a complexidade do universo que queria representar. Lilia comenta que o uso da cor como marcador de diferença social aparece, por exemplo, no romance Clara dos Anjos (escrito em 1922 e publicado em 1948), quando o autor descreve um dos seus personagens como “branco na linguagem dos subúrbios, mas negro quando vai para a capital”. Segundo a pesquisadora, a descrição minuciosa das características dos personagens afrodescendentes e do ambiente dos subúrbios cariocas destoava da literatura produzida por outros escritores da época.

Luiz Ferreira/Wikipedia Aos 7 anos, o escritor estava com o pai diante do Paço Imperial quando a princesa Isabel assinou a Lei Áurea, em 1888, na presença de uma multidãoLuiz Ferreira/Wikipedia

Lilia lembra que o autor nasceu em 1881, ano de lançamento em livro de Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, e morreu em 1922, ano da Semana de Arte Moderna. Com isso, permaneceu no meio do caminho entre Machado de Assis e o Modernismo, em uma espécie de vácuo literário. De acordo com ela, Barreto não deve ser considerado “pré-modernista”, rótulo que contesta por acreditar que representa uma espécie de “não lugar”. “Mais do que pré-modernista, o escritor deve ser visto como pioneiro do Modernismo, entre outros elementos pela oralidade presente nos seus textos”, defende.

Lilia também procura evidenciar os paradoxos que permeiam a trajetória do escritor. Nesse sentido, reforça que Barreto reconhecia a importância da obra de Machado de Assis, embora criticasse seu projeto institucional e o de outros literatos da Academia Brasileira de Letras. Apesar disso, ele tentou entrar na instituição por três vezes, sem sucesso. “Barreto queria fazer parte dos circuitos literários por meio de uma postura contestatória, mas não foi bem-sucedido”, conta. Outros paradoxos que envolvem a figura do escritor e que Lilia evidencia em seu trabalho biográfico são as denúncias que Barreto fazia em relação aos abusos da sociedade contra as mulheres e, ao mesmo tempo, suas acusações de que o feminismo era uma “importação barata e fora do lugar”. “Ele defendia os hábitos populares, mas não gostava de futebol, samba e Carnaval. Detestava os funcionários públicos, mas tirava seu ganha-pão na Secretaria da Guerra como amanuense [escriturário]”, escreve Lilia na introdução. Assim, ela sustenta a ideia de que Barreto ocupava uma posição ambivalente tanto no espaço da cidade, transitando entre os subúrbios e a capital, como também em esferas culturais e sociais. A pesquisadora levou a ambiguidade que circunda a vida e a obra do escritor ao próprio título da biografia. “Triste” representaria a ideia de um escritor desiludido, mas também teimoso. Já “visionário” pode ser alguém com visão de futuro, mas na fala de um dos personagens de Barreto ganha, também, o sentido de “louco”.

divulgação companhia das letras Os pais de Barreto, João Henriques e Amália Augusta, eram filhos de escravosdivulgação companhia das letras

Um dos aspectos abordados pela pesquisadora envolve o trânsito do escritor entre a realidade e a literatura. “Os textos do autor contêm traços evidentes do seu entorno, mas mesmo assim ele ficcionaliza todo o tempo”, considera. Lilia dá como exemplo desse processo quando Barreto assina uma das partes do Diário do hospício (1953, póstumo) – que retrata o período em que o autor ficou internado – com o nome de um de seus personagens (Vicente Mascarenhas), ou quando em Cemitério dos vivos (1953, póstumo), obra de caráter ficcional, escreve “Lima Barreto” para se referir ao personagem Vicente Mascarenhas.

Felipe Botelho Corrêa, professor de literaturas e culturas do Brasil, de Portugal e da África lusófona na universidade King’s College de Londres, lembra que a fortuna crítica de Barreto já tinha notado como ele se valia de aspectos de sua vida para escrever. “O autor dizia que não se escondia em sua literatura, que sempre mostrava quem realmente era, mesmo que isso fosse visto como um rebaixamento literário”, conta Botelho. Segundo ele, Barreto procurava utilizar uma linguagem popular e acessível, como forma de atingir um maior número de leitores, o que não era bem-visto na época. Daí as inúmeras críticas que ele recebeu por escrever uma literatura “mal-acabada”. “Outra prova disso são os textos que ele escreveu para meios populares, como a revista Careta, lugar em que ele mais publicou durante a vida e que custava o preço de uma passagem de bonde de segunda classe”, avalia Botelho, que em 2016 publicou Sátiras e outras subversões (Penguin-Companhia das Letras) com 164 textos até então inéditos e que em sua grande maioria foram assinados por pseudônimos de Lima Barreto.

divulgação companhia das letras Notícia de A Noite sobre livro que Barreto estava escrevendo acompanhada de ilustrações dos personagens que aparecem no romancedivulgação companhia das letras

Antes do livro de Lilia, Lima Barreto já contava com uma biografia importante, publicada pelo historiador Francisco de Assis Barbosa (1914-1991) em 1952. Barbosa foi responsável por editar as obras de Lima Barreto em 17 volumes, em um momento em que os livros do autor tinham praticamente desaparecido do mercado. O trabalho do historiador marcou um processo de renascimento do autor carioca na cena literária. Ele foi precursor de uma geração que tirou Lima Barreto do limbo e o reposicionou na literatura nacional.

Beatriz Resende, docente da Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), conta que o historiador Nicolau Sevcenko (1952-2014) e Antônio Arnoni Prado, professor aposentado do Instituto de Estudos da Linguagem na Universidade Estadual de Campinas (IEL-Unicamp), foram os primeiros a estudar a obra de Lima Barreto no Brasil após os trabalhos de Barbosa. Na Itália, Roberto Vecchi, hoje diretor do Departamento de Línguas, Literatura e Cultura Moderna da Universidade de Bolonha, foi outro pioneiro no processo de formação da fortuna crítica de Barreto. Em 2004, quando Beatriz preparava a publicação de livros contendo as crônicas do escritor, pesquisou registros de entrada dele no hospício em 1919, encontrando a hoje conhecida foto de Barreto totalmente debilitado aos 39 anos. “Esse evento trouxe à tona o aspecto da vida dele relacionado ao alcoolismo”, conta a pesquisadora.

Segundo Beatriz, quando Barreto morreu, era uma referência entre escritores nacionais, mas foi sendo esquecido na medida em que o racismo se apropriou do discurso científico, em um momento que marcou a exclusão dos negros do meio intelectual. Ela explica que uma das qualidades da biografia escrita por Barbosa é que o historiador teve acesso a familiares e amigos ainda vivos. No entanto, o biógrafo não abordou a questão do racismo, porque não queria se desviar do seu objetivo, que era chamar a atenção para a importância da literatura dele. “Nos anos 1950, a crítica literária ainda era depreciativa com os textos de Barreto, que circularam primeiramente entre os historiadores”, destaca Beatriz.

Com essa fortuna crítica no horizonte, Lilia conta que procurou desenvolver a biografia atual a partir da elaboração de novas perguntas, agora relacionadas à questão racial e que não haviam sido abordadas por Barbosa no trabalho precedente. “Deparei-me com ele [Lima Barreto] há pelo menos 30 anos, quando realizei minha tese de doutorado e estudei o darwinismo racial”, relata a pesquisadora. Lilia afirma que pretende mostrá-lo como um intérprete de seu tempo, tanto do Brasil como das questões negras. De acordo com ela, a questão racial ganhou vulto nos últimos anos e permite explorar com um novo olhar a vida e a obra do escritor. “Nos seus romances, nas crônicas, nos contos, nos diários e na correspondência, Barreto jamais deixou de tocar nesse tema”, argumenta.

O historiador João José Reis, professor no Departamento de História da Universidade Federal da Bahia (UFBA), lembra que Barreto nasceu na última década de vigência da escravidão, cuja abolição testemunhou aos 7 anos de idade. “Ele sofreu o racismo de uma sociedade que cultivava a ideia de que o negro pertencia a uma raça inferior. Tinha a consciência aguda de que a explicação para grande parte de seus infortúnios teria de buscar numa compreensão mais profunda do que havia sido a escravidão”, comenta. Reis considera que a biografia de Lilia retrata, por meio da trajetória de um personagem, a história da passagem da escravidão para uma liberdade incompleta e amiúde sequestrada dos negros. “Ao discutir o contexto de Barreto, o livro esclarece não apenas a biografia de um indivíduo, mas a de um país no fim da escravidão e, sobretudo, no pós-Abolição”, observa.

A nova biografia de Lima Barreto chega em um momento de retomada do gênero biográfico entre pesquisadores acadêmicos de diversas áreas. Em relação ao contexto histórico, Eneida Maria de Souza, professora de teoria literária na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), esclarece que, há 40 anos, a crítica não se detinha em explorar o lado biográfico dos autores, por considerar a obra de arte autônoma em relação às outras disciplinas e à vida dos escritores. No entanto, entre os anos 1970 e 1980, emergiu uma nova vertente de crítica cultural, que procura entender a obra a partir de um leque mais amplo de associações, que envolvem a vida do autor e também suas relações com outras produções, como o cinema. Segundo Eneida, essas leituras interpretam a literatura para além dos seus limites intrínsecos e, nesse caminho, a experiência de vida do escritor se integra aos seus textos como representação do vivido e não como reflexo direto e literal dos fatos. Nos anos 1980 essa nova vertente da crítica marcou o início de um processo de retomada do gênero biográfico, movimento que, hoje, parece ter atingido seu ponto alto. “Como regra geral, biografias feitas por jornalistas costumam se preocupar mais em documentar a trajetória, enquanto pesquisadores acadêmicos tendem a pensar o percurso biográfico desde um ponto de vista fragmentado e a partir de um problema”, compara Eneida.

Em 1980 Roland Barthes (1915-1980) publicou A câmara clara, criando o conceito de “biografema”, segundo o qual as trajetórias de vida só podem ser recompostas por meio de detalhes, fragmentos e gestos, que são enfocados conforme a relação que estabelecem com a subjetividade do biógrafo. Conforme essa concepção, o gênero biográfico deve ser entendido como capaz de espelhar uma realidade a respeito de um sujeito, mas sem a ambição de oferecer a verdade sobre ele.

divulgação companhia das letras Retrato de 1914 da ficha de internação no Hospício de Alienados, onde fez tratamento para o alcoolismodivulgação companhia das letras

O trabalho do biógrafo é montar os cacos de um quebra-cabeça existencial. Quanto mais cacos puderem ser montados, mais a biografia se aproximará de uma certa verdade”, opina Dênis de Moraes, professor associado no Departamento de Estudos Culturais e Mídia da Universidade Federal Fluminense (UFF), que escreveu as biografias de Graciliano Ramos, Henfil e Oduvaldo Vianna. Apesar de identificar que 90% das biografias feitas no Brasil foram produzidas por jornalistas, Moraes reconhece que o gênero adquire cada vez mais importância em áreas como história e literatura, passando a ser visto como capaz de iluminar uma época ou os problemas desse tempo. “Nesse movimento, elementos do jornalismo, entre eles o uso de fontes orais e uma linguagem menos rebuscada, também passaram a ser usados nos trabalhos de historiadores e sociólogos que fazem biografias”, avalia. Além de Moraes, Maria Augusta Fonseca, professora no Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada na USP, e o filósofo Eduardo Jardim, que foi pesquisador residente na Biblioteca Nacional, são apenas alguns acadêmicos que se valeram do gênero biográfico para abordar o percurso de literatos, tendo escrito, respectivamente, biografias de Oswald de Andrade (1990) e Mário de Andrade (2015).

Livros
SCHWARCZ, L. M. Lima Barreto: Triste visionário. São Paulo: Companhia das Letras, 2017, 645 p.
SOUZA, E. M. Crítica cult. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002, 178 p.

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