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Astrofísica

Mundos como o nosso

Nova geração de espectrógrafos deve possibilitar a descoberta de planetas gêmeos da Terra

Uma nova fase na busca por planetas rochosos semelhantes à Terra fora do Sistema Solar, as chamadas exoterras, deverá ter início no próximo ano com a entrada em operação de dois espectrógrafos de última geração com nomes parecidos: o americano Expres e o europeu Espresso. O primeiro está em fase final de testes nos Estados Unidos e o segundo, em instalação no Chile. Esse tipo de instrumento separa a luz emitida pelas estrelas em seus diferentes comprimentos de ondas e possibilita o estudo de algumas características físicas e químicas de objetos celestes e a determinação de seu movimento relativo no espaço. Com o Expres e o Espresso, os astrofísicos esperam ter, pela primeira vez, a capacidade de encontrar e estudar gêmeas da Terra em torno de estrelas vizinhas similares ao Sol.

Um sistema ideal seria composto por uma exoterra, com massa e tamanho iguais ou quase iguais aos da Terra, situada aproximadamente à mesma distância de sua estrela que nosso planeta se encontra em relação ao Sol, ou seja, na zona habitável onde pode haver água líquida, pré-requisito para a existência de vida. Apesar de mais de 3.500 mundos extrassolares terem sido descobertos nos últimos 20 anos e de existirem outros 4.500 candidatos a exoplanetas, pouco mais de uma dúzia deles exibe um bom grau de semelhança com a Terra. Por ora, segundo o catálogo criado e periodicamente atualizado pelo Laboratório de Habitabilidade Planetária da Universidade de Porto Rico, em Arecibo, o exoplaneta que orbita a estrela mais perto de nós, a Proxima Centauri, a 4,2 anos-luz de distância, é o mais parecido com a Terra (ver quadro).

Se funcionarem a contento, os novos espectrógrafos terão uma resolução 10 vezes superior à dos melhores instrumentos atuais e deverão medir o tênue efeito gravitacional causado periodicamente por uma gêmea da Terra na órbita de sua estrela – algo como uma sacudidela que altera infimamente a trajetória e a velocidade com que a estrela se afasta ou se aproxima da Terra, chamada velocidade radial. Registrar esse tipo de perturbação, por meio do efeito Doppler, foi o método usado em 1995 por astrofísicos do Observatório de Genebra, na Suíça, para descobrir o primeiro exoplaneta em torno de uma estrela do tipo solar, um gigante gasoso com metade da massa de Júpiter localizado muito próximo de sua estrela.

O problema é que mundos rochosos pequenos como a Terra causam oscilações gravitacionais tão diminutas em estrelas como o Sol que nem os melhores espectrógrafos atuais conseguem flagrar. O mais potente desses dispositivos em funcionamento atualmente – o Harps, instalado no observatório de La Silla, do Observatório Europeu do Sul (ESO), no sul do Chile – registra variações de no mínimo 1 metro por segundo (m/s) na velocidade radial de estrelas. “A Terra não seria encontrada por um extraterrestre que usasse a nossa tecnologia atual”, compara a astrofísica Debra Fischer, da Universidade Yale, dos Estados Unidos, que encabeça o projeto do Expres. “Ele apenas descobriria os maiores planetas do Sistema Solar.”

A massa de Júpiter, o maior planeta do Sistema Solar, é 317 vezes maior do que a da Terra. Sua força gravitacional provoca um efeito Doppler sobre o Sol de 13 m/s. A gravidade da Terra causa uma perturbação muito mais sutil: faz a velocidade radial do Sol oscilar 10 centímetros por segundo (cm/s) a cada volta completa dada pelo planeta em torno da estrela. Planetas de fora do Sistema Solar semelhantes à Terra devem provocar perturbações dessa ordem, de uns poucos cm/s, na órbita de sua estrela-mãe. É esse o nível de resolução que o Expres e o Espresso precisam atingir para ser úteis na busca por exoterras.

Quanto menor for a distância e maior a massa de um exoplaneta em relação à de sua estrela, maior será a variação na velocidade radial dessa estrela. “Queremos encontrar planetas rochosos dentro da zona de habitabilidade de sua estrela”, comenta o astrofísico Francesco Pepe, do Observatório de Genebra, coordenador do projeto Espresso e que trabalhou no desenvolvimento do Harps. O Espresso é uma iniciativa da Suíça, Itália, Espanha e Portugal em parceria com o ESO. Ele está sendo instalado no Very Large Telescope (VLT), um conjunto de quatro telescópios principais, cada um com um espelho de 8,2 m, no sítio do ESO em Cerro Paranal, no Chile. “O Espresso pode funcionar com apenas um ou com até os quatro telescópios do VLT”, explica Pepe. O custo estimado do espectrógrafo é de € 23 milhões.

Debra, que foi coautora da descoberta do primeiro sistema com mais de um exoplaneta em 1999, esteve em São Paulo em setembro deste ano para participar da reunião anual da Sociedade Astronômica Brasileira (SAB). Em sua apresentação, falou da busca por exoterras e do Expres, que custou cerca de US$ 5,2 milhões. Até o final de outubro, deve terminar a montagem do espectrógrafo no Telescópio do Canal Discovery, dotado de um espelho de 4,3 m, que fica no Observatório Lowell, no Arizona. “No dia 9 de dezembro, está programada a primeira luz do Expres”, comenta Debra, que toca desde 2014 um projeto para encontrar 100 exoplanetas parecidos com a Terra na vizinhança do Sistema Solar. O Discovery é um telescópio mais modesto do que o VLT, capaz de fazer medições em estrela de menor brilho. Os construtores do Expres, no entanto, esperam compensar essa desvantagem com a adoção de um calendário mais flexível de uso do seu espectrógrafo do que o adotado pelo Espresso no VLT, um dos mais disputados telescópios do mundo. “Ter mais tempo disponível para realizar observações é um diferencial importante”, opina o astrofísico José Dias do Nascimento Júnior, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), responsável pela vinda de Debra ao encontro da SAB.  “Às vezes, temos de seguir por dois anos um exoplaneta para determinar sua órbita.”

O Expres vai cobrir apenas o céu do hemisfério Norte. A astrofísica de Yale planeja ter um clone do espectrógrafo instalado em um telescópio no hemisfério Sul. “O Soar, no Chile, é muito parecido com o Discovery e seria fácil instalar nele uma cópia do Expres”, comenta Debra. O Observatório Austral de Pesquisa Astrofísica, nome completo do Soar, é um telescópio com espelho de 4,1 m construído e mantido por investimentos do Brasil, dos Estados Unidos e do Chile. O custo de implantação dessa réplica do Expres, denominada Sorceress, seria de US$ 3,6 milhões. “O instrumento, sem dúvida, é bom e, em princípio, há interesse”, comenta Bruno Vaz Castilho, diretor do Laboratório Nacional de Astrofísica (LNA), que gerencia a participação brasileira no Soar. “Mas o comitê científico do telescópio tem que avaliar se ele se encaixa nas operações e na proposta futura de pesquisas do Soar.”

As soluções tecnológicas empregadas no Espresso e no Expres são diferentes, mas basicamente tentam equacionar os mesmos problemas a fim de atingir a precisão desejada: manter a parte óptica do espectrógrafo em um ambiente com vácuo, pressão e temperatura (de cerca de -200 Kelvin) controlados. A conexão entre os instrumentos e os telescópios em que estão sendo instalados é feita por uma rede de fibras ópticas. “Outros espectrógrafos de última geração estão sendo construídos, mas só nós e o Expres assumimos publicamente a meta de medir variações na velocidade radial das estrelas da ordem de 10 cm/s”, comenta Pepe, do projeto Espresso. Para chegar a esse nível de precisão, os aparelhos terão de ser capazes de distinguir instabilidades típicas da superfície das estrelas – caldeiras borbulhantes e magnetizadas com gases que se movimentam a centenas de metros por segundo – da tênue sacudidela gravitacional de 10 cm/s provocada na órbita dessa mesma estrela por um planeta como a Terra.

Entrevista: José Dias do Nascimento Júnior
00:00 / 10:12

Técnicas complementares
O sonho dos astrofísicos é obter imagens diretas, de preferência no campo da luz visível, dos novos mundos que buscam em torno de outras estrelas que não o Sol. Mas a luminosidade das estrelas é tão forte que ofusca eventuais exoplanetas ao seu redor. Talvez os novos supertelescópios que devem começar a operar nos anos 2020, como o GMT e o E-ELT, atinjam esse objetivo. Por ora, pouco mais de 1% dos 3.510 planetas extrassolares descobertos na vizinhança de 2.615 estrelas foram identificados por meio da obtenção de imagens, de baixa resolução, desses objetos celestes ocultos. Em quase 99% dos casos, a presença dos exoplanetas foi deduzida por efeitos indiretos que os objetos celestes causam nas suas estrelas. A técnica de microlente gravitacional, que mede alterações na curvatura da luz, foi a responsável pela descoberta de pouco mais de 1% dos planetas extrassolares.

De 1995 até 2010, a maioria dos exoplanetas foi descoberta pela técnica da velocidade radial. Nos anos mais recentes, com o envio ao espaço de missões destinadas a procurar exoplanetas, como os satélites francês CoRoT e sobretudo o norte-americano Kepler, o método do trânsito se tornou o mais produtivo em termos do número de exoplanetas encontrados. O trânsito mede a diminuição de brilho provocada pela passagem de um exoplaneta em frente de sua estrela-mãe, algo como um minieclipse. Hoje 18% de todos os exoplanetas confirmados foram descobertos pela técnica da velocidade radial e 78%, pelo trânsito. Ambos os métodos, no entanto, apresentam um viés comum: favorecem a localização de exoplanetas gigantes, em geral gasosos, ou, na melhor das hipóteses, mundos rochosos maiores do que a Terra.

Mais do que abordagens concorrentes, as duas técnicas têm caráter complementar. “A velocidade radial consegue determinar a massa mínima que um exoplaneta pode ter”, explica Eduardo Janot Pacheco, do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas da Universidade de São Paulo (IAG-USP), que coordenou a participação brasileira no CoRoT e é fundador da recém-criada Sociedade Brasileira de Astrobiologia. “O trânsito fornece o tamanho, o diâmetro, do exoplaneta. Um método ajuda a confirmar a descoberta feita pelo outro e a refinar os dados.” Com esses dois parâmetros, massa e volume, é possível calcular a densidade aproximada de um objeto e, assim, ter uma noção se um exoplaneta é gasoso ou sólido. Não faltarão novos e velhos parceiros, que usem o método do trânsito, para fazer uma dobradinha com o Expres e o Espresso, ou mesmo outros espectrógrafos. Em 2018, a Nasa deve lançar o satélite Tess, sucessor do Kepler. Na próxima década, a agência espacial europeia (Esa) prevê levar ao espaço a missão Plato, que usará o método do trânsito na busca por exoterras.

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