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Física

Turbulência criativa

Estimular flutuações aleatórias pode aumentar a produção de energia em reatores de fusão nuclear

O NSTX, da Universidade de Princeton, foi um dos tokamaks em que foi testado o método para reduzir a perda de energia

Elle Starkman

Sistemas turbulentos, com flutuações aleatórias, podem ser imprevisíveis, dificultando a formulação de modelos explicativos sobre fenômenos naturais. Mas o estímulo, até certa medida, à presença de turbulência pode ser positivo no interior dos tokamaks, reatores experimentais de fusão nuclear onde dois núcleos de diferentes isótopos do átomo de hidrogênio se unem, formam um núcleo do átomo de hélio e liberam energia. Essa ideia, aparentemente paradoxal, foi proposta pelo físico brasileiro Vinícius Njaim Duarte, que faz estágio de pós-doutorado na Universidade de Princeton, nos Estados Unidos, para atenuar a perda de energia nesses reatores de plasma superaquecido provocada por um fenômeno conhecido como chirping ou gorjeio. A abordagem foi inicialmente proposta como teoria, seu emprego foi simulado em computador e posteriormente testado, com sucesso, em três tokamaks. “Quanto maior a turbulência, menores as chances de aparecimento do chirping”, explica Duarte, que relatou os experimentos em artigo publicado em dezembro do ano passado na revista Physics of Plasmas, do Instituto Americano de Física.

Inaudível para ouvidos humanos, o gorjeio é uma espécie de trinado emitido por ondas que se propagam pelo plasma de reatores e tecnicamente se assemelha ao canto das aves em alguns aspectos. O chirping emerge das interações entre oscilações do plasma e partículas altamente energéticas. O efeito expulsa as partículas para fora do equipamento, esfriando e comprometendo a continuidade das reações de fusão nuclear. Cada tokamak apresenta um padrão de chirping distinto, que lhe confere uma identidade própria: alguns gorjeiam muito, outros, pouco. O fenômeno também é comum em objetos astronômicos e ocorre, por exemplo, no plasma da magnetosfera do Sol – a parte externa da atmosfera da estrela, cheia de partículas eletricamente carregadas. A turbulência é, de certa forma, uma característica inerente a fluidos. Em geral, não precisa ser induzida e surge naturalmente devido ao movimento das partículas do plasma. “A turbulência é, em geral, algo indesejado em qualquer sistema, mas, no caso dos tokamaks, pode levar a cenários que possibilitam o aumento da produção de energia no plasma”, explica o físico Ricardo Galvão, diretor do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) e orientador da tese de doutorado de Duarte sobre o tema, defendida em meados do ano passado no Instituto de Física da Universidade de São Paulo (IF-USP).

Galvão aceitou-o como aluno a pedido do físico italiano Roberto Antonio Clemente, do Instituto de Física Gleb Wataghin da Universidade Estadual de Campinas (IFGW-Unicamp). Muito doente, Clemente, que orientou parcialmente o mestrado de Duarte e morreu em 2011, pediu-lhe que acolhesse o estudante no doutorado. O físico da USP viu o potencial de Duarte para pesquisa e o enviou a Princeton para trabalhar com um de seus colaboradores, o físico russo Nikolai Gorelenkov. Seu tema original de pesquisa no doutorado estava ligado à física de plasmas, mas não à questão do chirping. “Enquanto desenvolvia seu tópico original, Duarte assistiu a seminários e percebeu que esse problema não estava explicado”, conta Galvão. “Ele resolveu, por conta própria, investigar o assunto e o resultado foi excelente: seu estágio teve que ser prolongado por mais um ano, financiado agora por Princeton, para que ele pudesse estudar o chirping.” Foi nesse período que teve a ideia de controlar o gorjeio dos reatores por meio do estímulo da turbulência no plasma.

Com o objetivo de testar o modelo proposto por Duarte, foram realizados experimentos específicos no DIII-D, tokamak, do Departamento de Energia dos Estados Unidos que funciona nos laboratórios da empresa General Atomics em San Diego, Califórnia, nos quais o plasma foi operado em uma geometria peculiar, que sabidamente mitiga a turbulência. O chirping, normalmente bastante raro no DIII-D, mostrou-se predominante nessa geometria. Em tokamaks que normalmente apresentam muito chirping, como o NSTX, de Princeton, Duarte e seus colegas de Princeton adotaram uma geometria que favorecia a turbulência e reduzia o problema no reator. Antes de confirmar o papel-chave da turbulência, os pesquisadores testaram outras hipóteses, como a colisão entre as partículas ou suas velocidades de ressonância, mas nada permitia controlar o chirping. “O entendimento que obtivemos sobre os plasmas no laboratório deve ser útil também para explicar e controlar o chirping na natureza”, comenta Gorelenkov, coautor do trabalho.

Os resultados foram tão animadores que o método proposto por Duarte será utilizado em outros tokamaks, como o Iter, maior projeto de reator desse tipo, atualmente em construção no sul da França, cujo objetivo é demonstrar a viabilidade econômico-científica da produção de energia a partir da fusão nuclear. Previsto para começar a operar em 2025, o megatokamak envolve a participação de 35 países e um investimento da ordem de €20 bilhões. A previsão é de que o Iter seja capaz de gerar 10 vezes mais energia do que gasta : 500 megawatts (MW) produzidos a partir de 50 MW de potência injetada. Seus defensores dizem que, por ser muito grande, o reator será mais eficiente na produção de energia do que seus congêneres menores. A fusão nuclear é mais segura e resulta em menos rejeitos radioativos do que a fissão nuclear, atualmente empregada para produzir energia em usinas atômicas, nas quais os núcleos dos átomos são quebrados. O problema é que os tokamaks atuais, ao contrário das centrais nucleares, consomem mais energia do que produzem. O maior experimento de fusão nuclear em funcionamento do mundo, o JET, localizado em Culham, na Inglaterra, obteve uma eficiência máxima de 67%: para gerar 16 MW gasta 24 MW.

ITER Organization / EJF Riche Imagem de março de 2018 registra a construção, no sul da França, do Iter, previsto para ser o maior reator de fusão nuclear do mundoITER Organization / EJF Riche

Energia das estrelas
Nos laboratórios, a física de plasmas tenta imitar a natureza. O processo de fusão nuclear dos tokamaks é o mesmo por meio do qual estrelas, como o Sol, produzem sua energia. Nesses objetos celestes, uma atração gravitacional descomunal leva os átomos de hidrogênio a ficarem bem próximos uns dos outros a tal ponto que a fusão entre eles se torna inevitável. Em teoria, parece simples juntar dois isótopos  de hidrogênio para formar um núcleo de hélio, mas, dentro dos reatores, isso não é tão trivial. Para emular as condições das estrelas, no interior dos tokamaks, os físicos têm de agitar bastante os átomos. A temperatura mínima de ignição das reações de fusão nos tokamaks é de cerca de 150 milhões de graus Celsius , 10 vezes superior à do centro do Sol.

O tokamak tem formato toroidal, semelhante à câmara de um pneu. Gira em seu interior, confinada por fortes campos magnéticos, uma sopa de plasma de hidrogênio – estado da matéria em que os gases são aquecidos até o ponto de os elétrons escaparem dos átomos – e de partículas rápidas, dentre elas núcleos do átomo de hélio, também denominados partículas alfa. “Fazer da fusão um processo eficiente e autossustentável envolve não deixar que as partículas rápidas escapem do reator, a fim de que elas possam transferir sua energia para o restante do plasma”, explica Duarte.

Projeto
Modos acústicos geodésicos e contínuos de Alfvén em colunas de plasma com rotação (nº 12/22830-2); Modalidade Bolsa de Doutorado; Pesquisador responsávelRicardo Galvão (USP); Bolsista Vinícius Njaim Duarte; Investimento R$ 86.783,64 e R$ 78.445,84 (Bolsa Estágio de Pesquisa no Exterior, nº 14/03289-4).

Artigo científico
DUARTE, V. et alTheory and observation of the onset of nonlinear structures due to eigenmode destabilization by fast ions in tokamaksPhysics of Plasmas. v. 24, n. 12, 122508. dez. 2017.

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