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Gestão

Elevação da plataforma

Modernização da base de currículos Lattes busca ampliar a confiança em seus dados e estimula debate sobre o potencial da ferramenta

Fabio Otubo

A Plataforma Lattes, uma base de dados que reúne mais de 5 milhões de currículos de pesquisadores e estudantes do país, vai passar por um processo de modernização até o final do ano para corrigir falhas na atualização das informações. Também está programada a sua integração com o Orcid (sigla para Open Researcher and Contributor ID), uma assinatura digital de 16 números utilizada no meio acadêmico para identificar inequivocamente autores de trabalhos científicos (ver Pesquisa FAPESP nº 238). Um dos objetivos é aprimorar a qualidade das informações sobre a trajetória e a contribuição de cada pesquisador ao automatizar o preenchimento de dados sobre artigos científicos indexados em bases como Web of Science e Scopus, que já têm parceria com o Orcid. A reforma busca tornar a atualização dos currículos mais rápida e amigável do que é hoje, como informou Mario Neto Borges, presidente do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), em entrevista concedida em junho ao site Direto da Ciência.

A confiança nas informações baseia-se hoje em mecanismos de autogestão: o próprio pesquisador que fornece os dados se responsabiliza por sua veracidade, podendo ser punido se falsificá-los. “O CNPq dispõe de um comitê que analisa denúncias de fraudes e estabelece recomendações”, explica José Ricardo de Santana, diretor de cooperação institucional do CNPq. A sincronização com o Orcid vai refinar a certificação dos dados dos usuários ao cruzá-los de forma automática com identificadores como o Digital Object Identifier (DOI), para artigos, e o International Standard Name Identifier (Isni), para instituições. “Após a mudança, não será possível ligar um pesquisador a uma instituição à qual ele não pertença ou identificá-lo erroneamente como autor de um artigo”, observa Santana. A ideia é de que, no futuro, esse tipo de informação seja atualizado de forma automática nos currículos.

Para que a integração com o Orcid beneficie o Lattes, será importante a adesão de instituições de ensino e pesquisa de todo o país. O primeiro passo foi dado em dezembro de 2017, com o lançamento de um consórcio envolvendo o Orcid, o CNPq, a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), a biblioteca eletrônica SciELO, o Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia (Ibict) e o Conselho Nacional das Fundações Estaduais de Amparo à Pesquisa (Confap). “A interface do Orcid permite criar pontes entre diferentes sistemas de informação, fazendo com que possam operar em conjunto e reconhecer os dados uns dos outros”, explica Ana Heredia, coordenadora da organização sem fins lucrativos Orcid na América Latina.

Entrevista: José Ricardo de Santana
     

Segundo ela, mais de 120 mil pesquisadores brasileiros já dispõem de sua assinatura digital única e o país está na sexta posição no ranking de nações que mais utilizam o identificador. A expectativa é de que a integração possa diminuir o retrabalho de inserção de dados em diversos sistemas e dar mais visibilidade à produção dos pesquisadores. “Um estrangeiro que acesse o perfil de um autor brasileiro no site do Orcid poderá obter dados do Lattes que não estão necessariamente indexados em bases internacionais, como capítulos de livros, teses e dissertações e também informações sobre a participação em bancas examinadoras”, esclarece Ana.

Idealizada no final do século passado como um banco nacional de currículos acadêmicos, a plataforma Lattes rapidamente se tornou referência no cotidiano de universidades e agências de fomento. “Antes dela, era difícil obter informações confiáveis sobre as qualificações de um pesquisador, como, por exemplo, onde se formou e quantos alunos orientou”, recorda-se o bioquímico Hernan Chaimovich, professor do Instituto de Química da Universidade de São Paulo (IQ-USP) e presidente do CNPq entre 2015 e 2016. Desde a década de 1980 o CNPq dispunha de pelo menos três bancos de dados, abastecidos periodicamente, com informações sobre a produção de pesquisadores. A expansão da internet e a disseminação do sistema operacional Windows no ambiente acadêmico, na segunda metade dos anos 1990, tornou viável a ideia de criar um formulário único para cadastrar os dados acadêmicos de estudantes, docentes e cientistas. A empreitada, coordenada pelo engenheiro Evando Mirra (1943-2018), então presidente do CNPq, reuniu técnicos do órgão, da empresa Multisoft e dos grupos Stela, vinculado à Universidade Federal de Santa Catarina, e Cesar, oriundo da Federal de Pernambuco, que desenvolveram um tipo de currículo integrando as versões que já existiam.

A reforma busca tornar a atualização dos currículos mais rápida e amigável do que é hoje

A disseminação da ferramenta fez com que, em 2002, sua tecnologia fosse adotada por uma rede internacional que reúne fontes de informação sobre ciência e tecnologia, a Rede ScienTI. Em 2008, o modelo brasileiro embasou a criação de uma versão lusitana do Lattes, batizada de Plataforma DeGóis, mantida pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT), ligada ao governo português. Dez anos depois, a DeGóis começou a ser substituída por um sistema mais moderno, a Ciência Vitae. “A nova plataforma será central no ecossistema de ciência e tecnologia, servindo como ferramenta para a realização de qualquer ato administrativo baseado em currículos”, explica João Mendes Moreira, diretor da área de conhecimento científico da unidade de computação da FCT. “Pretende-se contribuir para a modernização administrativa e reduzir a carga burocrática que recai sobre pesquisadores”, diz.

A necessidade de modernizar a plataforma não significa que ela esteja obsoleta, observa o cientista da computação Roberto Marcondes Cesar Junior, pesquisador do Instituto de Matemática e Estatística da USP. “Trata-se de uma base de dados valiosa e que atende muito bem às necessidades brasileiras”, diz. Dados coletados do Lattes são utilizados pela Capes para avaliar programas de pós-graduação. Agências de fomento também usam a ferramenta para gerar relatórios e apreciar pesquisadores que submetem projetos. Recentemente, o Lattes passou a ser utilizado pelo Ministério do Planejamento para formar um Banco de Talentos de servidores públicos, com o objetivo de mostrar as qualificações de cada um deles e selecionar funcionários talhados para tarefas específicas.

Marcondes também destaca o papel dos currículos como fonte de informação para pesquisadores que buscam dados sobre a ciência brasileira. “Como o Brasil é o único país com uma plataforma que registra ativamente o trabalho de toda a sua comunidade científica, é possível estudar fenômenos e tendências utilizando esses dados”, afirma. Cientistas da computação passaram a usar a gigantesca massa de informações dos currículos para extrair recortes de dados e testar novos algoritmos – entre os estudos já produzidos, destacam-se análises originais sobre a mobilidade dos pesquisadores brasileiros e a criação de árvores genealógicas de diferentes campos do conhecimento.

O pesquisador da USP foi um dos criadores do scriptLattes, ferramenta de software livre desenvolvida em 2005 para gerar, de forma automática, relatórios de produção científica, com informações, por exemplo, sobre redes de colaboração e coautoria entre membros de grupos de pesquisa. Para Marcondes, a discussão sobre a modernização deveria incluir propostas para facilitar o acesso a seus dados. “Uma política restritiva instituída em 2015 vem prejudicando os pesquisadores que utilizam o Lattes para fazer análises.” Até abril de 2015 os currículos eram livremente disponibilizados para consulta e coleta de dados. Após essa data, o CNPq passou a utilizar um sistema de verificação que emprega o recurso do Captcha, a digitação de um código de segurança para o acesso aos currículos. “Esse sistema foi adotado para evitar a extração automática de informações e minimizar problemas relacionados à segurança da informação e de sobrecarga, que causaria lentidão e queda no serviço”, esclarece José Ricardo de Santana, do CNPq. Uma petição foi criada para pressionar a agência federal a reverter a decisão, sem sucesso. “A restrição dificulta a produção de novos estudos sobre a ciência brasileira, ainda que cientistas da computação estejam criando formas de superar essa barreira”, alerta Marcondes.

Rogério Mugnaini, professor da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP que já usou a base de currículos em pesquisas, sustenta que as informações sobre publicações científicas contidas na plataforma poderiam ser combinadas com dados de fontes nacionais e internacionais para gerar indicadores mais fidedignos capazes de avaliar a produção da comunidade científica brasileira. “Nas referências bibliográficas dos currículos há informação sobre a produção em revistas não indexadas nas bases de dados de revistas tradicionais, além de teses, livros e outros documentos”, ressalta. Ele também considera que a plataforma poderia ganhar funcionalidades de uma mídia social, a exemplo do que ocorreu com ferramentas que permitem a interação entre usuários e o compartilhamento de arquivos, entre elas o ResearchGate e o Mendeley. “Da forma que está, funciona apenas como um currículo on-line”, avalia Mugnaini. “Ao incorporar recursos de mídia social, o Lattes estimularia parcerias e poderia promover o acesso instantâneo a informações científicas.”

Marcondes Cesar sugere cautela na ampliação do escopo do Lattes. “Por ocupar um lugar de destaque no sistema de ciência e tecnologia nacional, não acho que a plataforma deva concorrer com mídias sociais, a menos que elas comecem a ser mais utilizadas em avaliações da produção científica”, observa. Tais mudanças estão em avaliação, mas não devem ocorrer logo. “Funcionalidades como a troca de mensagens instantâneas entre pesquisadores seriam interessantes, mas ainda estão em estágio preliminar no plano de modernização”, avisa José Ricardo Santana, do CNPq.

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