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Memória

A química do sucesso

Aos 120 anos, Faculdade de Ciências Farmacêuticas da USP é referência em medicamentos, análises clínicas e toxicológicas e alimentos

Laboratório de Farmacognosia, à época em que a escola ficava no bairro paulistano do Bom Retiro

Centro de Memória da FCF-USP

A Faculdade de Ciências Farmacêuticas completou em outubro 120 anos como uma das mais pulsantes das 42 unidades da Universidade de São Paulo (USP). Nos últimos seis anos, a instituição vem superando dificuldades orçamentárias e mantendo o investimento na formação de recursos humanos, em novas parcerias de pesquisa com empresas e instituições de ensino e pesquisa do Brasil e do exterior, e em sua infraestrutura, reformando laboratórios e construindo novas instalações. “Cerca de 80% dos alunos da graduação ingressam em estágios em multinacionais da indústria farmacêutica tão logo iniciem o segundo ano do curso”, destaca Primavera Borelli, diretora da faculdade. “Isso transformou a instituição em uma das mais renomadas faculdades de ciências farmacêuticas da América Latina”, diz.

Nem sempre foi assim. Por pouco o curso não fechou no início da década de 1920. A concorrência com outras escolas de farmácia e um escândalo que cassou o credenciamento federal da faculdade fizeram com que os alunos debandassem e os professores pedissem demissão, desinteressados de trabalhar em uma instituição sem licença para funcionar. O governo federal restabeleceu o credenciamento em 1933, e a instituição, em seguida, foi incorporada ao projeto de criação da Universidade de São Paulo, então como Faculdade de Farmácia e Odontologia.

Centro de Memória da FCF-USP Gravura do casarão da rua Brigadeiro Tobias de Aguiar, primeira sede da instituiçãoCentro de Memória da FCF-USP

A Faculdade de Ciências Farmacêuticas (FCF) foi fundada em 12 de outubro de 1898, então como Escola Livre de Pharmacia de São Paulo. Sua criação é resultado de um processo que há muito vinha sendo gestado na província. Em Memória econômico-política da capitania de São Paulo, publicado em 1800 pelo capitão-general Antônio de Melo Castro e Mendonça, governador da capitania de São Paulo, encontra-se a proposta de criação de aulas de cirurgia, farmácia, história natural, botânica e química, que constituiriam a Academia Fármaco-cirúrgica. A ideia não avançou. Quase 80 anos mais tarde, em 1878, os deputados Cesário Motta Magalhães, Prudente de Moraes e Martinho Prado Júnior apresentaram outro projeto sugerindo a criação do Instituto Paulista de Ciências Naturais, composto por dois cursos especiais, um agrícola e outro farmacêutico. Tampouco se concretizou.

A partir da segunda metade do século XIX começaram a surgir as primeiras boticas na província de São Paulo. Na ausência de uma escola de farmácia, os donos desses estabelecimentos na capital paulista precisavam recorrer a profissionais formados em instituições de outras partes do país para poderem manter seus negócios. “O ensino farmacêutico oficial no Brasil à época se resumia às faculdades de medicina e farmácia do Rio de Janeiro e da Bahia, além da Escola de Farmácia de Ouro Preto, em Minas Gerais, criada em 1839 como única instituição de ensino farmacêutico desvinculada de curso médico no Brasil.

Centro de Memória da FCF-USP Cenas de uma aula prática de química industrial em meados de 1908Centro de Memória da FCF-USP

Somente em 1891, com a reforma educacional empreendida por Benjamin Constant (1833-1891), a primeira do regime republicano, que o projeto de uma escola de farmácia ganhou força em São Paulo. A lei eximia o Estado do monopólio de criar e fiscalizar instituições de ensino, permitindo que as entidades não estatais fundassem suas próprias escolas. Foi o que aconteceu. Com o surgimento da Sociedade Farmacêutica Paulista, em 1894, primeira agremiação da classe no estado, foi proposta em janeiro de 1897 a criação de uma cooperativa farmacêutica, incluindo entre seus estatutos a fundação de uma escola livre de farmácia. O projeto da cooperativa não se concretizou, mas o da criação da escola, sim.

A criação
Encabeçada pelo médico Bráulio Joaquim Gomes (1854-1903) e pelo farmacêutico Pedro Baptista de Andrade (1848-1937), a ideia ganhou corpo com apoio da recém-criada Sociedade de Medicina e Cirurgia de São Paulo e de sua publicação oficial, a Revista Médica de São Paulo. “A Escola Livre de Pharmacia de São Paulo seguiu o modelo mineiro do curso de farmácia, já que se tratava de uma faculdade de iniciativa privada, sem vínculos com o curso de medicina, como nos casos das faculdades do Rio e da Bahia”, explica o historiador José Luiz Santos Pereira Filho, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, que estuda a história da FCF. Desde o início, a unidade não se restringiu apenas ao ensino, desenvolvendo importantes pesquisas no seu campo. O próprio Baptista de Andrade foi autor de notáveis investigações sobre substâncias como a caioponina e a abruzina. “A história da faculdade sempre foi marcada pelo compromisso com a saúde pública e o desenvolvimento de pesquisas”, comenta a farmacêutica-bioquímica Maria Inês Rocha Miritello Santoro, diretora da unidade entre 1992 e 1996.

Centro de Memória da FCF-USP Professores e estudantes realizam análises bacteriológicas em meados dos anos 1950Centro de Memória da FCF-USP

A faculdade funcionava em um casarão alugado na rua Brigadeiro Tobias, na região central da cidade. Em abril de 1900 o governo do estado a incumbiu de realizar os exames de habilitação de dentistas e parteiras, enquanto não existissem cursos especiais nessas áreas na região. Quase um ano depois, os cursos de odontologia e obstetrícia foram anexados oficialmente à instituição, que passou a se chamar Escola de Farmácia, Odontologia e Obstetrícia de São Paulo. As duas novas carreiras se desmembrariam ao longo do tempo. A obstetrícia desgarrou-se em 1911, com a criação da Escola de Parteiras de São Paulo. Em 1962 foi a vez da odontologia, que se transformou na atual Faculdade de Odontologia da USP.

Em 1905 a escola foi transferida para um edifício próprio na rua Marquês de Três Rios, no bairro do Bom Retiro. A situação financeira da instituição era bastante precária à época. Apenas 11 alunos haviam se matriculado no curso no primeiro ano de funcionamento da escola, em 1899. No ano seguinte, esse número caiu para seis. Os professores, além de trabalharem de graça, não raro contribuíam do próprio bolso para sua manutenção. Nessa mesma época a escola teve de enfrentar uma série de imbróglios burocráticos e quase fechou. A escola permaneceu cerca de 15 anos sem um diretor até que, em 1932, o médico Benedicto Augusto de Freitas Montenegro foi designado como depositário do estabelecimento, restabelecendo seu credenciamento com o governo federal e, ao mesmo tempo, articulando-se com o governo paulista para que ela fosse incorporada ao projeto da USP, passando a se chamar Faculdade de Farmácia e Odontologia.

Centro de Memória da FCF-USP A Escola Livre de Pharmacia de São Paulo contava com a presença de muitas mulheresCentro de Memória da FCF-USP

Inovação
Desde que sua trajetória se vinculou à da USP, a Faculdade de Ciências Farmacêuticas se consolidou como referência nacional em ensino e pesquisa. A unidade ocupa hoje uma área de mais de 23 mil metros quadrados no conjunto das Químicas da Cidade Universitária. Com 84 professores, já graduou mais de 7 mil farmacêuticos e formou mais de 1.880 mestres e 1.125 doutores, contribuindo para o surgimento de uma geração de profissionais que depois atuaram como professores e pesquisadores nas áreas de medicamentos, análises clínicas e toxicológicas, e alimentos na própria USP e em outras instituições de ensino e pesquisa do Brasil e exterior. A FCF é hoje a terceira unidade da USP com o maior número de patentes. A principal diz respeito a um medicamento para o controle de náuseas e vômitos, o Vonau Flash, criação do Laboratório de Desenvolvimento e Inovação Farmacotécnica da FCF, em parceria com a empresa Biolab Sanus. O contrato de licenciamento foi assinado em 2005 e representa a maior fonte de royalties da universidade.

Uma das principais linhas de pesquisa da unidade hoje envolve o trabalho da bióloga Silvya Stuchi Maria-Engler. Trata-se do desenvolvimento de um modelo de pele artificial para estudar doenças e substituir testes de cosméticos e medicamentos em animais. Entre seus trabalhos mais recentes, destacam-se a criação de uma pele envelhecida para uso em testes de cosméticos antienvelhecimento, a criação de uma epiderme semelhante aos modelos comerciais e a produção de uma versão 3D para estudos sobre câncer de pele (ver Pesquisa FAPESP nº 245).

Léo Ramos Chaves Instalações do Laboratório de Desenvolvimento e Inovação FarmacotécnicaLéo Ramos Chaves

No Departamento de Tecnologia Bioquímico-Farmacêutica, o grupo do engenheiro de alimentos Adalberto Pessoa Junior trabalha na viabilização da produção nacional da L-Asparaginase, enzima usada no tratamento de leucemias linfoides agudas, um tipo de câncer da medula óssea que afeta os glóbulos brancos. O projeto-piloto está em andamento, com o desenvolvimento da molécula e os primeiros testes em escala laboratorial. No Departamento de Farmácia, a equipe da farmacêutica-bioquímica Elizabeth Igne Ferreira investe em estudos de novas formulações de medicamentos usados no tratamento das chamadas doenças negligenciadas, causadas por agentes infecciosos ou parasitas e consideradas endêmicas em populações de baixa renda.

A unidade também abriga no Departamento de Alimentos e Nutrição Experimental o Centro de Pesquisa em Alimentos (Forc), um dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid) apoiados pela FAPESP. Outra inovação é a criação do primeiro curso de residência em farmácia clínica e atenção farmacêutica de São Paulo, em parceria com o Hospital Universitário. “Consiste em um programa de dois anos, no qual o profissional tem a oportunidade de passar por diferentes clínicas e Unidades Básicas de Saúde [UBS], podendo depois escolher uma especialidade.”

Léo Ramos Chaves Laboratório de Análises Toxicológicas, um dos carros-chefe da faculdadeLéo Ramos Chaves

Outra novidade no âmbito da graduação e pós-graduação foi a criação da Farmácia Universitária (FarmUSP), que se propõe a dar seguimento à atenção farmacêutica.“O médico faz o diagnóstico e prescreve o medicamento, mas é no consultório farmacêutico que o indivíduo receberá a orientação do profissional de farmácia em relação ao uso da medicação e sua evolução terapêutica”, explica Primavera.“Há um novo modelo de farmacêutico, mais atento ao paciente e mais ativo nas equipes multidisciplinares de saúde, e o curso de farmácia está se adequando a isso.”

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