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Entrevista

Fabrício Bloisi: Local com mentalidade global

O presidente da Movile fala do futuro do iFood, que recebeu US$ 500 milhões em investimento, e defende a internacionalização de empresas inovadoras

Para Bloisi, muitas outras jovens empresas brasileiras valerão mais de US$ 1 bilhão em um futuro próximo

Marcus Steinmeyer / Movile

Em meados de novembro o presidente da Movile, Fabrício Bloisi, anunciou que o aplicativo de entrega de comida iFood havia recebido de investidores um aporte de US$ 500 milhões, o maior já captado por uma startup na América Latina. Com esse dinheiro em caixa, a expectativa era de que tanto o aplicativo quanto a Movile, sua principal investidora, se transformassem em unicórnios, empresas cujo valor é igual ou superior a US$ 1 bilhão. Bloisi surpreendeu ao contar que as duas já haviam garantido esse status nos primeiros meses de 2017, embora o fato não tivesse sido divulgado. Para o empresário, essa marca é mais um número que ficou para trás – seus esforços agora estão concentrados em multiplicar por 10 o valor da empresa nos próximos anos, uma meta factível em razão do potencial internacional representado pelo mercado on-line de pedidos de alimentos.

Os US$ 500 milhões investidos no iFood vieram de várias fontes. A Movile fez um primeiro aporte de US$ 100 milhões no meio de 2018. Os demais US$ 400 milhões vieram no final deste ano do grupo sul-africano Naspers, da Innova Capital – do investidor suíço-brasileiro Jorge Paulo Lemann –, do Just Eat, maior mercado digital do mundo de delivery on-line de comida, com sede em Londres, e, mais uma vez, da Movile. A quantia será aplicada para acelerar o crescimento da marca no Brasil e no exterior e aumentar significativamente o número de restaurantes cadastrados (hoje são 50 mil), entregadores, cidades e, consequentemente, pedidos. O mesmo aplicativo está presente também no México e na Colômbia. No total, são realizadas 12 milhões de entregas mensais. É um dos maiores serviços do tipo do mundo.

A Movile começou a investir no iFood em 2013 e hoje é dona de 60% de seu capital. A companhia presidida por Bloisi engloba várias startups como a PlayKids, de conteúdo educativo; a Wavy, que reúne negócios de tecnologia da informação; a Sympla, de venda de ingressos; e a Zoop, plataforma de pagamentos e serviços.

Como ocorre frequentemente com empresas de base tecnológica, a Movile nasceu – com outro nome – em uma universidade, a Estadual de Campinas (Unicamp), e passou por sucessivas transformações à medida que crescia. Bloisi e Fábio Póvoa, colegas na graduação, criaram em 1998 a Intraweb, que oferecia softwares e soluções em tecnologia da informação. A empresa ficou incubada na Companhia de Desenvolvimento do Polo de Alta Tecnologia de Campinas (Cietec) e em 2001 foi comprada pela GoWapCorp.

No ano seguinte mudou o nome para Compera. Em 2007, uniu-se à Movile e adotou esse nome. Desse período em diante, a empresa comandada por Bloisi passou por várias outras fases, incluindo novas fusões e aquisições de empresas no Brasil e em países latino-americanos. Nesta década, transformou-se em um grupo de capital de risco com 2.200 funcionários, sede em Campinas e 16 filiais na América Latina, França e Estados Unidos.

Bloisi é baiano e tem 41 anos. Decidiu trocar Salvador pelo interior paulista para estudar ciências da computação na Unicamp, em 1995. Formou-se em 1998 e entrou para um mestrado da Fundação Getulio Vargas em São Paulo (FGV-SP), durante o qual estudou modelos e estratégias de crescimento de startups entre 2005 e 2008. Nesta entrevista, ele fala dos planos para a expansão do iFood, das unidades do Grupo Movile e dá a sua visão de como as empresas brasileiras deveriam fazer inovação, sempre de olho no mercado internacional.

“É preciso acreditar no potencial disruptivo da tecnologia e saber que trilhões de dólares irão para empresas inovadoras nos próximos anos”

Recentemente você contou que o iFood e a Movile já são unicórnios desde o começo de 2017. Até agora, apenas Nubank, 99 e PagSeguro haviam anunciado que alcançaram esse status. Por que você não fez o mesmo? Não é um bom marketing?
Nós não costumamos abrir números. Além disso, estamos mais focados em ser uma empresa de mais de US$ 10 bilhões, pensamos e sonhamos muito grande. A China tem centenas de empresas de US$ 300 bilhões, os Estados Unidos, de US$ 1 trilhão. Mas, no Brasil, costuma-se sonhar em ter apenas US$ 1 bilhão. Dá para fazer muito mais no nosso mercado. Tornou-se moda falar sobre ser um unicórnio. Embora eu ache que essa nomenclatura crie uma distração, tenho certeza de que a partir de agora não veremos apenas unicórnios no Brasil, mas empresas que valem muito mais do que isso. Estamos só começando. Queremos passar esse otimismo para as empresas brasileiras. A região é um destaque de investimentos em empresas de tecnologia.

A iFood faz 12 milhões de entregas mensais de comida no Brasil, além da Colômbia e do México. Em quais áreas os US$ 500 milhões serão investidos?
Crescemos mais de 100% ao ano e há muito espaço e apetite para crescer. Queremos dobrar o número de entregadores e de cidades atendidas, além de triplicar o número de restaurantes cadastrados no aplicativo – hoje em cerca de 50 mil – e também de pedidos. Esse investimento irá acelerar o crescimento, o desenvolvimento de produtos e a expansão geográfica do iFood. Queremos investir mais em inteligência artificial e pagamentos, reduzindo o custo e aumentando a qualidade, melhorando assim a experiência dos nossos principais parceiros e clientes: restaurantes, entregadores e usuários. Nossa meta é crescer exponencialmente.

A líder norte-americana do setor, a Grubhub, tem 410 mil pedidos de refeições por dia, pouco mais do que o iFood, com 390 mil. Vocês alcançarão o primeiro lugar?
Estamos crescendo duas vezes mais rápido que o Grubhub em número de pedidos por dia em termos de porcentagem anual. Fomos de 187 mil pedidos por dia, em outubro de 2017, para mais de 390 mil por dia, em outubro de 2018. O food delivery on-line está passando por uma incrível expansão globalmente e acreditamos que, comparando nossos últimos números aos dos principais players globais, estamos colocando o Brasil cada vez mais no mapa do food delivery.

Há a possibilidade de o iFood receber novos aportes no próximo ano?
Acredito que sim, mas ainda não há nada previsto. É ótimo para a Movile ter investidores de longo prazo que nos apoiaram na última década. Assim, nosso grupo poderá continuamente apoiar o iFood para garantir que ele se mantenha como líder de mercado.

Está no seu horizonte realizar uma IPO – a oferta pública inicial ou abertura de capital – do iFood ou da Movile?
Não pensamos nisso porque não estamos precisando de capital, no momento. O iFood poderia facilmente fazer uma IPO hoje. Mas temos melhor acesso ao capital como empresa privada com a vantagem de não ter de dizer ao mundo o que estamos fazendo. Não temos uma projeção exata para o iFood, mas queremos crescer mais de 10 vezes.

Léo Ramos Chaves Entregadores de comida do aplicativo iFood em São Paulo: empresa quer manter crescimento exponencialLéo Ramos Chaves

Qual é o valor de mercado da Movile hoje?
Não podemos dizer. No início de 2017 superamos o valor de US$ 1 bilhão.

Qual é a segunda maior empresa controlada pelo seu grupo hoje?
A iFood é a maior. Em segundo lugar vem a Playkids, plataforma líder global em conteúdo educativo para as famílias. Fazem parte o Playkids, aplicativo da categoria infantil educativa mais baixado do mundo; a Leiturinha, maior clube de assinatura de livros infantis do Brasil; o PlayKids Explorer, clube de assinatura de atividades educativas; e a Loja Leiturinha, marketplace com seleção dos melhores produtos infantis disponíveis no mercado. Além disso, outras empresas fazem parte do grupo, como a Wavy, que reúne mensageria, conteúdo e outros negócios com operadoras de telefonia móvel e televisão. É líder na América Latina e um dos maiores do mundo nesse segmento, com receita anual média de R$ 100 milhões, 100 milhões de usuários ativos e 400 empresas parceiras. Temos a Sympla, uma plataforma completa para venda e gestão de ingressos e inscrições para todos os tipos de evento. A empresa já vendeu mais de 4 milhões de ingressos em 2 mil cidades, em mais de 50 mil eventos, realizados por 10 mil produtores. Em média, sete ingressos são vendidos a cada minuto. Também investimos no início do ano na Zoop, uma plataforma aberta de pagamentos e serviços financeiros as a service, com tecnologia financeira focada em habilitar outras empresas a desenvolverem suas próprias soluções de pagamento e serviços financeiros.

Há um movimento claro para se pesquisar e usar mais IA, a inteligência artificial, no mundo todo, incluindo o Brasil. As empresas do grupo Movile, todas de base tecnológica, já usam o recurso comumente?
Sim, as empresas já utilizam, mas queremos fomentar cada vez mais a IA dentro do grupo, por considerarmos que a oportunidade é enorme. Queremos ser referência mundial em IA obtendo um conhecimento mais profundo dos consumidores para personalizar a sua experiência. Ninguém está investindo em IA no Brasil devidamente. Como país, estamos atrasados nesse jogo, mas temos de mudar esse cenário para garantir nossa competitividade. Como empresa, estamos fazendo muito nesse sentido e queremos nos tornar líderes regionais no desenvolvimento de soluções baseadas em inteligência artificial.

Você já declarou que as empresas de tecnologia no Brasil pensam pequeno e deveriam olhar mais longe. A seu ver, por que isso ocorre?
É preciso ser local com uma mentalidade global. Aprender com os líderes de mercado é essencial. O que fazemos no iFood é referência mundial em food delivery, comparável aos grandes players norte-americanos e europeus. Acredito que temos um enorme potencial como país e que podemos ter muitas empresas de US$ 10 bilhões. Na Movile, trabalhamos para atingir esse objetivo, capacitando empresas com potencial global para expandir o ecossistema brasileiro. Tornar-se global deixou de ser uma opção – é uma necessidade. Portanto, ao visar apenas o mercado interno e não planejar uma estratégia para impactar vidas de maneira global, várias empresas brasileiras têm sido reféns de suas próprias limitações.

Como sair dessa armadilha e criar um ecossistema de inovação realmente produtivo para o país?
É preciso pensar grande e focar em construir empresas globais. Não precisamos ter síndrome de inferioridade. Vejo pessoas culpando a crise econômica e os problemas do nosso país. Essas questões não facilitam a vida, mas tenho certeza de que uma parcela da culpa é dos empreendedores. Temos de fazer nossa parte – é preciso acreditar no potencial disruptivo da tecnologia, e saber que trilhões de dólares irão trocar de mãos para empresas novas e inovadoras nos próximos anos, fomentar a inovação e investir cada vez mais em iniciativas que acelerem a transformação com tecnologia. Podemos perceber um grande movimento de crescimento nessa área nos últimos anos, grandes investidores começaram a olhar para a América Latina e acredito que a tendência será de muito crescimento. Exemplo disso são os grandes investimentos da China, a IPO do PagSeguro, o surgimento de unicórnios como 99 e Nubank, entre outros.

Mesmo com limitações, as universidades brasileiras, especialmente as públicas, formam profissionais capazes de solucionar problemas tecnológicos. A Movile recruta gente diretamente nas universidades?
Sim, temos parcerias com diversas empresas juniores e universidades do país, como UFSCar [Universidade Federal de São Carlos], USP [Universidade de São Paulo], Unicamp, UFPE [Universidade Federal de Pernambuco], entre outras. Acreditamos no conhecimento que é produzido na academia, temos diversos programas de estágio.

Seu mestrado na FGV teve como tema a modelagem do processo de crescimento acelerado de startups. O quanto a pós-graduação o ajudou profissionalmente?
Acredito que a minha pós-graduação foi fundamental para o crescimento da Movile. Estudei como as empresas internacionais crescem, inovam, as estratégias de consolidação mais eficazes, e pude aplicar tudo isso no aprimoramento do grupo que presido. E, sem dúvida, coloquei meu mestrado em prática mudando a estratégia da empresa. Acredito muito nos estudos e não creio na divisão acadêmico versus prático – acredito nos dois. É necessário ser acadêmico para aprender e colocar isso em prática, e esse foi o meu caso. Incentivo bastante as pessoas a continuar estudando o tempo inteiro. Depois de minha pós-graduação na FGV, fiz cursos na Universidade Stanford e agora estou entrando em outro, em Harvard, nos Estados Unidos. Ter a capacidade de aprender constantemente é o que me capacita a manter uma empresa que está sempre mudando e inovando.

Durante sua graduação na Unicamp, você participou de um projeto temático do professor Secundino Soares Filho, sobre sistemas de energia elétrica, por meio de uma bolsa de iniciação científica da FAPESP. A experiência o ajudou de alguma maneira ao se lançar como empreendedor de empresas de base tecnológica?
A iniciação científica foi minha primeira conexão com a inovação, a academia e o primeiro passo para começar a pensar em um mestrado. Foi importante para me conectar melhor com a Unicamp, interagir mais com meus colegas e professores, além de me expor a novas experiências e aprendizados na área de tecnologia. No período em que eu estava fazendo a iniciação científica, ocorreu o mais interessante: comecei a materializar a possibilidade de abrir uma empresa. Acabei colocando a teoria em prática.

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