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Entrevista

Alexandre Antonelli: À frente da ciência dos jardins reais

Biólogo brasileiro assumirá em fevereiro o cargo de diretor científico de Kew Gardens, no Reino Unido

Antonelli: disposto a aproximar os pesquisadores entre si e com os jardineiros, como fez em Gotemburgo

Erik Thor/Young Academy of Sweden

Em 1996, aos 17 anos, Alexandre Antonelli, natural de Campinas, entrou no curso de biologia na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Um chamado à aventura foi irrecusável e seis meses depois ele trancou a matrícula para passar um ano e meio viajando pela Europa de carona e mochila nas costas. Depois percorreu a América Central e conheceu a futura esposa, sueca, em Honduras, quando trabalhavam em uma escola de mergulho. Foi com ela para Gotemburgo, na Suécia, e lá ficou. Recomeçou o curso de biologia na Suécia e fincou raízes na biogeografia, para ver como plantas de regiões neotropicais como a Amazônia evoluíram e conquistaram seus espaços. No doutorado, fez coletas na Amazônia pela primeira vez, em 2003.

Em 2010, após um pós-doutorado na Suíça, voltou para Gotemburgo, contratado como curador do Jardim Botânico da cidade, o maior da Escandinávia, com 16 mil espécies de plantas. Cinco anos depois tornou-se professor de biodiversidade da Universidade de Gotemburgo. Em 2017, ele criou o Centro de Biodiversidade Global de Gotemburgo, atualmente com cerca de 10 milhões de exemplares de animais e plantas.

Aos 40 anos, casado com Anna, gerente de uma clínica psiquiátrica, com três filhos – Gabriel, de 14 anos, Clara e Maria, de 12 – e cidadania brasileira, sueca e italiana, Antonelli estava na Universidade Harvard no final de junho de 2018 como professor visitante quando recebeu um convite para se candidatar ao processo de seleção para o cargo de diretor científico dos Jardins Botânicos Reais em Kew, ou Kew Gardens, em Londres, um dos maiores do mundo. A instituição reúne 22 mil espécies de plantas no jardim e 7 milhões nos herbários, além de 1,2 milhão de amostras de fungos e um banco com 2 bilhões de sementes de quase 40 mil espécies.

Em outubro, ao comunicar publicamente sua nomeação, o diretor de Kew, Richard Deverell, comentou: “A experiência e as especializações científicas de Alex complementam e ampliam os pontos fortes de Kew. Estamos entusiasmados por ele poder aplicar sua experiência e ambição para aumentar ainda mais a qualidade e o impacto global de nossa ciência. Estou confiante de que ele inspirará não apenas os cientistas e estudantes de Kew, mas também uma nova geração, através do engajamento e da divulgação da ciência”.

Antonelli assumirá em 4 de fevereiro com a tarefa de reforçar a integração entre os 320 pesquisadores e fortalecer o prestígio, a visibilidade e a produção científica de Kew. Um de seus planos é intensificar a colaboração com pesquisadores brasileiros – e não apenas de botânica –, como ele conta na entrevista a seguir.

Vou fazer o possível para que pesquisadores brasileiros possam usar as coleções de Kew da forma menos burocrática possível

O que pretende fazer como diretor científico de Kew?
Ainda não consolidei os planos. Nos primeiros meses, a partir de fevereiro, quero conhecer melhor as áreas de atuação, as necessidades e os planos de cada grupo do jardim botânico. São oito departamentos e cerca de 25 grupos de pesquisa. Uma das prioridades é ampliar e fortalecer os cursos de mestrado e doutorado em botânica e ecologia, aproveitando os recursos humanos de Kew, com mais de 320 pesquisadores, e as imensas coleções. Com minha predecessora, Kathy Willis, Kew fez um plano estratégico para a pesquisa científica de 2015 até 2020. Agora uma das tarefas é esboçar e liderar o plano estratégico para os cinco anos seguintes, até 2025, e trabalhar o documento lançado há alguns meses sobre a estratégia de manutenção e expansão das coleções até 2030. Temos de consolidar esses planos antes de incorporar minhas ideias e os desafios, como as mudanças climáticas. Temos de pensar não apenas as ameaças à biodiversidade, mas também as possibilidades de trabalho, com o estudo das coleções botânicas.

Como pretende integrar a coleção viva, das plantas cultivadas no jardim botânico, e o herbário de Kew?
Umas das coisas que pretendo lançar logo depois de assumir é um projeto de digitalização das coleções vivas e do herbário. Meu sonho é que qualquer visitante possa abrir a câmera do smartphone e, com uma seta, conhecer mais sobre qualquer espécie de planta, fungo e microrganismo que estiver vendo. Isso vai requerer cerca de 100 a 150 imagens de cada espécie em diferentes níveis de desenvolvimento, antes de florescer, com flores e frutos. Estamos discutindo também um novo edifício para a renovação do herbário, que será um prédio muito grande, e integrar os dois prédios de pesquisa de Kew. O laboratório ainda é separado do herbário. Queremos unir, para aumentar a sinergia entre os pesquisadores. Outro objetivo é fortalecer o elo entre os jardineiros, que cuidam das coleções vivas de plantas, e os pesquisadores, que trabalham principalmente com o herbário. Como curador científico das coleções tropicais do Jardim Botânico de Gotemburgo, participei de uma viagem de coleta na África do Sul. Metade da equipe era pesquisador e a outra metade jardineiro. Foi ótimo. Pode haver uma troca muito rica de conhecimento entre quem pratica o cultivo e quem estuda a planta na natureza. O botânico costuma pegar a planta que seja representativa do padrão de uma espécie, enquanto o jardineiro observa outras caraterísticas que o botânico nem se dá conta, como a variação de tamanho e cores entre plantas da mesma espécie. Também há diferenças. O pesquisador da universidade começa a trabalhar tarde, às vezes às 10h, e o jardineiro tem de começar às 6h30.

O que aprendeu em Gotemburgo que pode ser útil agora?
Algo de que gosto muito na Escandinávia é a falta de hierarquia nas organizações. Tanto no meio universitário como no jardim botânico existe uma abertura muito grande a diferenças de opiniões e aos processos de decisão. Minha impressão é de que na Inglaterra a formalidade é muito maior e cada pessoa tem um lugar bem definido no organograma. Vou trabalhar para aumentar a colaboração entre grupos de pesquisa e departamentos. É importante que os pesquisadores não se sintam infringidos mentalmente e na prática pela estrutura da organização.

Como foi o processo de seleção para o cargo de diretor científico?
No final de junho, Tomas Borsa, representante da empresa Perrett Laver, de Londres, contratada para cuidar da seleção de candidatos para o cargo, me contatou. Eu nem sabia da vaga. Estava trabalhando como professor visitante de [Universidade] Harvard, chamado pelo David Rockefeller Center for Latin American Studies. Segundo Tomas, achavam que eu poderia ser candidato e ele me perguntou se eu estaria interessado. Havia outros, mas me senti muito honrado, porque esse trabalho é o sonho de qualquer biólogo. Mandei meu currículo e uma carta explicando por que gostaria de trabalhar lá. Estou muito feliz com o que fiz na Universidade de Gotemburgo. Tenho um grupo de pesquisa excelente, que formei nos últimos oito anos, depois que voltei de um pós-doutorado na Suíça. Essa é uma oportunidade única de influenciar os estudos sobre biodiversidade de uma forma que seria muito rara em um cargo universitário. Em dezembro fui à festa de Natal de Kew e no dia 11 dei uma palestra aos 320 pesquisadores. Como não havia espaço para todos no auditório, tiveram de alugar uma igreja. Apresentei meus objetivos, fui muito bem recebido e só tive comentários positivos.

Como está Kew atualmente?
Está muito melhor hoje do que há alguns anos. Houve uma reestruturação – até mesmo dramática – há quatro anos e muita gente perdeu o emprego. Kew nunca fez tanta pesquisa e teve tantos pesquisadores como hoje. O número de funcionários do jardim botânico é mais de mil e há também 800 voluntários trabalhando lá. É a maior instituição de pesquisa botânica do mundo.

O Brexit, a saída do Reino Unido da União Europeia, pode atrapalhar o trabalho e o financiamento da pesquisa?
Existem ainda muitas questões não decididas, como o acesso aos programas europeus de financiamento à pesquisa, que sempre atraiu muito o Reino Unido. Há grande preocupação entre os pesquisadores para saber o que vai acontecer a partir de março. Está bem caótico. Quando assumir, vai ser um período turbulento. Outro desafio é convencer a população e o governo de que Kew é muito importante para o país manter as metas de desenvolvimento sustentáveis propostas pelas Nações Unidas. Das 17 metas, pelo menos quatro estão diretamente ligadas à biodiversidade. Trabalhamos com pesquisa, conservação e preservação, mas a segurança alimentar também está muito relacionada à pesquisa botânica. Fazer as pessoas entenderem a importância da pesquisa e da produção científica é um trabalho constante, que precisa de reforços. Em 2019 vamos fazer dois festivais de ciência para motivar estudantes e professores a encontrar os pesquisadores e visitarem as coleções. São eventos simples, mas muito importantes para manter o elo direto com a população.

Diliff/Wikimedia Commons Vista do jardim e do viveiro de palmeiras de Kew Gardens, uma das maiores instituições de pesquisa botânica do mundoDiliff/Wikimedia Commons

A colaboração Kew-Brasil está um pouco desacelerada no momento, após o término do Projeto Reflora em Kew. Como pretende trabalhar essa área?
Kew tem colaborações com 110 países, a meu ver é essencial ampliá-las, com ganhos para todos, mas não poderia dizer, sem uma discussão interna. Preciso entender quais colaborações e áreas seriam mais estratégicas para fortalecer. Como brasileiro e biólogo tropical, tenho muito interesse em fortalecer as colaborações com o Brasil. Vou fazer o possível para que pesquisadores brasileiros possam usar as coleções e estabelecer vínculos individuais e institucionais com Kew da forma menos burocrática possível.

Com quem você colabora aqui no Brasil?
Tenho muitas colaborações e recebo muitos alunos brasileiros de doutorado, pesquisadores em pós-doutorado e professores visitantes. Estou trabalhando com Rosane Collevatti, professora da Universidade Federal de Goiás, que está aqui, em Gotemburgo, por um mês. Trabalho com André Olmos Simões e Maria Fernanda Calió, da Unicamp, Lucia Lohmann e José Rubens Pirani, da USP [Universidade de São Paulo], e Fernanda Werneck, do Inpa [Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia]. No início de outubro estive na Universidade Federal do Rio Grande do Norte para dar um curso de doutorado, com a professora Fernanda Antunes Carvalho. Tenho ido ao Brasil e à América Latina três ou quatro vezes por ano para trabalhos de campo e conferências. A maior parte de minha pesquisa fiz no Amazonas e nos Andes.

Em um artigo de outubro na PeerJ, com outros autores, você propõe a biogeografia transdisciplinar, uma área que poderia reunir não apenas biólogos, mas também geólogos, climatólogos e paleontólogos, para entender melhor a evolução e a formação da paisagem. Tem trabalhado com pesquisadores de outras áreas?
Sim, e tem sido maravilhoso trabalhar com geólogos, matemáticos e outros profissionais, que veem o mesmo problema de forma diferente. Mas é um processo longo. Um artigo sobre a influência do clima e da geologia na biodiversidade de montanhas que saiu em outubro na Nature Geoscience reuniu climatólogos, geólogos, botânicos, ecólogos, um pouco de tudo, e levou três anos para ser feito, porque as discussões eram muito complexas. Sempre me interessei em comparar as plantas com outros grupos de seres vivos. Tenho vários trabalhos sobre análise de biodiversidade de serpentes com Thaís Barreto Guedes e Cristiano de Campos Nogueira, os dois da USP. Um dos alunos de doutorado que está aqui em Gotemburgo é o Josué Anderson, também trabalhando com serpentes. Em termos de metodologia, o trabalho com plantas e com animais é muito similar, porque fazemos análises moleculares e comparamos a evolução e a história de grupos para encontrar padrões de biodiversidade. Se encontramos padrões similares de diversidade de plantas e animais, isso sugere que há fatores ambientais influenciando. De modo geral, quanto maior heterogeneidade de ambientes, maior o número de espécies numa mesma área. Mas há muita diferença entre as métricas para medir biodiversidade. Como Josué tem visto, métodos morfológicos e moleculares podem levar a respostas diferentes. Quantificar a biodiversidade é uma tarefa muito difícil. Uma aluna de doutorado, Camila Duarte Ritter, que terminou o trabalho há dois meses, estudou insetos e microrganismos de solo do Amazonas. Quando se fala em biodiversidade grande, as pessoas pensam muito em mamíferos e aves, mas a maior parte é de microrganismos, fungos e insetos. Estamos vendo uma biodiversidade muito maior e encontrando padrões muito diferentes dos de plantas e aves.

Como foi seu trabalho na Suécia?
Tive muita sorte com financiamento tanto na Suécia como na Comunidade Europeia, o que permitiu criar um grupo forte de pesquisa e o centro de biodiversidade de Gotemburgo, que reúne 13 instituições da Suécia. O centro tem dois focos: avançar a pesquisa científica e aumentar o contato entre os cientistas e a população. Temos trabalhado muito com eventos públicos, para criar novas ligações entre o público geral, empresas e pesquisadores. Há dois meses trouxemos o [naturalista e apresentador britânico da rede de televisão BBC] David Attenborough e temos feito palestras e exibido filmes que atraem muita gente.

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