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Engenharia Hídrica

Para tirar o sal da água

Ceará planeja construir a primeira grande usina de dessalinização do país; novas tecnologias são pesquisadas no Brasil e no exterior para reduzir o custo do processo

James Grellier/Wikimedia Commons Usina de dessalinização por osmose reversa de Barcelona, na EspanhaJames Grellier/Wikimedia Commons

Um dos estados brasileiros mais castigados pela falta de chuvas e escassez hídrica, o Ceará prepara-se para construir a maior usina de dessalinização de água marinha do país. Quando estiver pronto, o empreendimento, cujo projeto foi iniciado em 2016, irá reforçar o sistema de abastecimento da capital, Fortaleza, e dos municípios da região metropolitana, uma mancha urbana onde vivem mais de 4 milhões de pessoas. A expectativa da Companhia de Água e Esgoto do Ceará (Cagece), empresa de saneamento responsável pelo projeto, é de que o edital de licitação seja lançado ainda neste semestre. Os estudos técnicos, operacionais, ambientais e econômicos que estão sendo usados para a elaboração da concorrência pública foram feitos por um consórcio liderado pelo Grupo GS, da Coreia do Sul.

Ronner Gondim, superintendente de sustentabilidade da Cagece, explica que a construção da planta, prevista para começar a operar em 2022, será feita a partir de uma parceria público-privada (PPP), cujos detalhes serão definidos pelo edital. O local de instalação ainda não foi escolhido, mas cogita-se a praia de Mucuripe, próxima ao porto de Fortaleza. A usina está sendo projetada para produzir 1 metro cúbico (m3) de água por segundo (o equivalente a mil litros) – a Região Metropolitana de Fortaleza consome 8 m3 por segundo. “Teremos um aumento de 12% na oferta de água na região, o suficiente para abastecer cerca de 720 mil pessoas”, ressalta. O valor estimado do projeto gira em torno de R$ 480 milhões.

“A empresa vencedora assumirá a construção e o direito de operação por 30 anos”, diz Gondim. O governo cearense vai estipular uma tarifa máxima por litro de água dessalinizada. O vencedor da licitação será quem oferecer a menor tarifa. Hoje, o valor médio praticado pela Cagece para tratar 1 m3 de água doce está em torno de R$ 3. O custo médio da água dessalinizada ao redor do mundo começa em US$ 2 (cerca de R$ 8) o metro cúbico, a depender do processo usado.

A expectativa é de que a nova usina retire o sal da água marinha por meio da técnica de osmose reversa, embora a definição final caiba ao vencedor da licitação. Esse é o método de dessalinização mais barato e usado no mundo. Nele, uma bomba de alta pressão força a água a passar por membranas poliméricas com orifícios minúsculos, que retêm os sais. O gasto energético desse processo chega a 4 quilowatts-hora (kWh) por m3 de água purificada. A tecnologia representa 84% do total de operações de dessalinização no mundo. Israel é um dos pioneiros no uso do sistema. A cada ano, 600 milhões de m3 de água do mar são transformados em potável no país, atendendo as necessidades de 6,5 milhões de pessoas, cerca de 75% da população israelense.

Atualmente 15,9 mil plantas de dessalinização encontram-se em operação no planeta, com capacidade para purificar cerca de 95 milhões de m3 de água por dia, segundo estudo publicado em dezembro de 2018 na revista Science of the Total Environment. Essas usinas estão localizadas principalmente no Oriente Médio, norte da África, Estados Unidos, China e Austrália. Na Europa, a Espanha é o principal país a usar a tecnologia. A planta de Barcelona, na costa do Mediterrâneo, com capacidade para processar 2,3 m3 de água por segundo, é uma das principais do continente.

Infográfico Alexandre Affonso (concepção e ilustração)

Custo é entrave
Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos estão entre os países que mais usam a tecnologia para a produção de água potável a partir da água do mar. A maior usina do mundo, a de Ras Al-Khair, com produção de 1 milhão de m3 de água por dia (11,5 m3 por segundo), fica na Arábia Saudita. A técnica mais comum por lá é a dessalinização térmica, na qual a água salgada é armazenada em tanques aquecidos. Quando evapora, acumula-se na parte superior do reservatório e, ao se condensar, transforma-se em água pura, sem os sais (ver infográfico).

Um dos problemas da dessalinização térmica é a elevada demanda de energia, que pode chegar a 15 kWh/m3. A principal fonte de energia térmica usada no processo são combustíveis fósseis, como petróleo e gás, abundantes naquela região. O custo da dessalinização térmica é por volta de três vezes maior do que o da técnica de osmose reversa, chegando a cerca de US$ 6 por m3 de água tratada.

Pesquisadores de vários países estudam novos sistemas de dessalinização mais eficientes e econômicos – o alto consumo de energia é o  principal entrave para a adoção em larga escala da dessalinização, sobretudo em países em desenvolvimento. Uma das novas tecnologias em estudo é a deionização capacitiva, processo eletroquímico que retém os íons da água no momento em que ela passa entre dois eletrodos porosos de carbono eletricamente carregados. “A deionização capacitiva ainda está em desenvolvimento, mas tem se mostrado promissora. No caso da dessalinização de águas salobras, é até mais barata do que a osmose reversa”, diz o engenheiro químico Luís Augusto Martins Ruotolo, do Departamento de Engenharia Química da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). No mundo, os principais grupos dedicados a essa técnica estão na Universidade Stanford, no Laboratório Nacional Lawrence Livermore, no Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), todos nos Estados Unidos, e no Centro Europeu de Excelência em Tecnologias para Água Sustentável (Wetsus), na Holanda.

Segundo Ruotolo, a principal vantagem desse sistema é que, ao contrário da osmose reserva, pressões elevadas não são necessárias para a operação do equipamento. “Isso implicaria uma diminuição da demanda energética e dos custos de operação”, explica. No Brasil, o grupo de Ruotolo desenvolveu um processo de deionização capacitiva à base de carvões ativados com poros nanométricos (ver Pesquisa FAPESP nº 262).

Outra estratégia que vem ganhando destaque é o uso de membranas feitas de óxido de grafeno, caracterizadas como folhas de carbono com espessura atômica, em sistemas de osmose reversa. A ideia é usá-las como uma peneira para remover o sal da água marinha ou salobra, como a encontrada em poços perfurados no semiárido brasileiro. Estima-se que seu emprego reduza em até 50% o gasto energético para bombear a água pelos filtros. Isso porque há menos atrito quando se força a passagem da água salgada por membranas de grafeno em comparação com as tradicionais de polímero.

Cientistas ao redor do mundo têm se debruçado sobre essa tecnologia. No Brasil, pesquisadores das universidades Estadual da Paraíba (UEPB), Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e Federal da Paraíba (UFPB) trabalham na criação de membranas nanoestruturadas de grafeno para dessalinizar água salobra. Além da redução do custo, outra vantagem desse método é que os filtros de grafeno não precisam ser limpos com a mesma frequência dos filtros de membranas de osmose reversa. O grafeno também é imune aos efeitos do cloro, usado durante o processo de limpeza e que reduz a integridade estrutural das membranas poliméricas, fazendo com que precisem ser substituídas com mais frequência.

Marcelino Lourenço Ribeiro Neto/Embrapa Irrigação de plantação no semiárido nordestino com rejeito do processo de dessalinizaçãoMarcelino Lourenço Ribeiro Neto/Embrapa

Dessalinização no Brasil
A usina de dessalinização do Ceará deverá ser a maior, mas não a primeira, a operar no Brasil. Há quase duas décadas o arquipélago de Fernando de Noronha tem um pequeno sistema de dessalinização capaz de produzir cerca de 720 m3 de água por dia. A produção responde por 40% da demanda hídrica do arquipélago. O restante vem da água das chuvas. Algumas comunidades do semiárido brasileiro também contam com o auxílio de dessalinizadores para tornar a água salobra obtida de poços artesianos adequada ao consumo humano. “Todos usam o método de osmose reversa”, esclarece a engenheira química Weruska Brasileiro Ferreira, do Departamento de Engenharia Sanitária e Ambiental da UEPB.

A distribuição e a instalação desses aparelhos vêm sendo feitas desde a década de 1990 por várias instituições. A partir de 2011, o governo federal desenvolveu uma metodologia que deu base ao Programa Água Doce e que incorpora cuidados técnicos, sociais e ambientais visando uma maior sustentabilidade no funcionamento dos sistemas de dessalinização. Por meio do programa, foram implantados 605 dessalinizadores, beneficiando cerca de 240 mil pessoas em 174 municípios.

Segundo o engenheiro civil Alexandre Saia, coordenador de dessalinização do Ministério do Desenvolvimento Regional, o custo médio de instalação de dessalinizadores no sertão nordestino é de R$ 278 mil por unidade. Cada equipamento produz 4 m3 por dia, o que atende 400 pessoas. Muitos dos sistemas instalados no semiárido, no entanto, estão abandonados por falta de recursos das prefeituras para manutenção adequada.

O engenheiro industrial Antonio Santos Sánchez, da Escola Politécnica da Universidade Federal da Bahia (UFBA), explica que a manutenção envolve sobretudo a troca e a limpeza das membranas que retêm os sais, cuja vida útil é de cinco a nove anos. “Sem a limpeza adequada, a durabilidade do sistema se reduz”, destaca. O custo anual de manutenção gira em torno de R$ 18 mil, segundo a coordenação do Programa Água Doce.

As membranas usadas no Brasil são fabricadas pela companhia norte-americana Dow Chemical. É o mesmo material empregado em dessalinizadores de Israel. O que muda é a quantidade de energia demandada pelo sistema e o tipo de membrana usada no processo. A concentração de sais na água do mar é muito maior do que nos poços do semiárido, o que exige maior gasto de energia e mais membranas para dessalgá-la. Cada litro de água do mar tem mais de 30 mil miligramas (mg) de sal. Já a água dos poços no semiárido apresenta concentração a partir de 5 mil mg de sal por litro, podendo atingir 18 mil mg. O valor considerado adequado para consumo humano pela Organização Mundial da Saúde (OMS) varia entre 250 e 500 mg por litro.

“Cada 2 mil litros de água salobra que passa pelo dessalinizador rendem mil litros de água potável e outros mil litros de água muito salgada, que é o rejeito”, diz o cientista de alimentos Ângelo Paggi Matos, do Departamento de Ciência e Tecnologia de Alimentos da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Seu descarte é um dos problemas associados à dessalinização no país.

Nas usinas que processam água do mar, o rejeito, ou concentrado salino, é devolvido ao oceano. Já nas que operam no semiárido, o descarte inadequado pode comprometer a qualidade do solo, tornando-o improdutivo. Para contornar esse problema, o Programa Água Doce implantou tanques para contenção do concentrado. Por meio de uma parceria com a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) Semiárido, em Petrolina (PE), foram criadas estratégias para o reúso desse rejeito na produção de tilápia e irrigação de mudas de espécies vegetais da Caatinga, como a erva-sal (Atriplex nummularia), empregada como alimento para caprinos e ovinos.

Governo cria centro de pesquisa para o setor
Instituição irá avaliar o desempenho de dessalinizadores usados no país

A fim de impulsionar o desenvolvimento e uso de dessalinizadores no Brasil, o governo federal anunciou em janeiro deste ano a criação do Centro de Testes de Tecnologia de Dessalinização (CTTD), com sede no Instituto Nacional do Semiárido (Insa), em Campina Grande, na Paraíba. O instituto é uma das unidades de pesquisa do Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC). A criação do CTTD foi uma das 35 metas prioritárias da administração federal para os primeiros 100 dias de governo. Os pesquisadores do novo órgão também contam com a infraestrutura do Laboratório de Referência em Dessalinização da Universidade Federal de Campina Grande (UFCG).

“O objetivo do centro é avaliar o grau de maturidade tecnológica dos dessalinizadores em operação no país e dos equipamentos ainda em desenvolvimento”, afirma o engenheiro agrícola Salomão Medeiros, diretor do Insa. “Isso será feito por meio de testes de eficiência dos aparelhos e da avaliação da qualidade da dessalinização, gasto de energia, custo de manutenção, entre outros parâmetros.” Para isso, o governo lançou uma chamada pública para empresas interessadas em enviar seus sistemas para avaliação de desempenho. Por ora, sete companhias foram selecionadas, todas brasileiras.

Medeiros esclarece que o governo ainda não anunciou o valor total a ser repassado ao novo empreendimento, que começou a operar em abril. A iniciativa também pretende estimular o intercâmbio de conhecimento sobre dessalinização entre pesquisadores brasileiros e israelenses. “O domínio dessa tecnologia é estratégico em qualquer país, mesmo naqueles com abundância de água, como o Brasil”, destaca o diretor do Insa.

Projeto
Dessalinização por deionização capacitiva: Desenvolvimento de novos eletrodos e otimização do processo (nº 15/16107-4); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisador responsável Luís Augusto Martins Ruotolo (UFSCar); Investimento R$ 228.804,27.

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