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Ambiente

Como monitorar o fogo

Dados de satélites municiam Inpe e Nasa e confirmam aumento de focos de queimadas na Amazônia

Entre janeiro e agosto deste ano, duas instituições de pesquisa que acompanham a evolução dos focos de queimadas na Amazônia brasileira registraram o maior número de incêndios nesse bioma desde os oito primeiros meses do ano de 2010. O Programa Queimadas, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), contabilizou 46.825 focos de calor; o Global Fire Emissions Database, uma parceria da Nasa, a agência espacial norte-americana, com outras instituições, listou 90.392 pontos de queimadas. Nesse mesmo período em 2010, ano bastante seco, o Inpe registrara 58.476 focos e a Nasa 106.083. Por usarem métodos diferentes, os números absolutos dos dois levantamentos não são iguais. Os registros da agência norte-americana são sempre maiores do que os do instituto brasileiro. Mas há uma explicação técnica para isso.

Para montar sua série histórica, o Inpe utiliza dados de apenas uma das duas passagens diárias do satélite Aqua sobre a Amazônia, a que ocorre por volta das 14 horas (fuso de Brasília), no período do dia em que há usualmente mais queimadas. À tarde, o ar está mais quente, favorecendo o uso e a propagação do fogo na vegetação. Já a Nasa usa informações dos dois sobrevoos do Aqua (o segundo se dá na madrugada) e também das duas passagens do satélite Terra sobre a região, a primeira às 10h30 e a segunda às 22h30. A opção por incluir dados de todos os sobrevoos dos dois satélites pode fazer com que um único incêndio que dure muitas horas seja contabilizado por mais de um satélite e mais de uma vez, o que tende a tornar maiores os números da agência espacial norte-americana.

Entrevista: Alberto Setzer
00:00 / 17:70

Distinções técnicas à parte, ambos os programas têm flagrado, ano após ano, o mesmo padrão de incêndios florestais na região. Quando o número de focos detectados por um dos levantamentos oscila para cima ou para baixo, o mesmo movimento é flagrado pelo outro programa.  “A contagem de focos da Nasa e a nossa são excelentes indicadores da ocorrência de fogo na vegetação e permitem comparações temporais e espaciais para intervalos maiores que 10 dias”, comenta Alberto Setzer, coordenador do Programa Queimadas do Inpe. “Mas não devem ser consideradas como uma medida absoluta da ocorrência de fogo, cuja incidência é maior do que a indicada pelos focos.”

Bruno Rocha / Fotoarena Queimada nas proximidades de Porto Velho, Rondônia, em 9 de setembro passadoBruno Rocha / Fotoarena

Segundo a série histórica produzida pelo Inpe desde 2003, a quantidade de focos de calor nos oito primeiros meses deste ano equivale à metade da registrada entre janeiro e agosto de 2005 (mais de 90 mil pontos de incêndios), o pior ano de queimadas na Amazônia. Nos dados da Nasa, os oito primeiros meses de 2005, com 170 mil focos de calor, também aparecem como o período entre janeiro e agosto com mais incêndios na região. O atual recrudescimento do fogo na Amazônia, embora em patamares mais baixos do que nos piores anos da década passada, é preocupante e pode ser um sinal do que está por vir. O número de focos detectados entre janeiro e agosto deste ano foi o dobro do medido no mesmo período em 2018, tanto na contagem do Inpe como na da Nasa. Historicamente, mais de 50% dos focos de queimadas, às vezes até 80%, ocorrem no terço final de cada ano. Setembro costuma ser o mês mais seco na região e também o campeão histórico de incêndios, sejam de origem natural, causados por raios, ou provocados por ação humana.

“O fogo não é parte do ecossistema amazônico, diferentemente do que ocorre no Cerrado”, explica o cartógrafo Britaldo Soares-Filho, especialista em modelagem ambiental da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). “Ele é uma ferramenta para o desmatamento na região.” Por ser mais seco e ter uma vegetação menos fechada, incêndios naturais são mais comuns no Cerrado; na Amazônia, a floresta é densa e chove mais. Na análise do pesquisador, os focos de queimadas na Amazônia estão essencialmente associados à atividade humana. “Primeiro, são cortadas as árvores pequenas e arbustos do chamado sub-bosque, que são deixados ali para secar. Depois, essa biomassa é incendiada para facilitar a derrubada das árvores maiores. Em alguns casos, são usados motosserras e tratores com grandes correntes para retirar essas árvores.”

Mesmo quando as árvores são derrubadas mecanicamente, as toras remanescentes sem valor comercial precisam ser incendiadas para serem destruídas. Como a ocorrência natural de fogo é rara no bioma Amazônia (não confundir com a definição de Amazônia Legal, que, além da floresta densa, abrange áreas de vegetação de transição, de Cerrado e do Pantanal), pesquisadores atribuem a origem dos incêndios florestais à mão do homem. “Fizemos uma análise e constatamos que, entre janeiro e julho deste ano, os 10 municípios amazônicos que mais registraram focos de incêndio foram também os que tiveram maiores taxas de desmatamento”, explica o ecólogo Paulo Moutinho, do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam), organização não governamental de Belém, no Pará. Líder da lista, Apuí, no sudeste do Amazonas, concentrou 1.754 focos de incêndio e 151 quilômetros quadrados (km2) de desmatamento. A paraense Altamira ficou em segundo lugar em número de focos de queimadas (1.630), mas apresentou a maior área desmatada (297 km2).

Mais da metade dos incêndios florestais na região Norte ocorre no terço final de cada ano, na época mais seca

Mapear a sobreposição entre as queimadas e os desmatamentos não é simples. Muitas vezes, o fogo na parte da floresta denominada sub-bosque pode escapar dos satélites e as toras maiores são incineradas somente meses após seu corte, o que pode dificultar a associação dos incêndios com o desflorestamento. Para seguir o chamado fogo do desmatamento, Moutinho e colegas do Ipam e da Universidade Federal do Acre (Ufac) cruzaram os registros de incêndio com informações meteorológicas sobre chuva na Amazônia. Os dados de precipitação foram fornecidos pelo sistema Chirps, da Universidade da Califórnia em Santa Bárbara, nos Estados Unidos, que combina informação pluviométrica de estações meteorológicas e imagens de satélite para, assim, produzir um registro da distribuição de chuvas com 5 quilômetros (km) de resolução. Em seguida, os pesquisadores cruzaram as informações do Chirps com as do Programa Queimadas, do Inpe. “Neste ano vimos, até agora, uma seca mais branda, mas com uma explosão no número de focos de calor”, resume Moutinho.

Para o engenheiro florestal Tasso Azevedo, coordenador do projeto MapBiomas, iniciativa do Observatório do Clima (ONG que reúne 36 organizações da sociedade civil brasileira) que mapeia o uso da terra no Brasil, as queimadas e os desmatamentos não são fenômenos extremamente planejados. “Como 95% do desflorestamento é ilegal, sua ocorrência está diretamente associada ao risco de o infrator ser pego”, diz Azevedo. “Se o risco é baixo, o desmatamento ilegal vale a pena. O infrator acredita que, ao desmatar e ocupar uma área, vai conseguir regularizá-la.”

Radiação térmica
Desde 1986, o Programa Queimadas (Inpe) mapeia o território nacional usando satélites que detectam radiação térmica emitida por fogo: ondas eletromagnéticas com pico de comprimento de onda entre 3,7 e 4,1 micrômetros. Atualmente, o projeto processa imagens de nove satélites diferentes e usa três tipos de sensores ópticos para gerar o maior número possível de alertas de focos de queima. Útil para monitorar incêndios florestais, o programa também é capaz de localizar áreas em que o fator humano produz grandes aglomerados de focos. Além das queimadas para limpeza de pastos ou preparo de plantios e o fogo do desmatamento, o sistema detecta focos produzidos pela queima do bagaço de cana e incêndios urbanos.

Um foco de calor tão pequeno quanto uma frente de queimada de 30 metros de extensão por 1 m de largura pode ser registrado pelos instrumentos de observação instalados nos satélites. Atualmente, são usadas três gerações de sensores para essa finalidade: o AVHRR, mais antigo; o Modis, de tecnologia intermediária; e o VIIRS, mais moderno. Um instrumento desse último tipo – presente nos satélites Suomi NPP e NOAA-20, da National Oceanic and Atmospheric Administration (NOAA), dos Estados Unidos – detecta 10 vezes mais focos que um Modis a bordo dos satélites Aqua e Terra, ambos da Nasa. Nuvens de chuvas são obstáculos para o bom funcionamento dos sensores, mas não as nuvens de fumaça das queimadas.

O programa Global Fire Emissions Database registra os focos de calor na Amazônia tendo como referência os satélites Terra e Aqua. Além de monitorar a localização dos focos de calor, os satélites registram a intensidade da queimada. Medida como FRP (sigla em inglês para potência radiativa do fogo), essa variável apresentou uma média alta em julho e, em agosto, sofreu uma escalada ainda mais acentuada. “A potência radiativa do fogo é uma medida instantânea da energia emitida”, explica Niels Andela, coordenador das observações do programa da Nasa. “O fogo de desmatamento costuma ter emissões mais energéticas porque é proveniente de madeira acumulada com grande concentração de biomassa. É diferente do que ocorre com o fogo em capim, que tem uma carga combustível menor.”

Se fosse possível observar de forma ininterrupta os focos de queima, as medidas de FRP forneceriam a quantidade de biomassa incinerada. Para isso, seria preciso contar com um fluxo de dados contínuos gerados por satélites geoestacionários – que observam sempre uma mesma região da Terra – com uma resolução melhor do que a atual. Satélites atmosféricos em órbita polar, como o Aqua e o Terra, não se prestam a esse tipo de serviço. “Apesar de serem apenas o retrato de um momento, as medidas atuais de FRP [fornecidas pelo Aqua e Terra] ainda guardam uma correlação forte com a biomassa queimada”, pondera Andela. “Os números médios deste ano são relativamente altos e indicam um fogo associado ao desmatamento.”

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