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Memória

Primeiros voos

Militar alagoano construiu dois modelos de avião nacionais que voaram em 1917 e 1918 no Rio de Janeiro

O Aribu, antes da decolagem. À esquerda, Marcos Villela Júnior; sentado no avião, Raul Vieira de Mello

Gerson Pinto da Silva Souto. Arquivo pessoal de Denizar Villela / Thyrso Villela Neto

Em 19 de julho deste ano, em uma cerimônia no Departamento de Ciência e Tecnologia Aeroespacial (DCTA), em São José dos Campos, interior paulista, o físico Thyrso Villela Neto, pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), recebeu a medalha Mérito Santos-Dumont, concedida a quem tenha prestado serviços relevantes à Aeronáutica. Era uma homenagem póstuma a seu bisavô, Marcos Evangelista da Costa Villela Júnior (1875-1965), o primeiro general aviador do Exército e o primeiro militar a chegar ao posto de brigadeiro da Aeronáutica. Inicialmente autofinanciado e depois com o apoio do Exército, Villela Júnior construiu dois aviões, o Aribu, que voou em 1917, e o Alagoas, em 1918.

“Foram os primeiros aviões militares construídos no Brasil”, afirma o tenente da reserva e historiador Mauro Vicente Sales, professor da rede municipal e estadual do Rio de Janeiro. Os dois aparelhos mostraram a viabilidade da construção de aeronaves no Brasil e fortaleceram a ideia de criação da Aeronáutica, formalmente estabelecida em 1941.

Nascido em uma vila do município alagoano de Pão de Açúcar, atualmente com cerca de 25 mil moradores, o então tenente Villela gostava de montar aviões franceses na fábrica de cartuchos e artefatos de guerra do Exército, no bairro do Realengo, no Rio de Janeiro. Não era o único empolgado com as façanhas do mineiro Alberto Santos-Dumont (1873-1932), que construiu seus próprios aviões em Paris.

Em 1910, em Osasco, então um bairro da capital paulista, voou o São Paulo, projetado e construído pelo industrial espanhol naturalizado brasileiro Dimitri Sensaud de Lavaud (1882-1947) e pelo mecânico italiano Lourenço de Pellegatti (1891-1976), com base no aeroplano francês Blériot, com um motor também francês. Em 1914, o paulista Eduardo Pacheco Chaves (1887-1975), em um avião Blériot, fez em seis horas e meia o primeiro voo sem escalas entre as cidades de São Paulo e Rio. Foram iniciativas isoladas e independentes, diferentemente da do militar Villela Júnior.

Arquivo pessoal de Denizar Villela / Thyrso Villela Neto Já na reserva, como general, em 1929Arquivo pessoal de Denizar Villela / Thyrso Villela Neto

Em 1912, o tenente apresentou o projeto de seu próprio avião ao ministro da Guerra, Vespasiano Gonçalves de Albuquerque e Silva (1852-1924), em busca de apoio financeiro. Não conseguiu – tampouco desistiu. Hipotecou a casa e começou a testar madeiras nacionais para fazer hélices em um terreno do Realengo. Em uma fábrica de Sapopemba, atual bairro de Deodoro, desenvolveu um tecido de algodão resistente para cobrir a fuselagem; o verniz que cobria o avião também foi uma fórmula dele. “Ele próprio fazia tudo”, conta o bisneto Villela Neto. Em seus primeiros trabalhos nessa área, ele reconstruiu um avião Blériot e instalou uma hélice que havia construído em um avião da Marinha usado em levantamentos fotográficos.

Sob o título “Um oficial brasileiro introduz profundas modificações no aeroplano, tornando-o um aparelho perfeitamente novo”, uma reportagem de 24 de julho de 1914 no jornal carioca A Noite descrevia suas inovações, entre elas o encurtamento e alongamento vertical da fuselagem – o corpo do avião –, no sentido vertical, para diminuir as oscilações e ganhar estabilidade, e o assento do piloto abaixo das asas, para ter visibilidade. A estrutura da asa, chamada longarina, era recurvada e um terço dela era articulado, para facilitar manobras e evitar derrapagens. Seu projeto abrigava três passageiros (piloto, observador e mecânico ou artilheiro), com depósitos laterais para munição de guerra.

Feito com madeira de ingarana (Abarema jupunba), o primeiro protótipo ganhou o nome de Aribu, corruptela de urubu, porque seu construtor dizia que observava o voo dessa ave quando era criança. Com 4,8 metros (m) de comprimento, 8,4 m de envergadura e 2,4 m de altura, abrigava um motor francês rotativo de 5 cilindros com 50 cavalos de potência. O Aribu voou em 16 de abril de 1917 no campo de Santa Cruz, pilotado pelo tenente aviador Raul Vieira de Mello (1884-1936), que era também o desenhista técnico dos projetos. Com seu feito, Villela Júnior obteve o apoio do ministro da Guerra, agora o marechal José Caetano de Faria (1855-1936), ganhou acesso ao espaço e a equipamentos do Exército e construiu o Alagoas. Villela Neto estima que era um avião de dimensões maiores que o Aribu.

Na manhã de 11 de novembro de 1918, ao mesmo tempo que na Europa se comemorava o fim da Primeira Guerra Mundial, o Alagoas fez três voos tranquilos – dois deles pilotados por Mello e um pelo próprio Villela Júnior – e atingiu 800 metros de altura no Campo dos Afonsos. Após o primeiro voo, o ministro da Guerra abraçou Mello e cumprimentou Villela, dizendo “que se sentia bem em ter constatado a solução do problema da aviação entre nós”, relatou o Correio da Manhã no dia seguinte. Em um comunicado interno, o ministro registrou “o completo êxito” do avião, “em cujo preparo entraram elementos nacionais, com exceção somente do motor”. Ainda hoje, os principais fabricantes de aeronaves, como Boeing, Airbus e Embraer, não fabricam motores e preferem comprá-los de fornecedores como as norte-americanas GE Aviation, uma subsidiária da General Eletric, e Pratt & Whitney.

Gerson Pinto da Silva Souto. Arquivo pessoal de Denizar Villela /Thyrso Villela Neto Villela Júnior (fardado, primeiro à esq.), de costas para um Blériot e diante do Aribu (à dir.), prestes a voarGerson Pinto da Silva Souto. Arquivo pessoal de Denizar Villela /Thyrso Villela Neto

“O Alagoas foi o primeiro avião biplano [com uma asa sobre outra] construído no país”, comentou Villela Neto em um artigo na edição de julho-dezembro de 2017 da revista Parcerias Estratégicas. O voo do Alagoas fortaleceu a possibilidade de construir aviões no Brasil e de criar uma aviação independente, que viria a ser a Força Aérea, como Villela Júnior defendia desde 1916 em artigos publicados na revista A Defesa Nacional.

“O Exército incorporou os dois aviões, que foram úteis na instrução militar, realizada na Escola de Aviação Militar, fundada em 1919”, comenta Sales, que examinou o trabalho de Villela Júnior em um artigo de 2011 na Revista Unifa, da Universidade da Força Aérea. “Mas, apesar do apoio do Exército, não houve continuidade. O Brasil perdeu uma chance de ouro de fazer a industrialização aeronáutica decolar naquele momento, com o brigadeiro Villela.” Segundo ele, o governo preferiu comprar aviões franceses e ingleses usados na Primeira Guerra Mundial, em vez de investir em um projeto brasileiro.

Com base em documentos e pesquisas históricas, o físico do Inpe descobriu que o Aribu se perdeu em um acidente. Em 1921, depois de Villela Júnior receber elogios dos coordenadores de uma missão francesa que ajudava o Exército, o Alagoas amanheceu queimado no hangar fechado em que tinha sido deixado, sem combustível. Por essa época, segundo sua biografia no livro Canudos, memórias de um combatente, ele construiu uma maquete de avião com um pequeno motor apenas para decolagem e aterrissagem, com asas flexíveis, e um protótipo de hélice em espiral.

Villela Júnior passou para a reserva como general. Ele defendia a incorporação da aviação pelo Exército, reconhecida em 1927 como quinta arma (ramificação), ao lado da infantaria, artilharia, engenharia e cavalaria. Em 1941, com a criação da Aeronáutica, mesmo na reserva, foi promovido a brigadeiro do ar.

Marcos Villela Júnior Desenhos do Alagoas, biplano que voou em 1918Marcos Villela Júnior

Produção em série
Em 1951, aos 76 anos, ele escreveu Canudos, memórias de um combatente, relatando sua participação na revolta no interior da Bahia (1896-1897). Ainda como sargento, Villela Júnior participou de duas expedições a Canudos – em uma delas foi gravemente ferido – e foi um dos operadores da matadeira, o canhão que bombardeou o povoado liderado pelo cearense Antônio Conselheiro (1830-1897). Em 1951, recebeu uma medalha por atos de bravura em Canudos e em 1958 a do mérito aeronáutico, no grau de grande oficial.

Depois de outras iniciativas isoladas, a fabricação de aviões em série no Brasil começou em 1934, como resultado do apoio do governo de Getúlio Vargas (1882-1954), do empenho do tenente-coronel do Exército alagoano Antônio Guedes Muniz (1900-1985) e do industrial carioca Henrique Lage (1881-1941). Um ano depois o primeiro deles, o M7, voou no Campo dos Afonsos, no Rio. A Companhia Nacional de Navegação Aérea (CNNA), de Lage, produziu 26 exemplares do M7 e 40 do M9, ambos projetados e supervisionados por Guedes Muniz.

Depois da Segunda Guerra Mundial, a possibilidade de outra vez importar aviões a baixo preço, dessa vez dos Estados Unidos, adiou novamente o desenvolvimento da indústria aeronáutica nacional. A retomada definitiva ocorreu apenas em 1969, com a criação da Embraer, que tinha por base engenheiros formados no Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA), fundado em 1950 em São José dos Campos.

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