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CULTURA

Globalização no século XIX

Projeto revela uma intensa circulação de bens culturais, sobretudo impressos, entre França, Inglaterra, Portugal e Brasil

Podcast: Lucia Granja

 
     
Muitas décadas antes da difusão da palavra globalização, o mundo letrado frequentemente ignorava as fronteiras nacionais no século XIX, pelo menos no Ocidente. O polo difusor de bens culturais era a França e, com ela, o idioma francês, um símbolo de refinamento, usado cotidianamente até entre os membros da corte dos czares russos. Em um mercado crescente, a França exportava mil toneladas de livros e revistas por volta de 1840 e chegou a 4,7 milhões em 1890. Muitos desses impressos, em vários idiomas, eram depois reexportados. Mesmo quando em francês, podiam ser traduções de textos produzidos em diversas línguas, sobretudo alemão e inglês, que atendiam no estrangeiro a ávidos leitores de elite, incluindo os brasileiros dos grandes centros urbanos. Imprimia-se na França, em praticamente todos os idiomas conhecidos, porque, com um enorme parque gráfico, ficava mais barato. Além disso, no caso brasileiro, pagava-se imposto pela importação de papel em branco, mas não pela importação de livros.

Esse cenário efervescente é reconstituído pelo projeto  temático financiado pela FAPESP A circulação transatlântica dos impressos – A globalização da cultura no século XIX, iniciado em 2011 e previsto para terminar em agosto deste ano. Os coordenadores-gerais são Márcia Abreu, do Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas (IEL-Unicamp), e o francês Jean Yves-Mollier, da Universidade de Versalhes-Saint-Quentin (França). A finalidade é “conhecer os impressos e as ideias em circulação entre Inglaterra, França, Portugal e Brasil”. O período coberto toma de empréstimo do historiador britânico Eric Hobsbawm (1917-2012) o conceito de “longo século XIX”, cujo marco inicial é a Revolução Francesa (1789) e o final, o início da Primeira Guerra Mundial (1914). Para os assuntos estudados, a data inaugural é apropriada pelo fato de a Revolução Francesa ter alterado a legislação relativa ao comércio de livros na França, resultando numa profusão de publicações, muitas vezes efêmeras, que se espalharam pelo país e depois pelo mundo. E a data de término é um marco geopolítico global que afeta diretamente todos os países em foco. Um dos resultados do projeto é o livro The cultural revolution of the nineteenth century: Theatre, the book-trade and reading in the transatlantic world (A revolução cultural do século XIX: Teatro, comércio de livros e leitura no mundo transatlântico), coletânea de artigos lançada em dezembro no Reino Unido pela editora I.B. Taurus e sem previsão de tradução para o português.

No período estudado, os impressos costumavam chegar ao Brasil em média 28 dias depois de lançados na Europa e encontravam um exército de tradutores a postos para atender, entre outras finalidades, à demanda crescente por sua publicação em forma de folhetim nos rodapés das páginas nobres dos jornais – fenômeno não muito distinto do que se vê hoje em relação às séries de televisão norte-americanas. Um aspecto também semelhante é que o sucesso dos itens estrangeiros no promissor mercado abaixo do Equador estimulou a produção local. Editores franceses e de outras nacionalidades europeias mudaram-se para Portugal e para o Brasil e se estabeleceram com sucesso.

De início, o mercado brasileiro foi disputado por franceses e portugueses. Os livreiros-editores instalados no Brasil não só importavam e vendiam livros produzidos na Europa. Também publicavam revistas e livros brasileiros impressos em gráficas da França e de Portugal. “Além disso, com o tempo eles visaram ao público leitor português, invertendo a direção do fluxo secular dos livros, a ponto de a concorrência feita pelas obras lusas impressas no Brasil tornar-se motivo de inquietação em Portugal”, diz a professora. A preocupação se estendia ao fenômeno da contrafação de livros e revistas, nada mais do que pirataria de produtos culturais, algo também comum no mundo contemporâneo. Portugal já tinha uma população bem menor (5,5 milhões em 1900) do que a do Brasil (18 milhões) e uma taxa de analfabetismo equivalente (cerca de 25%), o que tornava o mercado brasileiro mais pujante e comercialmente atraente.

ciculação transatlântica-2_v1Daniel AlmeidaUrbanização
Uma tendência do período foi a consolidação da vida nas cidades. É também uma época de distâncias encurtadas, não só com o progresso das ferrovias, mas também com a invenção e a disseminação da prensa a vapor, a mecanização da fabricação do papel e o advento do telégrafo, no início do século XIX, até a impressão rotativa, a linotipia e a fotografia, em suas últimas décadas. “O consumo cultural não poderia mais ser o tradicional, baseado apenas no que era difundido pelo púlpito das igrejas”, afirma Tania de Luca, professora do Departamento de História da Faculdade de Ciências e Letras da Universidade Estadual Paulista (Unesp) e responsável, no projeto, por coordenar o estudo dos periódicos.

Segundo Márcia Abreu, o que permitiu aos pesquisadores avaliar de modo inédito a participação brasileira no circuito de troca de produtos culturais e ideias foi deixar de lado “a tradição centrada na ideia de nação”, como havia sido proposto em 2010, um ano antes do início dos trabalhos da pesquisa, durante um encontro na Universidade de Versalhes coordenado por Jean-Yves Mollier. O grupo que se agregou ao projeto é constituído de 40 pesquisadores de 19 instituições de pesquisa dos quatro países estudados. E o núcleo inicial, que inclui o historiador francês Roger Chartier, bastante conhecido no Brasil, voltou a se encontrar anualmente. “Naquele primeiro encontro, alguns dos trabalhos apresentados mostraram que, já no século XIX, havia um desejo dos países internacionalmente menos relevantes de se fazerem conhecidos na França. Quando nos afastamos dos limites dos territórios nacionais, começamos a perceber fatos e personagens que antes praticamente não tinham visibilidade.”

Tradução
Entre esses personagens distingue-se a importante figura do tradutor, profissional muito requisitado em todos os países estudados e, na condição de mediador entre eles, quase um símbolo da globalização da cultura. Os tradutores eram profissionais polivalentes que se exercitavam em várias atividades intelectuais e se agrupavam na categoria genérica de “homens de letras”. “Mesmo na França, um país central, parte do que se lia era traduzida”, observa Márcia. Um representante emblemático dessa categoria profissional no Brasil foi o fluminense Salvador de Mendonça (1841-1913), tradutor contratado pela Casa Garnier, editora que lançou também seu romance mais conhecido, Marabá (1875). Ele era ainda poeta, dramaturgo, crítico, jornalista e, mais tarde, cônsul-geral do Brasil nos Estados Unidos.

O curioso é que um tradutor como Mendonça, quando exercia a função de crítico, condenava a ampla circulação das obras estrangeiras no Brasil. Era uma época de construção de literaturas nacionais “como alicerce das nações que se formavam” e essa era a ambição dos homens de letras que, entretanto, tinham que atuar como tradutores como forma de complementar sua renda, observa Márcia. Até Machado de Assis (1839-1908), conhecido como o grande autor de romances do século XIX, atuou como crítico, cronista, dramaturgo e tradutor. O único autor brasileiro do período estudado que viveu exclusivamente de literatura, por algum tempo, foi Aluísio Azevedo (1857-1913), muito criticado por intelectuais que o consideravam submisso ao gosto popular.

A pesquisadora ressalta que os tradutores tinham “muita liberdade para mudar; não havia tanto respeito pelo original como existe hoje”. Assim, surge, por exemplo, a pergunta sobre quais “versões” dos romances do francês Émile Zola (1840-1902) eram lidas no Brasil, onde o autor gozava de muito prestígio de público. De modo semelhante, praticamente tudo o que se conhecia no Brasil de literatura inglesa e alemã no período era traduzido de outras traduções para o francês – o que acontecia também com os livros comercializados entre os países europeus.

“Em termos de gênero, a grande novidade da época foi o surgimento do folhetim, que se dá na mesma década de 1830 no Brasil e na França”, lembra Márcia. Era um momento de popularização da leitura e de surgimento de um público que procurava textos ágeis e tramas movimentadas. A maioria dos romances publicados em livros se originava de folhetins, embora nem todo folhetim se tornasse livro. A publicação nos jornais, que não era muito custosa para os editores, funcionava como um teste para a publicação em formato mais duradouro. “Uma história com boa aceitação fazia até quadruplicar a circulação de um jornal.” Como cada romance, por limitações técnicas, saía repartido em três ou quatro volumes, a publicação em livro podia começar antes de o folhetim terminar nas páginas dos jornais.

ciculação transatlântica-3_v2Daniel AlmeidaIndigenismo
Outro episódio revelador das múltiplas direções do circuito de bens culturais do século XIX destacado por Márcia é a do poeta Tomás Antônio Gonzaga (1744-1810) e sua obra mais conhecida, Marília de Dirceu. Por sua participação na Inconfidência Mineira, Gonzaga se encontrava degredado em Moçambique quando, provavelmente sem que ele tomasse conhecimento, o livro foi publicado em Lisboa em 1792, encontrando um enorme sucesso de público, o que gerou mais três edições até 1800. Foi essa repercussão na “metrópole” que, provavelmente, levou o livreiro franco-brasileiro Paulo Martin Filho, estabelecido no Rio de Janeiro, a reeditar a obra, o que ocorreu em 1810 e levou exemplares da edição brasileira a voltar a circular no mercado português. Em 1825, traduzido, o poema saiu em francês sob o título Marilie – Chants élégiaques de Gonzaga. Seguiram-se traduções em outras línguas, do italiano ao latim. “Uma das coisas interessantes dessa história é que ninguém sabe quem levou a obra para fora do Brasil, uma vez que Gonzaga estava isolado num país distante, de onde não voltaria mais”, diz Márcia.

Muito apreciada na Europa foi a literatura indigenista e aquela que depois viria a ser chamada de regionalista, representada por Inocência, do Visconde de Taunay (1843-1899), traduzido em várias línguas. “Dos romances urbanos de José de Alencar [1829-1877], como Senhora, ambientado na Corte, não houve traduções, provavelmente porque os europeus julgavam ser algo já bem conhecido”, diz Márcia. “Mas seus romances O guarani, Ubirajara e Iracema tornaram Alencar o nosso grande sucesso do século XIX no exterior.”

“Contrariando o senso comum de que o Brasil era um país culturalmente atrasado e sem leitores, várias famílias de livreiros vieram do exterior e implantaram seus negócios aqui”, conta a pesquisadora. Desde o século XVIII a França já exportava editores para vários lugares do mundo. Na segunda metade daquele século, 14 dos 17 livreiros de Lisboa eram franceses. Contudo, até a mudança da família real portuguesa para o Brasil (1808), toda publicação no Brasil era clandestina. Em seguida, dependia-se da iniciativa ou da autorização da Imprensa Régia, ou, em alguns casos, da utilização da sua tipografia em regime de aluguel. Entretanto, no Segundo Reinado (1840-1889), as editoras chegaram a contar com a ajuda direta do imperador dom Pedro II. O primeiro francês a aportar no Brasil para fazer negócios de editor e livreiro foi Paulo Martin Filho, cujo pai, Paul Martin, exercia o ofício em Lisboa. Foi o mais expressivo livreiro no Rio de Janeiro do começo do século XIX e quase não veio: com medo da concorrência, a Junta Comercial portuguesa havia tentado barrar a emissão de seu passaporte.

Ilustração
O mais importante editor-livreiro estrangeiro no Brasil seria Baptiste Louis Garnier (1823-1893), cujos irmãos eram editores em Paris e que chegou ao Rio em 1844. “Ele foi o responsável pela formação do cânone da literatura brasileira”, diz Lúcia Granja, professora de literatura e cultura brasileiras da Unesp, campus de São José do Rio Preto, responsável por coordenar os estudos da área de livreiros e editores do projeto de cooperação internacional. “Garnier publicou os grandes autores brasileiros daquele momento, atendendo a uma aspiração importante dos intelectuais da época”, observa Lúcia. Foi o editor francês quem transformou autores brasileiros em escritores remunerados, entre eles Machado de Assis. O livreiro publicava também o Jornal das Famílias, impresso na França, no qual intelectuais do Brasil imprecavam contra a presença estrangeira nas letras nacionais. “Ele fazia dinheiro com traduções do francês e publicava os brasileiros que lhe davam prestígio”, diz Lúcia. Garnier também editava livros didáticos, religiosos e especializados. “Sua produção seguia o padrão europeu, com duas edições simultâneas de cada livro, uma barata, outra luxuosa.”

Antes mesmo dessa intensa atividade de circulação de livros, as revistas e jornais já viviam um momento pujante e diversificado. “A imprensa do século XIX já nasceu internacionalizada, com títulos e modelos que se repetiam”, diz Tania de Luca. “A grande novidade do século seria a incorporação de imagens.” Novidade que se refletiria em publicações como a Revista Ilustrada, fundada no Rio pelo caricaturista ítalo-brasileiro Angelo Agostini, que circulou de 1876 a 1898. Era um periódico predominantemente de humor satírico e engajado: a linha editorial defendia a República e a abolição da escravidão, num período em que as duas campanhas se encontravam na ordem do dia.

Nessa época eram comuns as publicações que discutiam ideias políticas e filosóficas. “Muitas revistas e jornais selecionavam e traduziam textos de outras publicações, e isso era feito em escala mundial”, conta Márcia. “Causas como a formação dos estados nacionais e a República eram temas de textos traduzidos, reimpressos e assimilados, formando uma grande comunidade em sintonia com as novidades da época, inclusive científicas.” O mesmo ocorria com as revistas dedicadas à moda e ao público feminino, que continham também jogos e charadas, além de notícias do mundo do espetáculo. Algumas revistas de moda publicavam moldes de vestidos criados na Europa e traziam no texto sugestões de adaptações para o clima quente dos trópicos.

Um filão nada desprezível para as editoras e tipografias era o relacionado ao teatro. “Na época, os textos de peças eram um gênero literário que circulava na forma de livro”, diz Orna Messer Levin, professora do IEL-Unicamp e responsável pela área de teatro do projeto. Folhetos, cartazes, libretos e outros subprodutos dos espetáculos teatrais também davam dinheiro aos editores. “O teatro tinha uma importância enorme no século XIX para os países europeus, pois era um instrumento para a afirmação nacional. Italianos divulgavam textos em seu idioma, mas também peças francesas, assim como portugueses traziam ao Brasil obras traduzidas do francês.”

Turnês na América
As companhias teatrais trabalhavam em esquema empresarial e altamente profissionalizado. Agentes viajavam de antemão aos países de destino para verificar a adequação das salas de teatro aos espetáculos que as companhias viriam a apresentar. Para sobreviver no verão, época em que na Europa não havia apresentações teatrais, os grupos faziam turnês que começavam no norte do Brasil, desciam pela costa, chegavam ao Uruguai e à Argentina e não raro davam a volta pelo sul do continente, chegando à costa oeste da América do Sul e depois aos Estados Unidos. No Brasil, eram o programa principal da elite da capital – as companhias chegaram a obter subsídios do Estado imperial até a década de 1860.

Uma crítica favorável ou uma temporada estendida no Rio repercutia em favor do espetáculo em outros países, mesmo os de origem da companhia. Divas dos palcos europeus, como a italiana Eleonora Duse e a francesa Sarah Bernhardt, vieram se apresentar no Brasil. Segundo Orna, muitos artistas, sobretudo atrizes, casavam-se e ficavam no país. O teatro nativo se beneficiou desse ambiente movimentado. O século XIX foi a época de grandes atores, como João Caetano dos Santos, e de assimilações como as “burletas”, os espetáculos satírico-musicais de Artur de Azevedo (1855-1908), que eram uma “resposta” às operetas europeias, exemplo de uma espécie de antropofagia cultural em uma época anterior ao termo ser cunhado pelos modernistas de 1922.

Projeto
A circulação transatlântica dos impressos – A circulação da cultura no século XIX (nº 2011/07342-9); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Projeto Temático; Pesquisadora responsável Márcia Azevedo de Abreu; Investimento R$ 741.770,00.

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